ZP10101302 - 13-10-2010
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Entrevista com monsenhor Tony Anatrella
ROMA, quarta-feira, 13 de outubro de 2010 (ZENIT.org) - "Estamos empenhados em um combate de ideias que os cidadãos frequentemente ignoram". É o que afirma monsenhor Tony Anatrella, psicanalista e especialista em psiquiatria social.
Consultor do Conselho Pontifício para a Família e do Conselho Pontifício para a Pastoral no Campo da Saúde, é também membro da Comissão Internacional de Investigação sobre Medjugorje da Congregação para a Doutrina da Fé.
Monsenhor Anatrella, que leciona em Paris, no IPC e no Collège des Bernardins, concedeu entrevista a ZENIT sobre a teoria de gênero. Veja a última parte.
ZENIT: O matrimônio não é uma realidade à disposição do legislador?
Monsenhor Tony Anatrella: Bento XVI, com razão, insiste em que o matrimônio continua sendo uma instituição para o homem e a mulher, as crianças e a sociedade. Não é, portanto, uma realidade à livre disposição do legislador, mas é parte da lei natural que o precede. Não é um contrato. Exige suas próprias condições, precisamente começando pela diferença sexual. O Papa precisou essa proposição, afirmando: "Deste modo, torna-se uma necessidade social, e mesmo económica, continuar a propor às novas gerações a beleza da família e do matrimónio, a correspondência de tais instituições às exigências mais profundas do coração e da dignidade da pessoa" (n. 44). A instituição do matrimônio está frequentemente em desvantagem nas sociedades ocidentais em nome dos direitos individuais confundidos com os particularismos aleatórios e em detrimento do bem comum. Obviamente, os direitos individuais têm interesse sempre e quando não se desviam de seu propósito.
No capítulo 4 da encíclica, Bento XVI põe em dúvida a tendência atual que tenta organizar a sociedade a partir dos direitos individuais sem que estes se confrontem com o bem comum. Esta perspectiva dos direitos individuais reivindicada por alguns grupos de pressão e praticamente aceita pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos não anuncia senão o fim da dimensão dos direitos humanos objetivos e universais? Sobretudo porque em nome dos direitos humanos se reclama qualquer coisa. A ONU, a Comissão Europeia em Bruxelas e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos estão condicionados por esta filosofia subjetiva e individualista, que no longo prazo altera os vínculos sociais. Assim, o Papa escreve: "Hoje, muitas pessoas tendem a alimentar a pretensão de que não devem nada a ninguém, a não ser a si mesmas. Considerando-se titulares só de direitos, frequentemente deparam-se com fortes obstáculos para maturar uma responsabilidade no âmbito do desenvolvimento integral próprio e alheio". Por outro lado, "se os direitos do homem encontram o seu fundamento apenas nas deliberações duma assembleia de cidadãos, podem ser alterados em qualquer momento e, assim, o dever de os respeitar e promover atenua-se na consciência comum. Então os governos e os organismos internacionais podem esquecer a objetividade e «indisponibilidade» dos direitos. Quando isto acontece, põe-se em perigo o verdadeiro desenvolvimento dos povos" (n. 43). A proliferação de leisad hoc para atender as solicitudes específicas só podem desvalorizam o sentido do direito civil e esta desvalorização alenta a que não sejam respeitados, já que não estão honrando o interesse geral.
As ciências sociais desempenharam um papel importante na aparição de novas ideologias fundadas nos direitos individuais e nas divisões artificiais na humanidade em lugar de respeitar as diferenças fundamentais. Os sociólogos que observam as atitudes e o comportamento decretam que dado que um fenômeno existe, não só deve ser admitido, mas também legalizado e convertido em padrão. Daí a proliferação de leis que buscam legitimar os comportamentos em lugar do legislador criar leis em nome do bem comum.
Estamos assistindo a uma perversão gradual da lei em nome dos direitos das pessoas (de fato, interpostas em nome de normas individuais baseadas em manipulações subjetivas) que devem se impor à sociedade neutralizando os deveres. Em outras palavras, repetimos, não são os direitos individuais que estão em questão, mas o modo como são disfarçados. O Papa tem razão ao escrever que "a exasperação dos direitos desemboca no esquecimento dos deveres. Estes delimitam os direitos porque remetem para o quadro antropológico e ético cuja verdade é o âmbito onde os mesmos se inserem e, deste modo, não descambam no arbítrio" (n. 43). Na maioria dos países desenvolvidos, a lei está atualmente organizada para satisfazer as expectativas psicológias.
ZENIT: Em sua recente conferência aos bispos da África, o senhor sustentou que estamos em uma guerra ideológica. Que quer dizer?
Monsenhor Tony Anatrella: O Papa sublinhou com força: "assiste-se hoje a uma grave contradição: enquanto, por um lado, se reivindicam presuntos direitos, de carácter arbitrário e libertino, querendo vê-los reconhecidos e promovidos pelas estruturas públicas, por outro existem direitos elementares e fundamentais violados e negados a boa parte da humanidade" (n. 43). As famílias deslocadas não são sempre respeitadas em sua dignidade. Os deslocamentos industriais empobrecem uns e exploram a mão de obra dos países emergentes. E, em outro nível, uma criança tem direito a ser educada só por um homem e uma mulher, seu pai e sua mãe, para cobrir suas necessidades e respeitar seus interesses psicológicos, sociais, morais e espirituais.
