Escrito por Carlos I.S. Azambuja |
Segunda, 07 de Maio de 2007 09:27 |
Em 29 de janeiro de 1937, em Moscou, 13 supostos membros de uma conspiração trotskista foram condenados à morte e 200 mil pessoas, deslumbradas pela propaganda da luta de Stalin contra o terror, reuniram-se na Praça Vermelha, apesar da temperatura de -27 graus Celsius, carregando estandartes que diziam: “O veredicto da corte é o veredicto do povo”. Kruschev falou para a massa, denunciando o “Judas Trotski”, expressão que implicava fortemente que Stalin era o Jesus metafórico. “Ao erguer a mão contra o camarada Stalin”, disse Kruschev à multidão, “eles levantaram a mão contra tudo que há de melhor na humanidade, porque Stalin é esperança (...) Stalin é nossa bandeira. Stalin é nossa vontade. Stalin é nossa vitória” (livro Stalin, a Corte do Czar Vermelho, Simon Sebag Montefiore, editora Companhia das Letras, 2003). Nikita Kruschev, como se sabe, em fevereiro de 1956, no XX Congresso do PCUS condenou por seus crimes o kamarada Stalin, que assim, 19 anos depois, não era mais “a nossa bandeira, a esperança, a nossa vontade e a nossa vitória”. A regra no mundo de Stalin era a de que, quando um homem caía, todos os que tinham ligação com ele, fossem amigos, amantes ou protegidos, caíam junto. Seu cunhado e seu sogro foram fuzilados. Sua esposa, sua irmã e seus pais foram exilados. Nas Forças Armadas o terror atingiu três dos cinco marechais, quinze dos dezesseis comandantes de Unidades e todos os dezessete comissários políticos foram fuzilados. Eles não foram mortos pelo que haviam feito, mas pelo que poderiam fazer. Ou seja, foram mortos por uma traição em potencial. O Politburo nem especificava os nomes. Simplesmente fixava cotas de morte aos milhares. Em 2 de julho de 1937, o Politburo ordenou que os secretários locais prendessem e fuzilassem “os elementos anti-soviéticos mais hostis”, que deveriam ser sentenciados por troikas, tribunais de três homens que incluíam usualmente o secretário do partido, o Procurador e o chefe local do NKVD. Os “elementos anti-soviéticos mais hostis” eram apontados pelo secretário do partido na região. O objetivo era “acabar de uma vez por todas” com todos os inimigos e com aqueles impossíveis de educar no socialismo, de modo a acelerar o desaparecimento das barreiras de classe e, portanto, a instauração do paraíso para as massas. Essa solução final era um massacre que fazia sentido em termos da fé e do idealismo do bolchevismo, que era uma religião baseada na destruição sistemática das classes. O princípio de ordenar o assassinato como cotas industriais do Plano Qüinqüenal era, portanto, natural. Os detalhes não importavam: se a destruição dos judeus por Hitler foi um genocídio, então aquilo foi um democídio (*), a luta de classes se transformando em canibalismo. A 30 de julho de 1937, Iejov, chefe do NKVD, encaminhou a Ordem 00447 ao Politburo propondo que, entre 5 e 15 de agosto, as regiões deveriam receber cotas para duas categorias: Categoria Um, fuzilamento; Categoria Dois, deportação. Sugeriu que 72.950 deveriam ser fuzilados e 259.450 presos. Não havia como deixar de cumprir uma sugestão do NKVD confirmada pelo Politburo do partido. As regiões deveriam apresentar mais listas. As famílias dessas pessoas deveriam ser também deportadas. O Politburo confirmou essa Ordem no dia seguinte. Não demorou para que esse moedor de carne adquirisse tal impulso que, conforme a caça às bruxas se aproximava de seu auge e os ciúmes e as ambições locais se atiçavam, cada vez mais gente era jogada no moedor. As cotas foram logo cumpridas pelas regiões que pediram então números maiores: entre 28 de agosto e 15 de dezembro, o Politburo concordou com o fuzilamento de outras 22.500 pessoas e, depois, com mais 48 mil. As regiões estavam matando rápido demais: Nikita Kruschev, líder de Moscou, ordenou efetivamente o fuzilamento de 55.741 funcionários, mais do que estipulava a cota original do Politburo, que era de apenas 50 mil. Em 10 de julho de 1937, Kruschev escreveu a Stalin pedindo o fuzilamento de 2 mil ex-kulaks, a fim de cumprir sua cota. Os arquivos do NKVD mostram-no dando entrada em muitos documentos propondo prisões. Na primavera de 1938, ele já supervisionara a prisão de 35 dos 38 secretários provinciais e municipais, o que dá uma idéia do moedor de carne. Kruschev, uma vez que estava em Moscou, levava as listas