sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Leia trecho de "A Civilização Feudal", de Jérô­me Baschet

16/09/2006 - 19h30

Leia trecho da introdução de "A Civilização Feudal" (ed. Globo), de Jérô­me Baschet:

Introdução
Por que se interessar pela europa medieval?

A Idade Média tem má reputação. Talvez, mais do que qualquer outro período histórico: mil anos de história da Europa Ocidental, entre os séculos V e XV, entregues às idéias preconcebidas e a um menosprezo inextirpável, cuja função é, sem dúvida, permitir que as épocas ulteriores forjem a convicção de sua própria modernidade e de sua capacidade em encarnar os valores da civilização. A obstinação dos historiadores em desafiar os lugares-comuns não fez nada contra isso, ou muito pouco. A opinião comum continua sendo associar a Idade Média às idéias de barbárie, de obscurantismo e de intolerância, de regressão econômica e de desorganização política. Os usos jornalísticos e da mídia confirmam esse movimento, fazendo apelo regularmente aos epítetos "medieval", ou mesmo "medievalesco", quando se trata de qualificar uma crise política, um declínio dos valores ou um retorno do integralismo religioso.

A construção da idéia de Idade Média

É verdade que a imagem da Idade Média é ambígua. Na Europa, pelo menos, os castelos fortificados atraem a simpatia dos alunos e os cavaleiros da Távora Redonda têm ainda alguns adeptos, enquanto a organização de torneios cavaleirescos ou de festas medievais parece ser um eficaz argumento turístico, inclusive nos Estados Unidos. Crianças e adultos visitam as catedrais góticas e são impressionados pela audácia técnica de seus construtores; os mais espirituosos impregnam-se com deleite da pureza mística dos monastérios românicos. O caráter bizarro das crenças e dos costumes medievais excita os amadores do folclore; a paixão pelas raízes, exacerbada pela perda generalizada de referências, empurra em massa para essa idade recuada e misteriosa. Já o romantismo, no século XIX, tomando o contrapé do Iluminismo, comprazeu-se em valorizar a Idade Média. Enquanto Walter Scott dava sua forma romanesca mais acabada a esse entusiasmo cavaleiresco (Ivanhoé), teóricos como Novalis ou Carlyle opunham o maravilhoso e a espiritualidade medievais ao racionalismo frio e ao reino egoísta do dinheiro, característicos de seu tempo. Do mesmo modo, Ruskin, que via na Idade Média um paraíso perdido do qual a Europa havia saído somente para cair na decadência, chegou a retomar a expressão "Dark Ages" --com a qual o Iluminismo denegria os tempos medievais--, mas para aplicá-la, a contrapelo da visão moderna, à sua própria época. Todo o século 19 europeu cobriu-se de um manto cinza de castelos e de igrejas neogóticas, fenômeno no qual confluem a nostalgia de um passado idealizado e o esforço da Igreja Romana para mascarar --sob as aparências de uma falsa continuidade, da qual o neotomismo é um outro aspecto-- as rupturas radicais que a afirmação da modernidade capitalista a obrigava a aceitar então.

Faz agora dois séculos, ao menos, que a Idade Média é balançada de um extremo a outro, sombrio contraponto dos partidários da modernidade, ingênuo refúgio daqueles a quem o presente moderno horroriza. Existe, de resto, um ponto comum entre a idealização romântica e os sarcasmos modernistas: sendo a Idade Média o inverso do mundo moderno (o que é inegável), a visão que se oferece dela é inteiramente determinada pelo julgamento feito sobre o presente. É assim que uns a exaltam para melhor criticar sua própria realidade, enquanto outros a denigrem para melhor valorizar os progressos de seu tempo. Se convém, agora, acabar com os julgamentos sumários sobre o "milênio obscurantista", não se pretende substituí-los pela imagem de uma época idílica e luminosa, de florescimento espiritual e progresso partilhado. A questão não é a reabilitação da Idade Média, ainda que não fosse totalmente inútil chegar a um certo reequilíbrio na comparação com uma Antiguidade militarista e escravagista, abusivamente ornada, pela burguesia dos séculos 18 e 19, de virtudes ideais de um classicismo imaginado, ou ainda lembrar que a grande época da caça às feiticeiras não é a Idade Média, como se acredita comumente, mas os séculos 16 e 18, que pertencem a estes Tempos que se chamam Modernos. Mas o essencial é escapar da caricatura sinistra tanto quanto da idealização: "nem legenda negra, nem legenda rosa", escreveu Jacques Le Goff. A Idade Média não é nem o buraco negro da história ocidental, nem o paraíso perdido. É preciso renunciar ao mito tenebroso tanto quanto ao conto de fadas.