Hoje, sublinha o Papa, em uma mentalidade técnica, quer-se fazer coincidir o verdadeiro com o factível (n. 70). "Mas, quando o único critério da verdade é a eficiência e a utilidade, o desenvolvimento acaba automaticamente negado" (idem). Tanto o matrimônio como a filiação não podem depender da utilidade para preencher a insatisfação e a frustração de alguém. Sobretudo, quando se passa por alto pensar no "sentido plenamente humano do agir do homem, no horizonte de sentido da pessoa vista na globalidade do seu ser" (idem).
Nesta batalha de ideias, a aposta em jogo é sobretudo antropológica. "Paulo VI já tinha colocado em evidência, naPopulorum Progressio, que a questão social se converteu radicalmente em uma questão antropológica, no sentido de que implica a própria maneira não só de conceber mas também de manipular a vida" (75). Temos dito e repetido frequentemente que as heresias contemporâneas não são já propriamente religiosas, mas heresias antropológicas, em que a teoria de gênero forma parte do panorama intelectual que a considera como uma norma quase internacional. O homem, abandonado desta maneira a si mesmo, não pode se conceber a não ser em termos de onipotência ou na rivalidade do complexo de Cain. Precisamos harmonizar fé e razão, diz o Papa em sua encíclica. "Deus revela o homem ao homem; a razão e a fé colaboram para lhe mostrar o bem, desde que o queira ver; a lei natural, na qual reluz a Razão criadora, indica a grandeza do homem, mas também a sua miséria quando ele desconhece o apelo da verdade moral" (n. 75).
Não há que ocultar que estamos empenhados em um combate de ideias em que os cidadãos ignoram frequentemente o que está em jogo e no que se faz todo o possível para marginalizar a Igreja, que cumpre sua missão sublinhando as consequências deste tipo de ideologia sobre o futuro da humanidade. O questionamento do matrimônio é um dos primeiros aspectos de uma estratégia ideológica que tenta redefinir a sexualidade humana sobre uma base idealista e que se opõe à realidade da encarnação do homem em um corpo específico. Quem defende a ideologia de gênero sustenta a ideia de que todos somos seres humanos antes que homens ou mulheres. Este sofisma generoso é uma ilusão, pois o ser humano em si não existe. Não somos assexuados. Só encontramos pessoas que são homens ou mulheres. Ademais, não há outras identidades fora destas. Apresentam-se numerosos paradoxos irreais nesta ideologia que fica marcada pela negação do corpo sexuado e responde a uma angústia que sempre atravessou a humanidade, a do reconhecimento, da aceitação e interiorização da diferença sexual. Este é o verdadeiro sentido da alteridade humana que se cumpre na revelação cristã. O significado do matrimônio não pode ser entendido a não ser a partir do corpo sexuado que permite a união e a comunhão entre um homem e uma mulher.
ZENIT: Sobre que questões a Igreja e os cristãos devem atuar?
Monsenhor Tony Anatrella: Devem atuar para que os diferentes Parlamentos nacionais adotem leis civis que não estejam em contradição com os princípios de humanidade. A ideologia do gênero, produzida pelas ciências humanas, é um novo idealismo, à imagem do marxismo, que é contrário aos interesses humanos. Mas uma sociedade que já não compreende o sentido da diferença sexual perde progressivamente o sentido da verdade das coisas e favorece um profundo sentimento de insegurança. A instabilidade, já favorecida por outros fatores, progride, já que esta ideologia ataca o marco portador e simbólico da sociedade. Isso é porque - Montesquieu tinha razão ao escrever emO espírito das leis - não há que tocar as leis mais que com uma mão trêmula.
Quando à questão da diferença sexual, dado que se dá a entender que a identidade sexual é independente do fato biológico, a teoria de gênero dissocia a sexualidade biológica e psicológica do social, para fazer uma construção social em um jogo de poder entre o homem e a mulher. A guerra de sexos substituiu a luta de classes. A primazia está no desaparecimento das distinções entre o homem e a mulher. Dito de outra forma, nada deve impedir a mulher de se fazer igual ao homem, denunciando a dominação e o poder masculinos.
A maternidade é assim considerada uma limitação e uma injustiça, já que só as mulheres trazem crianças. Há que libertar portanto as mulheres da maternidade e este fato explica a multiplicação das campanhas a favor da anticoncepção e do aborto. Uma verdadeira campanha de mutilação internacional dirigida pelas mais altas instituições, que alcança a verdadeira riqueza de um povo, que são seus filhos.
