segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Um outro olhar sobre o cristianismo – uma entrevista com Rodney Stark

Um outro olhar sobre o cristianismo



Por Mike Aquilina
Um dos mais respeitados sociólogos da religião, Rodney Stark estuda o fenômeno das conversões religiosas desde o começo da década de 1960; o seu foco são especialmente os movimentos religiosos mais recentes como o Mormonismo, o Moonismo e o Hare Krishna. É autor de muitos livros, dentre os quais destacamos: The Rise of Christianity (HarperSanFrancisco, 1997), The Churching of America, 1776–1990: Winners and Losers in Our Religious Economy (Rutgers University Press, 1992), and A Theory of Religion (Peter Lang, 1987). Agnóstico, Stark leciona na Universidade de Washington em Seattle, perto da casa onde mora com a esposa. Foi entrevistado por Mike Aquilina originalmente para a revista norte-americana Our Sunday Visitor de janeiro / fevereiro de 2000.
 
Aquilina: Você diz que o seu livro The Rise of Christianity (“A ascensão do cristianismo”) é um “hobby”. O que o levou a interessar-se pela história da Igreja e não por miniaturas de navios em garrafas?
Rodney Stark: Meus hobbies, à exceção de ser um fã dos esportes, sempre envolvem livros. Li alguns livros recentes de História e disse: “Isto aqui é legal”. Li um pouco mais e disse: “Posso contribuir com alguma coisa, porque, se são bons em História, são fracos em Ciências Sociais”.

Muitos cristãos poderiam achar a sua obra iconoclasta. Você solapou uma série de verdades tradicionais sobre a história das Igrejas.
Não acho que as pessoas devam ficar ofendidas. As minhas descobertas tornam as realizações dos cristãos ainda mais maravilhosas.

Uma das tradições que você questiona é a de que o cristianismo teria sido inicialmente um movimento de pobres. Por quê?
Desde cedo, havia muitas mulheres cristãs nas famílias de classe alta e senatorais, e mesmo na família imperial. Em 1920, encontrou-se uma pedra de pavimento dedicada a Erasto, nome mencionado por Paulo na Epístola aos Coríntios. E as inscrições mostram que Erasto era tesoureiro da cidade. Também há motivos para crer que a igreja primitiva era um grupo bastante culto. Por exemplo, ao ler o Novo Testamento, pergunte-se: A quem essas pessoas escrevem? A linguagem que empregam é a linguagem usada pelas pessoas cultas.

A pedra de pavimento com o nome de Erasto, encontrada em Corinto no ano de 1929.

Você descreve as mazelas cotidianas da Antiguidade. O cristianismo mudou isso?
O cristianismo tornou-as muito mais suportáveis. A Igreja não limpou as ruas. Os cristãos não instalaram esgotos. De maneira que você continuava a conviver com uma vala aberta no meio da rua, na qual podiam aparecer cadáveres em decomposição. O que, sim, os cristãos faziam era cuidar uns dos outros. As suas casas eram tão cheias de fumaça como as dos pagãos, já que não existiam chaminés; eram frias, úmidas e fedorentas. Mas os cristãos amavam-se uns aos outros e por isso cuidavam uns dos outros quando ficavam doentes. Alguém levava sopa ao doente. É possível fazer uma infinidade de coisas para aliviar essas misérias quando há preocupação pelos outros.

Você também defende que o crescimento se deu mais por conversões individuais do que por conversões em massa. Por quê?
Não temos um único caso documentado de conversão em massa. Sim, há a passagem no Livro dos Atos [2, 41], e eu não sou do tipo de pessoa que diz: “Não confie na Bíblia”. Mas é preciso entender o que os números significavam para as pessoas da época. Eram exercícios retóricos: dizia-se um milhão, quando na verdade se queria dizer cem. O que realmente se queria dizer era “muitos”. Penso que nos Atos os números significam: “Veja, estão acontecendo coisas maravilhosas!” Se os dados estiverem corretos, Jerusalém tinha cerca de vinte e cinco mil habitantes naquela época. Assim, falar de oito ou dez mil conversões fica um pouco fora da escala.