Não se pode sair dessa alternativa enviesada sem compreender como e por que se formaram esta má reputação tenaz da Idade Média e seu reflexo invertido. A Idade Média carrega até mesmo em seu nome os estigmas de sua desvalorização. Media aetas, medium aevum, em latim, e as expressões equivalentes nas línguas européias, significam a idade do meio, um intervalo que não poderia ser nomeado positivamente, um longo parêntese entre uma Antiguidade prestigiosa e uma época nova, enfim, moderna. Foram os humanistas italianos da segunda metade do século 15 --como Giovanni Andrea, bibliotecário do papa, em 1469-- que começaram a utilizar tais expressões para glorificar seu próprio tempo, ornando-o com prestígios literários e artísticos da Antiguidade e diferenciando-o dos séculos imediatamente anteriores. Mas é preciso esperar o século 17 para que o recorte da história em três idades (Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos) se torne um instrumento historiográfico corrente, notadamente nas obras dos eruditos alemães (Rausin, em 1639; Voetius, em 1644; e Horn, em 1666). Enfim, no século 18, com o Iluminismo, esta visão da história se generaliza, enquanto se urde a assimilação entre Idade Média e obscurantismo, da qual se percebem os efeitos ainda hoje. Quer se trate dos humanistas do século 16, dos eruditos do século 17, ou dos filósofos do século 18, a Idade Média aparece claramente como o resultado de uma construção historiográfica que visa valorizar o presente através de uma ruptura proclamada com o passado próximo.

Nessa matéria, é a época das Luzes que constitui o momento fundamental. Para a burguesia, que cedo se apropria do poder político, a Idade Média constitui um contraponto perfeito: Adam Smith evoca a anarquia e a estagnação de um período feudal enterrado nos corporativismos e nas regulamentações, por oposição ao progresso trazido pelo liberalismo. Voltaire e Rousseau denunciam a tirania da Igreja e forjam a temática do obscurantismo medieval, a fim de melhor valorizar as virtudes da liberdade de consciência. É então que toma corpo, de maneira decisiva, a visão da Idade Média que perdura até nossos dias, pois o Iluminismo se define em oposição a ela e a imagem das trevas medievais torna mais estrondosa a novidade deste. Ele deve, então, mostrar que tudo "o que o havia precedido era somente arbitrário na política, fanatismo na religião, marasmo na economia" (Alain Guerreau). A construção historiográfica da Idade Média permite, assim, exaltar os valores em nome dos quais a burguesia se apropria do poder e recompõe a organização social, ao mesmo tempo que legitima a ruptura revolucionária com a ordem antiga. Ora, não apenas o pensamento do Iluminismo conduz a uma radical denúncia das trevas anteriores, mas também leva a tornar incompreensível a época medieval, o que só faz acentuar sua desvalorização. Criando conceitos inteiramente novos de economia (Smith) e de religião (Rousseau), os pensadores do Iluminismo provocam o que Alain Guerreau nomeia a "dupla fratura conceitual". Ocultando as noções que dão sentido à sociedade feudal, eles tornam impossível toda captação da lógica própria à sua organização e fazem-na afundar na incoerência e na irracionalidade, contribuindo, assim, para justificar a necessidade de abolir a ordem antiga.

Uma vez que ela constitui uma época manchada por um preconceito infamante excepcionalmente vigoroso, a Idade Média convida, com particular acuidade, a uma reflexão sobre a construção social do passado e sobre a função presente da representação do passado. Como acaba de ser dito, a idéia de um milênio de obscurantismo corresponde a interesses precisos: a propaganda dos humanistas, de início, e, mais tarde, o elã revolucionário dos pensadores burgueses ocupados em solapar os fundamentos de um regime antigo, do qual a Idade Média é a quintessência. É preciso considerar que ainda vivemos no mundo ao qual eles deram forma, pois sua visão da Idade Média continua a exercer o papel de lugar-comum. Sem dúvida, a necessidade de tal contraponto não é mais tão imperiosa como era no fim do século XVIII. Entretanto, esse passado, tão longínquo como bárbaro, ainda presta bons e leais serviços e o caráter quase inextirpável das idéias preconcebidas sugere que não se renuncia facilmente ao muito cômodo contraponto valorizador medieval. Este contribui a nos convencer das virtudes da nossa modernidade e dos méritos de nossa civilização. A maior parte das culturas teve grande necessidade da imagem dos bárbaros (ou dos primitivos), pertencentes a um lugar distante exótico ou presentes para além de suas fronteiras, a fim de se definirem elas mesmas como civilizações. O Ocidente não é exceção, mas ele apresenta também essa particularidade de ter uma época bárbara alojada no seio de sua própria história. Em todo caso, o alhures ou o antes bárbaro são decisivos para constituir, por contraste, a imagem de um aqui e agora civilizado. Interrogar-se sobre as noções de barbárie e de civilização e pôr em dúvida a possibilidade de julgar as sociedades humanas em função de tal oposição: é também a isso que nos convida a história da Idade Média.