Bento XVI escreve: "Também algumas organizações não governamentais trabalham activamente pela difusão do aborto, promovendo nos países pobres a adopção da prática da esterilização, mesmo sem as mulheres o saberem. Além disso, há a fundada suspeita de que às vezes as próprias ajudas ao desenvolvimento sejam associadas com determinadas políticas de saúde que realmente implicam a imposição de um forte controle dos nascimentos. Igualmente preocupantes são as legislações que prevêem a eutanásia e as pressões de grupos nacionais e internacionais que reivindicam o seu reconhecimento jurídico. A abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento. Quando uma sociedade começa a negar e a suprimir a vida, acaba por deixar de encontrar as motivações e energias necessárias para trabalhar ao serviço do verdadeiro bem do homem" (n. 28).
O homem se considera senhor do universo. Não é e nem preside a sua origem, não é seu próprio criador e muito menos quem se constrói a partir do nada. Procede da natureza e advém pela cultura. Não há oposição entre uma e outra, mas uma sutil interação. Em lugar de se construir, o homem se desenvolve segundo os fenômenos que lhe são próximos. Recebe-se como um dom, diz o Papa, realiza-se a partir de numerosas interdependências. Por isso é necessário que se desprenda da visão narcisista e autossuficiente do pensamento atual e se liberte do fantasma de todo-poderoso que lhe faria arquiteto de sua história pessoal, onde terá o controle de todo.
Os relatos de vida que estão muito em moda atualmente nas ondas do rádio e da televisão ocidentais testemunham uma necessidade de se justificar, de se apresentar como heróis de sua vida, ou vítimas de sua educação e dos demais. Este movimento é o sintoma de uma dificuldade para tomar posse de sua existência, dar-lhe significado e assumi-la. O pensamento individualista de um Pico della Mirandola influenciou no norte da Europa e entre anglo-saxões, e o pensamento subjetivista desembocou em um isolamento narcisista que está na origem de diferentes formas de violência no movimento da civilização.
O Santo Padre destaca que a pessoa humana não é dada só a si mesma, mas que também está feita para a doação. "A caridade na verdade coloca o homem perante a admirável experiência do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob múltiplas formas, que frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma visão meramente produtiva e utilarista da existência. O ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência" (n. 34).
O dom não se pode realizar mais que no reconhecimento, na aceitação e na interiorização da alteridade, e da alteridade sexual. O dom de si se expressa através do corpo à imagem de Cristo, que se encarnou e se ofereceu de uma maneira carnal para que o homem se una à humanidade de Deus no amor à verdade.
ZENIT: Como formar os sacerdotes e sensibilizar intelectualmente os cristãos perante esta ideologia?
Monsenhor Tony Anatrella: Os bispos africanos estão decididos a atuar através da formação dispensada por parte dos Seminários aos seminaristas, através das Universidades católicas e da formação paroquial e dos movimentos de ação familiar para, ao mesmo tempo que se sensibiliza perante a teoria de gênero, ofereça-se um mecanismo intelectual crítico e se apresente uma visão realista da complementaridade entre o homem e a mulher. A Igreja, João Paulo II insistiu com firmeza nisso, faz um chamado a uma civilização baseada no amor, quer dizer, no casal baseado em um homem e uma mulher, os únicos que simbolizam o significado do amor através da conjugalidade e da filiação familiar. Necessitam-se ao menos de interiorizar intimamente esta diferença importante, para aceder ao amor.
No Ocidente, ainda que esta teoria esteja em marcha há muitos anos, a reflexão nos Seminários e nas Universidades católicas é quase inexistente. Este não é o caso das Universidades romanas, como no Instituto João Paulo II e a Academia Pontifícia Eclesiástica. Do contrário, constata-se que professores, estudantes e os membros do clero em seu conjunto adotam e utilizam frequentemente uma linguagem inerente a esta ideologia, sem saber. É o aspecto mais pernicioso desta teoria: difundir os termos na linguagem cotidiana como melhor forma de fazer aceitar as ideias.
Quem teria pensado que o conceito de "governabilidade", que é um termo sonoro e bonito, não tem o mesmo sentido que o de "governo". O mesmo com o conceito de "parentalidade", que substitui "parentesco" e introduz um significado completamente diferente. Ou o conceito de "saúde reprodutiva", que não tem nada a ver com o acompanhamento de mães e famílias, mas significa a difusão dos anticonceptivos e abortivos. É preferível substituir o conceito de "saúde da família", que inclui pai, mãe e filhos: em resumo, a unidade familiar. Portanto, devemos entender a origem e o alcance, e nos negarmos a aceitar essa não-linguagem.
O Conselho Pontifício para a Família publicou o Léxico de termos ambíguos e controversos para responder a todas essas questões ideológicas. Este livro foi publicado em português, francês, alemão, inglês, árabe, espanhol, italiano e russo. Por último, também temos de reconhecer todo o trabalho realizado pelas associações católicas familiares no âmbito europeu e internacional. Falta educar amplamente os formadores e professores, e todos os cristãos, para responder a este novo desafio que assola as políticas familiares. O cristão deve se mobilizar quando a dignidade da vida humana e o equilíbrio se vejam perturbados pela busca de lucros econômicos e ideológicos limitados a interesses particulares, onde Bento XVI nos chama a uma maior abertura à vida.
(Anita S. Bourdin)
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