E quanto às conversões forçadas?
Não houve nenhuma no período de que trato. Constantino não causou o triunfo do cristianismo: pegou carona nele. De fato, ousaria dizer que o imperador causou grandes estragos. Penso que é ruim para as igrejas tornarem-se parte da ordem estabelecida. Acabam envolvidas na esfera mundana de maneiras impróprias e corruptoras. Ao final do império de Constantino, vemos homens competindo loucamente para se tornarem bispos só por causa do dinheiro. O cristianismo já não se difundia de pessoa para pessoa.
Se examinarmos a propagação do cristianismo depois do Império, veremos que se deu quase que totalmente por meio de tratados e batismos de reis. Penso que uma das razões por que a freqüência à Igreja era tão fraca na Alemanha e na Escandinávia medievais consistia em que esses povos não eram cristãos de verdade. E talvez o fossem se a Igreja não tivesse feito parte da ordem estabelecida. Os seus territórios ter-se-iam tornado cristãos porque muitas pessoas teriam ido de porta em porta para cristianizar os habitantes – e depois batizado o rei.
Isso foi ruim para a Igreja. Acho que o papa João Paulo II concordaria comigo; e acho que muitos papas medievais me queimariam por dizer isso.
Por outro lado, os católicos americanos entendem bem o que digo. Sabem o como foi bom para a Igreja ter de lutar pela sua vida nos Estados Unidos. A velha história protestante diz que o padre ficava à espera do navio no porto e pronto: mais um carregamento de católicos. Mas isso não é verdade; os imigrantes não costumavam freqüentar a igreja nem contribuir financeiramente. Tinham de ser transformados em católicos de verdade. Trata-se de um feito memorável. A Igreja superou muito bem esse desafio, e a Igreja Católica nos Estados Unidos é muito forte se comparada à Igreja na América Latina.

Outra verdade tradicionalmente aceita é que muitos cristãos foram martirizados. No entanto, você diz que as testemunhas de sangue foram poucas.
Há um consenso entre os historiadores de que o número de mártires não foi tão grande assim e de que quase chega a ser possível saber o nome de cada um. Os romanos decidiram atacar o movimento pela cabeça. Isso teria funcionado com as outras religiões da época, uma vez que o paganismo não tinha base: os templos pagãos funcionavam como lojas de um shopping center; e as pessoas não se importavam muito com ser fiéis a uma ou outra. Assim, se os romanos enxotassem o sacerdote-chefe e tirassem os subsídios do governo, um templo pagão se desmancharia.
O império perseguiu o cristianismo desse mesmo jeito, pensando: “É só exterminarmos os bispos que o resto ruirá sozinho”. É claro que isso não funcionou, porque havia noventa e dois caras em condições de se tornarem bispos, como acontece num movimento surgido das bases.

Isso minimiza a idéia tradicional de que “o sangue dos mártires é sementeira de cristãos”?
De maneira nenhuma. Uma das coisas que podemos dizer sobre as verdades religiosas é que elas têm de ser aceitas por fé, e a fé precisa ser confirmada. E o que a pode confirmar mais do que saber que pessoas que você admira têm tanta certeza da verdade da fé que estão dispostas a morrer por ela?

Você também defende que o cristianismo foi uma força social extraordinariamente benéfica para as mulheres.
E foi! Uma mulher cristã tinha vantagens enormes se comparada com a sua vizinha, igual a ela em tudo exceto pelo fato de ser pagã. Primeiro, em que idade casavam? A maioria das pagãs casava-se por volta dos onze anos, antes da puberdade, com algum cara de trinta e cinco. E não podiam opinar. As cristãs opinavam muito e casavam por volta dos dezoito anos.
O aborto matava muitas mulheres na época, mas as cristãs estavam protegidas disso. Disso, e também do infanticídio: os pagãos matavam bebês do sexo feminino a torto e a direito. Escavações revelaram esgotos lotados de ossadas de recém-nascidas. Mas os cristãos não faziam isso. Conseqüentemente, a proporção entre os sexos mudou e os cristãos não padeciam da grande escassez de mulheres que castigava o resto do império.

E quanto à Igreja em si? Como é que as mulheres encontraram o seu lugar?
As mulheres eram líderes na Igreja primitiva. Paulo deixa isso claro. E temos uma carta de Plínio* em que ele diz haver diaconisas entre as pessoas que torturava**. As traduções da Bíblia que substituem “diaconisa” por “esposa do diácono” não nos ajudam em nada. Não estou dizendo que a Igreja ordenava mulheres naquele tempo; é claro que não ordenava. Mas as mulheres eram líderes, e provavelmente havia um número desproporcional de mulheres entre os primeiros cristãos.
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(*) Plínio o jovem, escritor e político romano (c. 61 a.C.- c.112 d.C.)
(**) As diaconisas foram mulheres santas, piedosas, instituídas diríamos hoje – e não ordenadas sacramentalmente –, para um ministério da Igreja que nada tem a ver com o sacramento da Ordem. O rito de instituição das diaconisas – largamente existente nos tempos antigos da Igreja bizantina e mesmo na Síria e no Egito – faz pressupor não um sacramento, senão a entrega de um mandato para determinado serviço. Era semelhante aos atuais ritos de instituição do acólito, do leitor e do ministro extraordinário da comunhão eucarística, ou às anteriores “ordens menores” (acólito, leitor, ostiário, exorcista) e ao extinto “subdiaconato” (Dr. Rafael Vitola Brobdeck, “A mulher e o sacramento da Ordem”, no site Veritatis Splendor).
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Talvez encontrássemos alguns maridos nas atividades da Igreja primitiva, mas com certeza encontraríamos as suas esposas. Isso é outra coisa que não compreendemos: em toda a sociedade de que temos alguma notícia, as mulheres são mais religiosas que os homens. Não temos certeza do porquê, mas isso significa que os movimentos religiosos são femininos na sua maioria. Isso ficou mais evidente nos séculos XIX e XX, dos quais temos números confiáveis. As pessoas já comentavam isso na Igreja primitiva, e os Padres da Igreja notavam que o movimento tinha mais mulheres.

