Quando vêm à tona maus registros guardados, ninguém espera a Inquisição romana, mas é exatamente o que um historiador descobriu enquanto tentava resolver uma controvérsia de séculos sobre os julgamentos de Galileu.
O segundo julgamento da Igreja Católica Romana do famoso astrônomo italiano tem simbolizado um choque essencial de cultura entre ciência e religião. Mas um exame mais amplo do valor de registros de 50 anos sugere que a Inquisição romana considerou o caso mais como uma disputa legal ordinária do que um conflito filosófico de mudança de mundo.
O estudo também mostrou que os registros da Inquisição frequentemente sem cuidado deixaram informações cruciais.
Esse entendimento ajuda a reconciliar uma aparente contradição nos registros sobre o julgamento de Galileu, disse Thomas Mayer, um historiador na Augustana College em Rock Island, Ill.
“A noção de que o julgamento de Galileu foi um conflito entre ciência e religião deveria estar morta.”, disse Mayer à LiveScience. “Qualquer um que trabalhe seriamente em Galileu não aceita aquela interpretação mais.”
Galileu Galilei argumentou a favor do modelo heliocêntrico desenvolvido por Copérnico que mostra a Terra girando indo em torno do Sol em vez da visão geocêntrica colocando a Terra no centro de tudo. Ele acabou abjurando a visão heliocêntrica quando convocado a Roma para o segundo julgamento em 1632-33.
Registros crivados com buracos
A Inquisição romana começou em 1542 – 22 anos antes do nascimento de Galileu – como parte da Contrarreforma da Igreja Católica contra a difusão do Protestantismo, mas representava um caso menos duro do que a Inquisição espanhola previamente estabelecida.
O primeiro julgamento de Galileu terminou com a Inquisição emitindo uma ordem formal, chamada preceito, em 1616 requerendo que ele parasse de ensinar ou defender o modelo heliocêntrico. A sua decisão de ignorar o preceito ultimatamente levou ao segundo tribunal 15 anos depois.
Mas algumas pessoas têm argumentado que na realidade Galileu nunca recebera o preceito da Inquisição. Pela sua lógica, o astrônomo desentendeu a ordem formal como uma mera batida nas juntas.
Poucos estudiosos ainda têm tentado sugerir que a Inquisição forjou o preceito durante o segundo julgamento de 1632 para melhor incriminar Galileu. Eles apontam para um registro de um encontro oficial da Inquisição em 3 de março de 1616 que meramente menciona Galileu sendo avisado em vez de ter recebido o preceito.
Entretanto o dossiê de Galileu e outros documentos revelam que a Inquisição operou como uma organização humana inclinada a erros por descuido e desleixo burocrático, em vez de uma organização monolítica, onipotente conspirando para derrubar o astrônomo. Isso talvez forneça a melhor evidência que os procuradores de conspiração tinham isso por errado, disse Mayer.
Mayer encontrou muitos registros de encontro da Inquisição estando incrivelmente bagunçados. Anotações frequentemente terminavam rabiscadas nas margens ou abarrotadas no fim.
Mais do que um aviso
É possível que o tabelião registrando o encontro não se preocupou em realmente registrar o preceito, descrevendo-o ao contrário como um aviso, disse Mayer.
No entanto, pelo menos outros cinco documentos na verdade mencionam o preceito. Eles incluem a ordem do Papa Paulo V concernente ao preceito; um registro datado do preceito sendo emitido; resumos e sumários legais do julgamento de 1632 de Galileu; e o documento que pronuncia a sentença de Galileu.
Esses documentos novamente refletem a falta de cuidado em tomar nota, dado que eles não podiam nem mesmo concordar na redação exata do preceito, apontou Mayer. Mas ele adicionou que todos eles têm consistência histórica em mencionar a existência do preceito.
Uma outra antiga teoria erudita sugeriu que o preceito dado a Galileu foi uma ordem única e ilegal que especificamente tomou Galileu como alvo obrigando-o ao silêncio.
Mas Mayer também previne contra essa teoria. Ele encontrou exemplos de mais de 200 preceitos dados nos decretos da Inquisição do final dos 1590 a 1640.
“A ideia de que era único não é verdadeira.”, disse Mayer à LiveScience. “Eles eram um dispositivo muito familiar – muitos dos quais estão incompletamente registrados nos registros.”
Os erros de Galileu
Quando Galileu apareceu perante a Inquisição no seu segundo julgamento em 1632, os inquisidores focaram amplamente no seu crime de ignorar o preceito anterior. Eles não falavam muitas vezes sobre como o modelo heliocêntrico foi contra o ensinamento bíblico.
“Quem quer que seja [que levantou a questão do preceito anterior] estava fazendo-o em termos legais muito estreitos.”, disse Mayer. “A razão é que eles estavam tentando dar a Galileu um fora.”
Galileu poderia ter negociado um ajustamento – uma ocorrência comum nos registros da Inquisição, e um que teria sido relativamente fácil para ele considerando os termos estreitos do preceito, disse Mayer.
Ao contrário, Galileu “não sabia as regras e deliberadamente se manteve ignorante delas.”, de acordo com Mayer.
O astrônomo desajeitadamente tentou alegar que ele tinha recebido meramente um aviso, antes de se contradizer declarando “Eu não alego não ter de nenhuma maneira violado aquele preceito.” Ele se meteu num buraco ainda mais fundo por citar a forma forte do preceito durante seus argumentos.
“Quando a situação ficou crítica na segunda parte do julgamento, ele cometeu todos os erros que podia imaginar.”, disse Mayer. “Um advogado poderia dizer-lhe para não fazer aquilo.”
Somente humano
O estudo do preceito vem como parte de um projeto muito maior objetivado no entendimento da Inquisição romana como “seres humanos em vez de recortes de papelão.”, de acordo com Mayer.
Ele espera que seu estudo recente, detalhado na edição de setembro de The British Journal for the History of Science, possa ajudar a esfriar calor desnecessário entre a ciência e religião modernas.
“O problema está apenas errado.”, disse Mayer. “O que eu estou tentando fazer é chegar à dimensão jurídica do que aconteceu.”
Esta pode ser uma batalha ladeira acima. Galileu representa um símbolo incrivelmente poderoso hoje como um dos pensadores mais reverenciados da história, e todos querem um pedaço dele.
Aos olhos de europeus seculares, ele é classificado como “um mito maior que George Washington”, ao lado de Charles o Grande, observou Mayer. A Igreja Católica Romana também tentou “reabilitar” a imagem de Galileu recuperando-o como um homem de fé.
Mesmo os criacionistas têm saudado Galileu como um homem a frente de seu tempo – implicando que suas visões sobre a criação da vida estão numa posição semelhante.
“Pobre Galileu está na mira.”, concluiu Mayer.
Tradução: Marcos Zamith
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