diretamente a Stalin. “Não pode haver tantos!”, exclamou Stalin, certa vez. “Na verdade, há mais”, retrucou Kruschev. “Você não pode imaginar quantos existem”. A seguir, a cidade de Stalinabad recebeu uma cota de 6.277 para fuzilar, mas executou 13.259. O grande terror, todavia, foi diferente dos crimes de Hitler que destruíram sistematicamente um alvo limitado: judeus e ciganos. Na Rússia, ao contrário, a morte era aleatória: o comentário esquecido há muito tempo, o flerte com a oposição, a inveja do emprego, da mulher ou da casa de outro homem. Vingança ou simplesmente pura coincidência causaram a morte de famílias inteiras. Isso pouco importava: “Melhor ir longe demais do que não ir longe o suficiente”, disse o chefe do NKVD, Iejov, aos seus homens, enquanto a cota original de prisões da Ordem 00447 inflava para 767.307 prisões e 386.798 execuções. Ao mesmo tempo, Iejov atacava contingentes nacionais, ou seja, a execução por nacionalidades, contra poloneses e alemães que viviam na Rússia, entre outros. Em 11 de agosto, ele assinou a Ordem 00485, para liquidar “diversionistas e grupos de espionagem poloneses”, Ordem que consumiria a maior parte do Partido Comunista Polonês, a maioria dos poloneses no interior da liderança bolchevique, qualquer um que tivesse “contatos consulares” ou sociais e, é claro, também suas esposas e filhos. Cerca de 350 mil pessoas (das quais 144 mil poloneses) foram presas nessa operação, com 247.137 fuzilados (110 mil poloneses). Um minigenocídio. Poloneses foram os mais atingidos mas a operação incluiu a deportação de curdos, gregos, finlandeses, estonianos, letões, chineses e romenos. Na Mongólia, o NKVD fuzilou 6.311 padres, lordes e funcionários comunistas, cerca de 4% de sua população. “Batam, destruam sem escolher!”, ordenou Iejov a seus capangas. Aqueles que mostravam “inércia operacional” na prisão de “formações contra-revolucionárias dentro e fora do partido”, seriam eles mesmos destruídos mas a maioria da capangada tentava ultrapassar uns aos outros com relatórios com números gigantescos de pessoas presas. Iejov chegou a especificar que “se, durante a operação, umas mil pessoas a mais forem fuziladas, não é um grande problema”. Uma vez que Stalin e Iejov aumentavam constantemente as cotas, uns mil a mais aqui e ali eram inevitáveis... Uma vez iniciado o massacre, Stalin quase sumiu da vida pública, aparecendo apenas para saudar crianças e delegações. Espalhou-se o rumor de que ele não sabia o que Iejov estava fazendo. Em 1937 falou em público apenas duas vezes e em 1938 apenas uma. Stalin era o mentor, mas não estava sozinho. Com efeito, não é correto e nem útil pôr a culpa do terror em um único homem, uma vez que o assassinato sistemático começou logo depois de Lênin ter assumido o poder, em 1917, e só parou depois da morte de Stalin. Aquele era um “sistema social baseado no derramamento de sangue”. O terror, assim, não foi apenas uma conseqüência da monstruosidade de Stalin, mas com certeza se formou, expandiu e acelerou graças ao seu caráter peculiarmente dominador, refletindo seu rancor e seu espírito vingativo. “A maior delícia”, disse Stalin a Kamenev – um dos que não escaparia do moedor de carne – “é marcar o inimigo, preparar tudo, vingar-se por completo e depois ir dormir”. Enquanto as regiões cumpriam suas cotas anônimas, Stalin também matava milhares que conhecia bem. Em um ano e meio, 5 dos 15 membros do Politburo, 98 dos 139 membros do Comitê Central e 1.108 dos 1.966 delegados do XVII Congresso foram presos. Iejov entregou ao Politburo 383 listas específicas dessas vítimas, com o pedido: “Peço sanção ao Politburo para condená-los todos dentro da Primeira Categoria”. Foi isso que diferenciou Lênin de Stalin: Lênin matou todos os seus inimigos; Stalin matou os inimigos e os amigos. A maioria das listas foi assinada por Stalin, Molotov, Kaganovitch e Vorochilov. No dia 12 de dezembro de 1938, por exemplo, Stalin e Molotov assinaram 3.167 execuções. Em geral, escreviam simplesmente: “A favor”. Molotov admitiu: “Assinei a maioria – na verdade, todas – listas de prisão. Debatemos e tomamos uma decisão. A pressa dominava. Seria possível entrar em todos os detalhes? (...) Às vezes, gente inocente era presa. É óbvio que um ou dois em cada dez eram presos erradamente, mas o resto está certo”. Como disse Stalin: “É melhor uma cabeça inocente a menos do que hesitações