sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Bom servo, mau senhor


São as duas faces do nacionalismo. Ele tanto
pode ajudar a construir como a destruir

Paul Johnson
 
O nacionalismo está em alta novamente e os intelectuais suspeitam dele. Argumentam que o nacionalismo levou a duas guerras mundiais no século XX, que proporciona um caminho fácil para aspirantes a ditador e que induz ao racismo. Alguns também afirmam que ele é hostil à verdadeira cultura, cujo caráter é internacional.
Examinemos essa última acusação. A cultura certamente tende a tornar-se internacional. Foi essa a história da civilização grega, da civilização latina que a sucedeu e se sustentou até a Idade Média, e de todos os grandes estilos arquitetônicos, do românico e do gótico até o "estilo internacional" das décadas de 1920 e 1930. O pós-modernismo corrente é, em linhas gerais, o mesmo em todo o mundo. Um movimento cultural tipicamente internacional, hoje novamente em voga, foi o da art nouveau, ao redor de 1900: tão popular, com variações, em Paris, Barcelona, Bruxelas, Praga e Milão quanto em Chicago, Rio de Janeiro e Cidade do México.
Mas é preciso dizer que os anais históricos também demonstram, com toda clareza, que as culturas poderosas tiveram sua origem em condições que associamos ao nacionalismo, às etnias e mesmo ao racismo. A primeira cultura duradoura (ela se manteve por mais de 3 000 anos e suas manifestações ainda nos encantam hoje em dia) surgiu no antigo Egito e certamente nasceu da autoconsciência dos egípcios, de seu sentido de identidade, de unidade política e racial, sob comando do Deus-Faraó. O hieróglifo que designa um egípcio é bastante diferente daquele que designa os indivíduos de outras raças. Esses últimos não eram plenamente considerados "pessoas", como os egípcios; não eram totalmente humanos. Um orgulho imenso de seu país, de suas delícias e conquistas, estava por trás da suprema autoconfiança que deu à arte egípcia seu estilo espetacular.
Os gregos, que tomaram dos egípcios muitas de suas noções culturais, especialmente na arquitetura, eram ainda mais cônscios de sua peculiaridade. Em vez de uma nação, eles eram uma coletividade de cidades-Estado, uma liga de cidades. Mas sua unidade cultural, atestada pelos dois grandes épicos de Homero e fortalecida durante as guerras prolongadas contra os persas, tinha toda a energia do nacionalismo. Para ser grego, não era necessário possuir sangue grego, mas a cidade precisava ter todas as construções características daquela cultura: um estádio, um ginásio, uma academia, um anfiteatro capaz de acomodar toda a população, um odeom e assim por diante. Dessa forma, o indivíduo era membro da oikumene, a civilização. Para além desse círculo iluminado de cultura, havia o que os gregos chamavam de "caos", habitado pelos "bárbaros".
Internacionalismo latino – O moderno nacionalismo europeu brotou, no final da Idade Média, do internacionalismo latino que a cristandade cultivou à medida que se espalhava pelo continente. Em toda parte, o que se viu foi o florescimento de fortes características nacionais, associado ao aparecimento de diferentes línguas e de estilos na construção e na pintura. O Renascimento tornou-se internacional, mas em suas origens ele foi antes de mais nada italiano – ou talvez seja mais correto dizer florentino. Seu patrono foi Dante Alighieri que, por meio de seus poemas, deu dignidade escrita ao dialeto de Florença, transformando-o em italiano, uma força nacionalista em si mesma. Quando grandes poetas, teóricos políticos, historiadores e filósofos começaram a escrever na língua local, e não em latim, o nacionalismo moderno nasceu e ganhou voz.