Mesmo historiadores cristãos tendem a desacreditar histórias miraculosas e a minimizar a veracidade dos documentos da Igreja primitiva. No entanto, você confia neles de maneira notável.
Alguns estudiosos da Patrística criticaram-me dizendo que aceitei ingenuamente os relatos primitivos. Certa mulher, em especial, mencionou as regras da Igreja primitiva contra o aborto e o infanticídio feminino, dizendo que eu parecia não compreender que essas proibições não eram obedecidas por todos.
Bem, é claro que eu sabia disso. Receio, porém, ser tão ingênuo que chegue a crer que os grupos que criticam alguma coisa são mais contrários a ela do que os grupos que, nos seus textos oficiais, a proclamam como uma ação louvável e maravilhosa, que todos devemos praticar.
Todos os filósofos clássicos, desde Platão e Aristóteles, aprovaram o aborto. E também não viram problemas no infanticídio. Claro, houve cristãos que não obedeceram aos mandamentos da Igreja, assim como há mórmons que mascam tabaco. No entanto, assim como a maioria dos mórmons não masca tabaco, a maioria dos cristãos não praticava o aborto nem o infanticídio.
Quanto aos milagres, veja, é fato que há pessoas que ficam curadas – espontanea e, ao que parece, milagrosamente. Nenhum médico na terra seria capaz de negá-lo. Qual é a causa? Não sei. Mas negar que haja pessoas que ficam curadas nas igrejas dos Estados Unidos é simplesmente um erro. Não há motivos para negar que tais coisas acontecem só porque não partilhamos da explicação dada sobre ela por pessoas de outro local ou época.
Alguém da Harvard Divinity School poderia dizer: “Isso não foi um milagre; foi uma remissão espontânea”. “Remissão espontânea” é a maneira de os especialistas dizerem “não temos a menor idéia do que aconteceu”. Mesmo o cientista mais cabeça-dura do mundo não tem razão para duvidar da existência de milagres na Igreja primitiva. As opiniões do ateu de aldeia são mais fundamentalistas do que as de qualquer batista.

Você conclui o livro dizendo que “o que o cristianismo deu aos seus conversos foi nada menos do que humanidade”. O que quer dizer?
Quando olhamos para o mundo romano, é inevitável perguntar-se se ao menos metade daquelas pessoas tinha qualquer traço de humanidade. Ir à arena para ver pessoas serem torturadas e mortas não me parece muito saudável. Sou um grande fã de futebol americano. Sempre que um jogador se machuca, alguém chama uma ambulância e os médicos o tiram do gramado em vinte minutos. O público não quer gente machucada em campo. Mas os romanos queriam e até gritavam: “Acaba com ele! Pula em cima dele!”

O cristianismo colaborou apenas com a eliminação do circo?
Não, era toda uma nova mentalidade. Entre os pagãos, parecia que as pessoas só se preocupavam umas com as outras de uma forma tribal. É o que vemos hoje nos Bálcãs: você cuida dos seus irmãos e mata todas as outras pessoas. O cristianismo disse ao mundo greco-romano que a definição de “irmão” tem de ser muito mais abrangente. Há coisas que você deve fazer em benefício de qualquer ser humano vivo.