numa guerra”. Kaganovitch lembrava o frenesi da época: “Que emoções!” A 5 de julho de 1937, o Politburo mandou o NKVD “confinar todas as esposas dos traidores condenados (...) em campos por cinco, oito anos” e tomar sob a proteção do Estado as crianças com menos de quinze anos: 18 mil esposas e 25 mil crianças foram levadas embora. Isso, porém, não foi suficiente. Em 15 de agosto, Iejov decretou que as crianças entre um e três anos de idade seriam confinadas em orfanatos, mas “crianças socialmente perigosas, com idade entre três e quinze anos, poderiam ser aprisionadas, dependendo do grau de perigo”. Quase um milhão dessas crianças foi criada em orfanatos e, com freqüência, não viram suas mães durante vinte anos. Tudo isso atingiu um clímax quando sessenta crianças com idades entre dez e doze anos foram acusadas de formar “um grupo contra-revolucionário terrorista” e ficaram presas durante oito meses. Em 8 de outubro de 1938, uma comissão do Politburo denunciou “erros muito graves no trabalho dos órgãos do NKVD” (trabalhos que ele, Politiburo, sempre convalidou) As troikas mortíferas que alimentavam o moedor de carne foram dissolvidas. Iejov, renunciou à chefia do NKVD em 23 de novembro de 1938, permanecendo, no entanto, como Comissário do Transporte de Água e membro candidato ao Politburo. Dois dias depois, em 25 de novembro, Laurenti Beria, a quem Stalin apelidou de “Promotor”, foi nomeado chefe do NKVD, trazendo seus capangas georgianos para Moscou. Nessa mesma data, Stalin e Molotov assinalaram o fuzilamento de 3.176 pessoas. Estiveram, portanto, muito ocupados. Beria logo começou a trabalhar. Entre 24 de fevereiro e 16 de março de 1939, comandou a execução de 439 prisioneiros importantes, entre os quais o marechal Iegórov e os ex-membros do Politburo Kosior, Póstichev e Tchubar. Quando dessa execução, ele já estava morando na datcha de Tchubar. Finalmente, em 10 de março de 1939, os 1.900 delegados ao XVIII Congresso se reuniram para declarar o fim de uma carnificina que fora um sucesso, ainda que levemente prejudicada pelos excessos maníacos de Iejov. Nesse Congresso, Nikita Kruschev tornou-se membro do Politburo, enquanto Beria era eleito candidato a ele. Essa liderança governou o país por toda a década seguinte sem nenhuma baixa. Afinal, o Congresso não havia declarado o fim da carnificina? A morte de Stalin, em 8 de março de 1953, provocou consternação nacional. O novo grupo de dirigentes que assumiu o poder – Malenkov, Molotov, Bulganin e Kruschev – tratou logo de dar um fim em Laurenti Beria, o policial-chefe de Stalin, determinando sua prisão e o pronto fuzilamento, o que ocorreu em setembro de 1953. Três anos depois, em fevereiro de 1956, no XX Congresso do PCUS, Kruschev lançaria as suas famosas denúncias contra Stalin, indicando que a nova sociedade soviética, dos engenheiros, dos técnicos, dos intelectuais, dos trabalhadores qualificados, do satélite e da bomba atômica, não mais podia conviver com as práticas estigmatizadas que Stalin deixara como herança. Mais tarde, Kruschev iria admitir que a era Stalin “deixou todos com sangue até os cotovelos”. A verdade é que o grande terror não teria acontecido sem Stalin. Contudo, ele também refletiu os ódios provincianos da incestuosa seita bolchevique, em que os crimes fervilhavam desde muito antes, desde os anos de exílio e guerra. A responsabilidade, no entanto, fica com as centenas de funcionários – os capangas de Iejov e, depois, de Béria – que ordenaram o perpetraram as mortes. Stalin e seus assessores mataram com entusiasmo, inconseqüência, quase com alegria e, em geral, assassinaram mais do que lhes foi pedido. Ninguém jamais foi processado por esses crimes, mesmo depois do desmonte do socialismo real e do desaparecimento da União Soviética. A matéria acima é um resumo das páginas 245 a 269 do livro “Stalin, a Corte do Czar Vermelho”, Simon Sebag Montefiore, editora Companhia das Letras, 2003. (*) Democidio é um termo criado pelo investigador político R. J. Rummel com a intenção de criar um conceito mais amplo que a definição legal de genocidio. O democídio se define como o assassinato de qualquer pessoa ou pessoas por parte de um governo, incluindo genocidio, assassinatos políticos e assassinatos masivos. |
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
O terror comunista – Final
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