Por Daniel Rops*
É bastante discutível o termo "Idade Média" com que se designa habitualmente este período e aqueles que o precederam e o seguiram. Como é lógico, essa fórmula e a própria idéia que exprime não foram conhecidas pelos homens que viveram nessa época. Nenhum deles experimentou a sensação de que se dera uma ruptura entre o seu mundo e o precedente, a Antiguidade, ou de que pertencia a um tempo intermediário, a uma espécie de parêntese da história. O homem comum, obviamente, não refletia muito sobre estes problemas; limitava-se a viver, aliás com uma jovialidade que o preservava do penoso sentimento de encontrar-se numa mera época de transição. Possuía o sentido da filiação e da fidelidade num grau infinitamente superior ao do homem moderno, que está inteiramente voltado para o porvir e avidamente inclinado a admitir que uma coisa ou uma instituição, por aparecer no futuro, valerá mais do que a sua homóloga do momento presente. A Idade Média, pelo contrário, considerava respeitável e exemplar todo o legado do passado. Até o século XIV, a maior parte dos europeus julgava-se continuadora da civilização antiga no que esta tinha de melhor.
O termo e a noção só apareceram a partir do século XV. Em 1469, Giovanni Andrea, bibliotecário pontifício, distinguia "os antigos da Idade Média dos modernos do nosso tempo". Tinha ele a impressão de que acabava de se dar uma reviravolta na trajetória da humanidade. Expressões semelhantes surgiriam da pena de muitos letrados - Joachim von Watt, John Heerwagen, Adriano Junius no século XVI, e mais tarde, na era clássica, Cellarius, Canisius, Goldast, Voss, Horn e o célebre autor do Glossário da literatura medieval, Du Cange. O termo há de impor-se paulatinamente, mas só em 1829 é que surgirá a primeira História geral da Idade Média, de Desmichels, reitor de Aix-en-Provence.
É bastante discutível o termo "Idade Média" com que se designa habitualmente este período e aqueles que o precederam e o seguiram. Como é lógico, essa fórmula e a própria idéia que exprime não foram conhecidas pelos homens que viveram nessa época. Nenhum deles experimentou a sensação de que se dera uma ruptura entre o seu mundo e o precedente, a Antiguidade, ou de que pertencia a um tempo intermediário, a uma espécie de parêntese da história. O homem comum, obviamente, não refletia muito sobre estes problemas; limitava-se a viver, aliás com uma jovialidade que o preservava do penoso sentimento de encontrar-se numa mera época de transição. Possuía o sentido da filiação e da fidelidade num grau infinitamente superior ao do homem moderno, que está inteiramente voltado para o porvir e avidamente inclinado a admitir que uma coisa ou uma instituição, por aparecer no futuro, valerá mais do que a sua homóloga do momento presente. A Idade Média, pelo contrário, considerava respeitável e exemplar todo o legado do passado. Até o século XIV, a maior parte dos europeus julgava-se continuadora da civilização antiga no que esta tinha de melhor.
O termo e a noção só apareceram a partir do século XV. Em 1469, Giovanni Andrea, bibliotecário pontifício, distinguia "os antigos da Idade Média dos modernos do nosso tempo". Tinha ele a impressão de que acabava de se dar uma reviravolta na trajetória da humanidade. Expressões semelhantes surgiriam da pena de muitos letrados - Joachim von Watt, John Heerwagen, Adriano Junius no século XVI, e mais tarde, na era clássica, Cellarius, Canisius, Goldast, Voss, Horn e o célebre autor do Glossário da literatura medieval, Du Cange. O termo há de impor-se paulatinamente, mas só em 1829 é que surgirá a primeira História geral da Idade Média, de Desmichels, reitor de Aix-en-Provence.
Esta noção faz-se acompanhar de um certo tom de desprezo. Ronsard fala do "desprezível monstro da ignorância" que reinou nos tempos anteriores; Heinsius assegura que a cultura teve de "renascer"; o polígrafo italiano Paolo Giovio evoca os "túmulos góticos no fundo dos quais foram miseravelmente sepultadas" a arte e as letras. O próprio termo "gótico" já traduz esse desprezo. Os "renascentistas", embriagados com o entusiasmo pela Antiguidade, cometeram uma injustiça gritante contra a época que os precedeu. Como, além do mais, eram muitos os "reformistas", às apreciações estéticas uniram-se os preconceitos religiosos: desacreditar a Idade Média era menosprezar a Igreja Católica, que fora a inspiradora e a mentora de toda aquela sociedade.
Houve, no entanto, mesmo em plena efervescência renascentista, espíritos capazes de formular juízos mais equitativos, como o erudito Pico della Mirandola ou o escultor Ghiberti. No limiar do século XVIII, quando a "barbárie gótica" já se transformara num lugar-comum, um honesto professor alemão, Polycarp Leyser, publicava um extenso panfleto sobre a "pretensa barbárie da Idade Média" e, em 1721, uma História dos poetas da Idade Média; pouco depois, em 1733, os beneditinos, dando início à História literária da França, homenageavam os tempos de São Bernardo, das canções de gesta, do Roman de la Rose. Coube aos românticos, e muito especialmente a Chateaubriand, a honra de terem restituído à Idade Média a sua dignidade e o seu lugar de primeiro plano na história da Europa. E é significativo que o livro decisivo para esta reviravolta tenha sido consagrado à glória da Igreja: o gênio do cristianismo, de Chateaubriand.
