domingo, 14 de novembro de 2010

O Vaticano combate secularização da Espanha com beatificação de mortos na Guerra Civil

Revista Veja  nº 2033    2007   Internacional
Ferramenta da fé

Denise Dweck
 
AP
Republicanos alvejam imagem de Cristo nos arredores de Madri, durante o conflito: a Igreja apoiava os fascistas
O Vaticano realizou na semana passada a maior cerimônia de beatificação de sua história nos tempos modernos. No domingo, mais de 40.000 pessoas se aglomeraram na Praça de São Pedro para assistir à missa em que foram beatificados 498 católicos mortos durante a Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939. Os novos beatos eram padres, freiras, bispos e diáconos assassinados pelos republicanos por apoiar o levante das forças fascistas do general Francisco Franco. Os republicanos foram derrotados, a guerra deixou um saldo de meio milhão de mortos e a ditadura de Franco duraria quase quarenta anos, até sua morte, em 1975. Os religiosos foram beatificados, segundo o Vaticano, por ter morrido em nome da fé. "Esse martírio ocorrido com pessoas comuns é um testemunho importante para a sociedade secularizada de hoje", discursou o papa Bento XVI, no domingo. O processo de resgate dos mártires da Guerra Civil Espanhola começou no papado de João Paulo II, que beatificou 977 católicos assassinados no conflito, dos quais onze já se tornaram santos. Embora a Igreja sempre tenha lembrado e reverenciado seus mártires, a pertinácia com que o Vaticano celebra os pastores mortos no conflito espanhol tem um evidente viés político. Ela denota apoio à luta interna da Igreja espanhola para frear o processo de secularização do país.
 
Andrew Medichini/AP
O papa Bento XVI saúda fiéis após a beatificação: "Testemunho importante para a sociedade de hoje"
"A beatificação da semana passada é uma forma de a Igreja mostrar força diante das mudanças de âmbito moral e administrativo propostas pelo governo do primeiro-ministro José Luis Zapatero", diz o filósofo Flávio Senra, coordenador do mestrado em ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Em 2005, o governo socialista conseguiu aprovar o casamento entre homossexuais, inclusive com direito à adoção de crianças. A disputa de forças está ligada ainda ao projeto de Zapatero de rever o legado de Francisco Franco, com a criação da Lei de Memória Histórica, que ordena a retirada de símbolos do franquismo de prédios públicos e amplia indenizações às famílias das vítimas da ditadura fascista. A lei foi aprovada na quarta-feira passada pela Câmara Baixa do Parlamento e será votada no Senado. Some-se a isso o fato de que, embora a identidade cultural da Espanha tenha sido construída pelo cristianismo, a debandada do rebanho católico nos últimos tempos foi avassaladora. Cerca de 77% dos espanhóis se declaram católicos, mas apenas 20% dos fiéis vão à missa todas as semanas – entre os jovens católicos, só 10% o fazem. Reacender a fé católica na Espanha seria outro motivo do Vaticano para promover as beatificações em massa dos mártires da Guerra Civil.
 
AFP
Corpos de católicos expostos na rua em Barcelona:
7 000 padres e freiras foram mortos
Estima-se que 7.000 integrantes da Igreja Católica tenham sido mortos durante a Guerra Civil Espanhola. Na Catalunha e em Valência, padres foram queimados e castrados. Alguns foram enterrados vivos após ser obrigados a abrir suas próprias covas. Outros, depois de assassinados, ficavam expostos à população dentro de seu caixão. Muitas igrejas foram vandalizadas e incendiadas. Em algumas cidades, múmias das catacumbas de conventos foram exumadas. O fato de a Igreja cerrar fileiras com as forças fascistas deve-se às circunstâncias políticas da época. Os nacionalistas, liderados pelo general Franco, tencionavam livrar o país da influência comunista e resgatar os valores da Espanha tradicional, autoritária e católica. Para chegar a esse objetivo, era preciso esmigalhar a República, proclamada em 1931 com a queda da monarquia. Já os republicanos tinham urgência em deter o avanço do fascismo, que já havia conquistado a Alemanha, a Itália e a Áustria.
 
AFP
O ditador Francisco Franco: a Espanha moderna quer varrê-lo da memória
A Guerra Civil Espanhola não foi apenas um conflito interno entre os espanhóis. Era uma guerra de todas as forças políticas que estavam em disputa na Europa. Entre os republicanos, encontravam-se anarquistas, stalinistas, trotskistas, socialistas moderados e democratas liberais. Entre os nacionalistas, havia fascistas, monarquistas, latifundiários e o clero católico. Como definiu o historiador inglês Antony Beevor, a Guerra Civil Espanhola foi "uma guerra mundial por procuração". As forças de Franco recebiam apoio militar da Itália fascista de Benito Mussolini e da Alemanha nazista de Adolf Hitler. A Frente Popular tinha o apoio da União Soviética. O ataque aéreo a Guernica, que devastou a cidade e inspiraria o pintor espanhol Pablo Picasso a criar uma de suas telas mais famosas, foi realizado integralmente pela força aérea alemã, a temida Luftwaffe. Hoje, para o Vaticano, reverenciar o martírio de seus fiéis na Guerra Civil Espanhola é uma forma de ratificar sua posição conservadora. Mesmo que isso implique trazer à memória a tenebrosa ditadura de Francisco Franco.

0 comentários:

Postar um comentário