A Inglaterra e a língua inglesa são um caso interessante. Até o começo do século XIV, a linguagem das cortes e da cultura na Inglaterra era o francês (ou o latim). Então, o começo da Guerra dos 100 Anos com a França isolou o país das influências continentais e atiçou o fogo do nacionalismo. A Coroa adotou o inglês em seus pronunciamentos, o Parlamento votou o Estatuto dos Requerimentos, tornando ilegal a condução de casos judiciais em outra língua que não o inglês, e os escritores se voltaram para o vernáculo. Ao final do século, o primeiro grande poeta popular da ilha, Geoffrey Chaucer, havia escrito sua obra-prima, os Contos de Canterbury, inteiramente em inglês. Paralelamente, a Inglaterra desenvolveu sua própria versão da arquitetura gótica. E a primeira obra-prima dessa escola, em Gloucester, comemorou a vitória inglesa em Crécy sobre os franceses – um exemplo perfeito de nacionalismo que alcança expressão cultural.
Processos semelhantes aconteceram em Portugal, que desenvolveu o estilo manuelino, na Espanha, com o plateresco, e na França, com o flamboyant. Como na Inglaterra, o nacionalismo foi reforçado por grandes obras na língua local. Cervantes, na Espanha, e Rabelais, na França, produziram livros populares em vernáculo, livros que se tornaram emblemáticos da cultura nacional. Martinho Lutero tanto respondeu ao fogo do nacionalismo germânico quanto ajudou a aumentá-lo, criando uma nova liturgia eclesiástica na Alemanha. Ainda mais notável foi a conexão entre cultura nacional e independência lingüística em Portugal, onde Camões contou a história do país em Os Lusíadas, primeira criação maior da literatura portuguesa.
Invenção do finlandês – O nacionalismo tanto constrói quanto destrói cultura. Na Alemanha, no começo do século XIX, ele foi uma reação ao imperialismo napoleônico, que era cultural ao mesmo tempo que político. Ele foi também uma das forças na origem da literatura e da arte românticas. Mas o nacionalismo também causou um retrocesso no sentido da Kultur, a cultura pagã das florestas e dos deuses nórdicos, que tinha fortes semitons raciais. Com o tempo, essa vertente encontrou expressão violenta no imperialismo germânico e finalmente em Hitler, que, note-se bem, dava apoio à Kultur e denunciava a "civilização", que ele equiparava a "cosmopolitismo" e "judaísmo internacional".
Em pequenos países ou entre povos que buscam a independência, o nacionalismo e a cultura local se equivalem. Isso é verdade entre os bascos, por exemplo, e também entre os estonianos e os letões. Na Finlândia, onde até recentemente a classe governante falava sueco e a Rússia era politicamente dominante, o finlandês teve de ser inventado como linguagem escrita por dois professores alemães de filologia, de modo que a cultura nacional pudesse emergir pari passu com a independência política.
Em países multiculturais como o Brasil e os Estados Unidos, o nacionalismo e a identidade cultural que o acompanha são ingredientes necessários de unidade. Uma das razões pelas quais federações como a Iugoslávia e a União Soviética não deram certo foi sua falta de unidade cultural. A mesma ameaça pesa sobre a União Européia. Certa vez, durante uma entrevista coletiva, o então presidente francês Charles De Gaulle se referiu à "Europa de Dante, Goethe e Chateaubriand". Eu atalhei: "E de Shakespeare." "Ah, sim, Shakespeare também", disse ele. Mas o que De Gaulle estava empregando era a linguagem do nacionalismo cultural de velho estilo. A União Européia ainda precisa forjar sua dimensão cultural: aí está seu ponto fraco, talvez fatal. No estágio atual do desenvolvimento humano, um elemento de nacionalismo é necessário aos grandes empreendimentos, incluídos aí os empreendimentos culturais. Devemos, no entanto, lembrar a importante lição da história: o nacionalismo é um bom servo, mas um mau senhor.
 
O tipo "botocudo"
Nenhum tema é mais persistente no debate político brasileiro do que o nacionalismo. No último dia 15, o presidente Fernando Henrique Cardoso o trouxe de novo à baila, ao criticar seus adversários por praticarem um "nacionalismo botocudo, que olha para trás". Neste artigo, escrito especialmente para VEJA, o crítico e historiador inglês Paul Johnson aborda o assunto da perspectiva cultural e artística. Mas é possível dizer que suas conclusões são universais.
 

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