Estudar a Idade Média em terras americanas

Mas que sentido existe em estudar o Ocidente medieval a partir das terras americanas e, em particular, mexicanas? Por que se interessar, a partir do México, por uma sociedade tão longínqua no tempo e no espaço? A data de 1492, ponto de articulação convencional entre Idade Média e Tempos Modernos, fornece um primeiro elemento de resposta. Este ano é marcado por uma notável constelação de eventos de primeira importância para a Península Ibérica e para o Ocidente: além da chegada de Colombo nas ilhas das Caraíbas, o glorioso fim do cerco de Granada levado a cabo por Fernando de Aragão e Isabel, a Católica, a expulsão dos judeus dos reinos de Aragão e Castela, sem falar na publicação da primeira gramática de uma língua vernácula, a Gramática castellana, de Antônio de Nebrija. A conjunção desses eventos em alguns meses não se deve ao acaso, mas corresponde, ao contrário, a um encadeamento lógico, bem sublinhado por Bernard Vincent. Interessa-nos, particularmente, aqui, o laço entre o fim da Reconquista e o início da aventura marítima lançada em direção ao Oeste, que rapidamente conduzirá à Conquista. Os dois fatos - assim como a expulsão dos judeus - participam de um mesmo projeto de consolidação da unidade cristã, da qual os Reis Católicos pretendem, entre os soberanos ocidentais, ser os campeões. Igualmente, uma vez eliminada a dominação muçulmana na Península Ibérica e afirmada a unidade cristã desta, era lógico que Fernando e Isabel pusessem um fim à longa espera de Colombo e aceitassem, finalmente, apoiar seu empreendimento, na esperança de projetar essa unidade para além dos territórios recentemente conquistados, para a maior glória de Deus e de seus servidores reais. Nesse sentido, Reconquista e Conquista revestem-se de uma profunda unidade e participam de um mesmo processo de unificação e de expansão da cristandade. Em 1552, o cronista López de Gómara o diz, de resto, com uma extrema clareza: "Desde que foi terminada a conquista sobre os mouros [...] começou a conquista das Índias, de modo que os espanhóis estiveram sempre em luta contra os infiéis e os inimigos da fé".

Outra marca de continuidade: os conquistadores das terras americanas adotam como protetor e santo padroeiro Santiago Matamoros, como no tempo da Reconquista contra os muçulmanos. Pouco importa que não exista nenhum "mouro" por aqui; basta que os "índios" façam suas vezes, de onde a perpetuação, até nossos dias, da dança dos mouros e dos cristãos, praticada na Espanha desde o século XII. De resto, a cristianização dos "índios" prolonga e reproduz a dos mouros de Granada, seu prelúdio imediato. É verdade que a Conquista deve ser compreendida em função da luta simultânea contra o islã e, particularmente, contra o perigo otomano, que preocupa então os soberanos hispânicos ainda mais do que as Índias (até que eles percebam em suas riquezas uma útil ajuda para fazer face à ofensiva turca [Hernán Taboada]). No entanto, mesmo se a referência antiislâmica da Conquista é tanto presente como passado, pode-se enfatizar que existe uma forte continuidade entre um fenômeno tipicamente medieval como a Reconquista e um outro fato, a viagem para o Oeste e a conquista americana, que é geralmente considerada profundamente moderna. Nesse sentido, 1492 não é a linha divisória entre duas épocas tão estranhas uma à outra, como o dia e a noite, mas sim o ponto de junção de dois momentos históricos dotados de uma profunda unidade. É verdade que a Conquista não é uma reprodução idêntica da Reconquista, mas ela é seu inegável prolongamento. É preciso, portanto, reconhecer que o recorte tradicionalmente admitido entre Idade Média e Tempos Modernos deve ser amplamente repensado e que a Conquista mergulha suas raízes na história medieval do Ocidente.