Você fica preocupado com a ascensão dos esportes sanguinários e dos filmes violentos e com a volta do aborto e do infanticídio com força total?
Esses fatos não me surpreendem; ofendem-me. Conseguimos manter por mais de um século um período de decência pública considerável. Agora talvez estejamos deixando-nos arrastar para aquilo que é mais vulgar. Culpo os tribunais, que dizem que não podemos censurar nada a não ser a religião. O fato é que, quando eu era criança, havia leis sobre o que se podia ou não pôr numa mala-direta ou mostrar nos filmes.
Algumas dessas leis podem ter sido rígidas demais, mas como saber onde parar? Onde você põe os seus limites? Se você não os deixa bem firmes, logo as pessoas estarão explodindo umas as cabeças das outras. Não é que nos anos quarenta as pessoas não morressem nos filmes, mas tampouco havia essa imoralidade toda. O mal sempre era punido antes do final do filme. Também não havia todo esse banho de sangue gratuito. Esse tipo de coisa vira a cabeça de certas pessoas e assim acabamos ajudando a criar monstros.

Você diz que o cristianismo teve sucesso em parte por causa dos seus elevados padrões morais. Hoje, porém, muitas Igrejas aliviam a barra para tornar a religião mais popular. Como você analisaria essa atitude?
São idéias que já nascem mortas. As pessoas avaliam as religiões pelo seu custo e as mais baratas acabam desvalorizadas. As religiões que nada pedem nada recebem. É possível escolher: ser uma igreja ou um clube de campo. Quando se escolhe ser uma igreja, é melhor oferecer religião aos assistentes. Do contrário, é melhor construir um campo de golfe, pois nenhum clube vai para frente sem um campo de golfe. Foi isso o que aconteceu com os episcopalianos, com os metodistas, os congregacionalistas, unitaristas e, de fato, com alguns setores do catolicismo.

Os cristãos estão abrindo os olhos para isso?
A maioria das denominações está cerrando fileiras. E a razão é a falta de fiéis. Os jovens clérigos têm motivações religiosas das quais os mais velhos não partilhavam necessariamente: há quarenta anos atrás, ser clérigo era um emprego muito mais atraente. Se você olhar para as ordens católicas, vai ver que umas se estão recuperando e que outras novas estão surgindo. As únicas a crescer são aquelas que possuem regras de vida em comunidade, ao invés de deixarem cada membro abandonado a si; aquelas que têm normas para organizar o culto religioso; aquelas cujos membros usam roupas que os distinguem de um burocrata comum ou de um professor de escola. Esse fenômeno é um CQD. Se a religião fica muito barata, ninguém se dispõe a pagar por ela.
Por exemplo: você precisa mesmo comer hambúrgueres às sexta-feiras? Acabar com a abstinência às sextas-feiras pareceu-me um equívoco por parte da Igreja Católica. Quando era garoto – na minha cidade havia 60% de protestantes e 40% de católicos –, a sexta-feira era um marco cultural extremamente importante. Toda a sexta-feira lhe recordava quem era igual a você e quem era diferente – e de uma maneira que não era ofensiva para nenhum dos dois lados.
As partidas de futebol americano na escola eram nas noites de sexta. Depois do jogo, a gente levava a namorada para um restaurante estilo drive-in. Por volta da meia-noite, ouvíamos os garotos católicos fazer contagem regressiva e gritar: “Hambúrguer!”. Todos riam. Tratava-se de um pequeno ritual social que dava aos católicos um tremendo sentido de solidariedade. O hambúrguer parecia-nos uma grande diferença denominacional.

Qual é a sua opinião sobre o papa João Paulo II?
Foi alguém que sabia como corriam as coisas para os primeiros cristãos, que sabia o que significa lutar pela vida da sua Igreja. Se um bispo italiano quer saber quantos católicos há na sua diocese, basta procurar nos livros de censo quantas pessoas moram ali. Um bispo na Polônia comunista sabia que o censo e o número de católicos não eram a mesma coisa e que precisava arrumar alguns católicos se quisesse ter uma Igreja. Quer você concordasse com ele, quer não, está muito claro que esse Papa era um homem santo, um homem que estava cumprindo uma missão.

Uma vez você escreveu que “não é religioso no sentido em que o termo é convencionalmente empregado”.
É verdade, embora nunca tenha sido um ateu. O ateísmo é uma fé ativa: “Eu acredito que não há Deus”. Mas eu não sei no que creio. Fui criado como luterano em Jamestown, Dakota do Norte. Tenho problemas com a fé. Não me orgulho disso. Não acho que isso faça de mim um intelectual. Acreditaria se pudesse, e talvez venha a consegui-lo antes de chegar ao fim. Ficaria feliz com isso.
Rodney Stark
É vice-presidente do Saint Paul Center for Biblical Theology e autor de mais de uma dúzia de livros sobre história, doutrina e espiritualidade católicas. Participa freqüentemente de programas de TV e de rádio e os seus artigos saem em diversas publicações nos EUA e no mundo.

Fonte: Touchstone Magazine
Link: http://www.touchstonemag.com/archives/article.php?id=13-01-044-i
Tradução: Quadrante

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