Os espanhóis que tomam pé no continente americano são impregnados de uma visão de mundo e de valores medievais. Os primeiros dentre eles ignoram que atingiram um mundo desconhecido. Cristóvão Colombo encontra o que não procurava e não sabe que o que ele encontra não é o que procurava. Pode-se, é verdade, nuançar a oposição tradicional entre Colombo, descobridor malgrado ele mesmo, e Vespúcio, verdadeiro "inventor" do continente americano, notando que o primeiro, quando de sua terceira viagem, evoca uma terra muito grande "da qual ninguém jamais teve conhecimento". Permanece o fato, no entanto, de que ele morre sem renunciar a acreditar que atingira seu objetivo, quer dizer, as terras que pertencem ao que nós chamamos Ásia. Colombo não tem nada de um moderno. E é preciso, se ainda há necessidade disso, dissipar um eventual mal-entendido: seu gênio não está absolutamente no fato de ter defendido a esfericidade da Terra, já admitida na Antiguidade e, depois, por uma boa metade dos teólogos medievais, como Alberto, o Grande, ou Pedro de Ailly. O verdadeiro mérito de Colombo, além de seus talentos de navegador e de organizador, está ligado à acumulação de uma série de erros de cálculo. O debate suscitado pelo projeto de Colombo, ao longo dos anos que precederam sua aprovação, não diz respeito ao caráter esférico ou não da Terra, mas à avaliação da distância marítima a ser percorrida, a partir da Europa, para atingir o Japão pelo Oeste e, por conseqüência, ao caráter factível da rota ocidental para as Índias. É por que Colombo estima, na base de uma interpretação errônea dos dados incompletos disponíveis em seu tempo, que o limite terrestre ocidental e as terras do oriente extremo são separados somente por "um mar estreito", que tem a audácia de se lançar ao mar. Finalmente, a despeito das conseqüências imprevistas de sua aventura, Colombo é um viajante medieval, inspirado por Marco Polo, mercador veneziano do século XIII, e por Pedro de Ailly, cardeal e teólogo escolástico da virada do século XIV para o século XV. Fundando o essencial de suas teorias sobre a Imago mundi deste último, que não é uma obra particularmente inovadora, ele se obstina em querer encontrar o Grande Khan, a fim de concretizar as esperanças de conversão deixadas por Marco Polo, e em procurar o acesso para o Japão, que ele chama de Cipango, porque este autor enfatiza que, lá, as casas são feitas de ouro.

Os primeiros conquistadores exploram as terras americanas na esperança de ver ali se materializar a geografia imaginária da Idade Média. Durante sua terceira viagem, Colombo pensa ter localizado o paraíso terrestre na embocadura do Orenoco; Cortés enforca-se para descobrir o reino das Amazonas, promessa de enormes riquezas, e escreve a Carlos Quinto que está prestes a atingir esse objetivo; muitos outros partilham esses sonhos, quando não afirmam mesmo ter encontrado os povos monstruosos, como os panócios de grandes orelhas ou os cinocéfalos, descritos pela tradição enciclopédica medieval desde Isidoro de Sevilha, no século VII. Assim, mesmo quando se reconhece, algumas décadas após a primeira viagem de Colombo, que as terras então atingidas formam um continente até lá ignorado pelos europeus, e ao qual se começa a dar um nome novo - e mesmo quando se reconhece que se tratava de um evento considerável, o mais importante desde a Encarnação, diz Gómara -, a novidade do mundo assim "descoberto" tem bastante dificuldade de ser assumida pelos contemporâneos. Como sugeriu Claude Lévi-Strauss, os espanhóis deixaram suas terras menos para adquirir conhecimentos inéditos do que para confirmar suas velhas crenças; e eles projetaram sobre o Novo Mundo a realidade e as tradições do antigo. Não há símbolo mais estrondoso desse espírito - preocupado em confirmar um saber estabelecido mais do que descobrir o desconhecido - do que a atitude de Colombo obrigando seus homens a professarem, sob juramento, que Cuba não é uma ilha e prevenindo que castigaria os recalcitrantes, simplesmente porque suas teorias requeriam que assim fosse (Tzvetan Todorov).

Neste ponto, é inevitável evocar os objetivos da descoberta e, depois, da conquista. Tradicionalmente, são evocados três: a necessidade de uma via para o ouro e para as especiarias das Índias, permitindo contornar o bloco otomano; a busca de diferentes produtos de consumo corrente, como a madeira, o peixe do Atlântico Norte e a cana-de-açúcar, cuja produção, desenvolvida na ilha da Madeira e nas Canárias, está então em pleno desabrochar; e, enfim, o desejo de converter e de evangelizar novas populações. Esses objetivos podem ser reduzidos a dois: um material (do qual o ouro é o símbolo) e outro espiritual (a evangelização); ou, ainda, um político (a glória do rei) e outro religioso (a glória de Deus). Tal apresentação viola radicalmente a lógica dos quadros mentais em vigor naquela época. No entanto, certos autores, como Pierre Vilar ou Tzvetan Todorov, sublinharam corretamente que o ouro e a evangelização não deviam ser percebidos como objetivos contraditórios. Eles combinam-se sem dificuldade no espírito dos conquistadores; e se Colombo está preocupado até a obsessão com o ouro, é notadamente porque este deve servir para financiar a expansão da cristandade e, em particular, o projeto da cruzada destinada a retomar Jerusalém dos otomanos, do qual ele espera convencer Fernando de Aragão. A viagem indiana deve, finalmente, reconduzir à Terra Santa, segundo o modelo medieval da cruzada; seu objetivo último não é outro senão a vitória universal de Cristo. Mais largamente, seria preciso se perguntar o que o ouro representava para os homens desse tempo e deixar de considerar evidente que ele não poderia significar nada além do que ele é para nós: um equivalente monetário, uma riqueza material, um capital a entesourar ou a investir. Na Idade Média e no século XVI, é verdade, o ouro é também um metal dotado de um valor extremo e, secundariamente, de um uso monetário. Mas sua significação é certamente muito mais distante daquela de que ele é revestido hoje do que nós poderíamos imaginar. O ouro dos conquistadores raramente é entesourado, sendo, antes, objeto de atitudes dispendiosas, estranhas à mentalidade contemporânea. Muito mais do que um elemento de riqueza que vale por si mesmo, ele parece ser um signo e uma ocasião de prestígio. Para Colombo, ele é a prova da importância de sua descoberta e uma esperança de alta dignidade. Para numerosos conquistadores, ele é o meio de alcançar uma posição social mais elevada, se possível a nobreza. Assim, o ouro significa menos um valor econômico do que um estatuto social ("ele confere a glória e o poder; ele é o símbolo tanto de uma como do outro", sublinha Pierre Bonnassie). Além disso, ele não é apenas uma realidade material, tão importantes são as virtudes mágicas e o simbolismo espiritual que lhe são agregados. O ouro é menos matéria do que luz, e seu brilho o torna apto a sugerir as realidades celestes; ele articula valores materiais e espirituais, segundo uma lógica totalmente medieval, que Colombo exprime maravilhosamente: "[...] el oro es excelentissimo; del oro se hace tesoro y con él, quien lo tiene, hace cuanto quiere en el mundo y llega a que echa las ánimas al paraiso". Em resumo, a sede de ouro é um traço antigo, que em si não tem nada de moderno e tem ainda menos a ver com uma lógica de tipo capitalista. Há, então, um grande perigo em ler os fatos da aventura americana creditando aos seus autores nossa própria mentalidade, quando é altamente provável que seus valores e a lógica de seus comportamentos fossem, no essencial, aqueles dos séculos medievais.

Não é somente por suas formas de pensamento que o mundo medieval se faz presente em terras americanas. Muitas das instituições essenciais da organização colonial são retomadas mais ou menos diretamente da Europa medieval. Discute-se para definir em que medida a encomienda está ligada às instituições feudais. Quanto à Igreja, cujo papel na estruturação dominação colonial é tão fundamental, teríamos dificuldade de encontrar muitas diferenças com a Igreja Romana medieval. As ordens mendicantes, que têm o papel principal na conquista espiritual (e material) de numerosas regiões, são o fruto do século XIII europeu, enquanto o culto dos santos e das imagens, que tanto facilita a obra de conversão das populações indígenas, constitui uma das grandes invenções medievais. Para não prolongar de modo desmesurado a lista, como seria fácil fazê-lo, lembro apenas alguns exemplos, como as universidades, outra grande criação dos séculos XII e XIII que se reproduz no Novo Mundo (tão literalmente que a Universidade do México, criada em 1551, adota os estatutos da Universidade Salamanca, que remontam ao século XIII), as cidades da América, que se edificam segundo a planta em tabuleiro das cidades novas européias do século XIII, ou ainda as instituições comunais importadas da Europa (ainda hoje, um dos funcionários municipais, o alcalde, deve seu nome ao termo árabe al-cadi, utilizado na Espanha medieval e que significa "juiz").

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