Hoje, muitos reconhecem a nossa dívida para com a Idade Média. As suas obras literárias ou artísticas são estudadas, a sua história é aprofundada (algumas vezes), a sua espiritualidade é posta em prática com um zelo infinitamente mais sólido do que a exaltação romântica. "Se alguma época na história da nossa cultura merece ser glorificada como uma era de regeneração e restauração, é esta!", escreve Johan Nordström, o grande historiador sueco. Diante das maravilhas das Catedrais de Chartres, Amiens e Reims, que a fotografia e o cinema nos ajudam a compreender melhor de dia para dia, quem não experimenta a verdade dessas palavras? Quem não sente que estamos na presença de um dos grandes momentos do espírito humano?
Contudo, mesmo desembraraçado da crosta do desprezo, o termo "Idade Média" pressupõe a existência de uma divisão tripartida do tempo, de uma sucessão "hegeliana", dialética, de três épocas. A Idade Média, assim concebida, seria apenas uma transição entre a Antiguidade e os tempos modernos. Se se quer dizer com isso que está cronologicamente situada entre uma época e outra, não se diz nada de especial: "Que século não é a passagem entre aquele que o precedeu e aquele que o seguirá? toda a idade é uma idade média, e nós mesmos seremos um dia medievais para nossos sucessores" (Joseph Calmette, Trilogie de l'histoire de France, Paris, 1948.). Mas se se quer dizer que foi apenas um tempo de preparação, de procura, de elaboração, destinado a fazer surgir uma sociedade mais perfeita na terra, é provável que se cometa uma grave injustiça: os acontecimentos de que hoje somos testemunhas não conseguem persuadir-nos de que, da Idade Média aos nossos dias, o progresso moral e social tenha sido flagrante.
O conceito de Idade Média está, pois, eivado de erro. Não se trata de maneira nenhuma de uma época de transição, ainda incerta quanto aos seus fins e meios, mas de um desses momentos originais da história, em que a sociedade adquiriu uma profunda compreensão de si mesma e do seu destino, em que se efetuou uma obra inigualada - e talvez inigualável -, e em que a humanidade conheceu uma unidade e um equilíbrio excepcionais. É impossível renunciar ao termo usual, demasiado usual, de "Idade Média", mas convém utilizá-lo pensando na grandeza das realizações que abrange.
De resto, é necessário precisar o seu emprego, porque as suas delimitações cronológicas dão margem a vários mal-entendidos. A maioria dos historiadores admite que a Idade Média começou com as grandes invasões germânicas, ou seja, no início do século V, e que terminou com a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453. Com isso, englobam-se num milênio fases que contrastam violentamente entre si, e em que o espírito, instintivamente, estabelece cortes. Quando pensamos nas "obras-primas da arte medieval", referimo-nos à parte central do período, que vai de 1050 a 1350; mas quando evocamos "a noite da Idade Média", os horrores que se atribuem a este tempo, impõe-se à nossa mente a época merovíngia ou a da decomposição carolíngia. E Santa Joana d'Arc? Será uma personagem "medieval" essa mulher cujo santo patriotismo esteve ligado à corrente dos nacionalismos nascentes e cujos soldados se serviram da arma moderna por excelência, o canhão? Com efeito, nesta milenar Idade Média há três períodos distintos: o tatear às cegas, o equilíbrio e, por último, o deslizar para a ruína. O primeiro é o dos tempos bárbaros e o terceiro coincidirá com o século XIV e com o início do século XV; mas como designar o período da máxima expansão?
Talvez por duas das suas grandes realizações, a Catedral e a Cruzada. Quase tudo o que caracterizou esta época nos planos moral, social, intelectual e artístico culmina ou tem a sua correspondência quer nos monumentos de pedra que testemunham a sua grandeza, quer na aventura em que se exprimiram a sua fé e a sua esperança, a sua ânsia de viver e a sua impaciência perante os limites. A Igreja da Catedral e da Cruzada é a Igreja dos três primeiros séculos do segundo milênio, em que a raça dos batizados atingiu um dos seus ápices.
Seria necessário reconhecer ainda que, mesmo no interior desse período, se produziram mudanças. Aliás, em que período da história não as encontramos? O nosso clássico século XVII não principia com os rabelaisianismos do reinado de Henrique IV e se encerra com as delicadezas requintadas da Regência? De 1050 a 1350, notam-se igualmente diferenças profundas. A Cristandade do Ocidente começa por tomar consciência dos esforços realizados pelos seus predecessores imediatos. Depois, vem o florescimento do século XII, sólido, simples e forte. E, no século XIII, atinge-se o cume, com a construção das catedrais, a Suma de Santo Tomás de Aquino e o triunfo do Papado. Depois disso, ir-se-ão delineando no belo edifício as linhas de menor resistência, que amanhã serão as linhas de ruptura
Entre esses momentos sucessivos, as diferenças são muito reais, e por isso muitos se entregaram ao exercício de contrapô-los, perguntando-se qual o mais fecundo ou o mais cristão, se o século XI ou o XIIII, o século de São Bernardo ou o de São Francisco e São Domingos, o século do românico ou o do gótico. Essas diferenças, porém, não prevalecem sobre uma unidade essencial, e convém reservar toda a sensibilidade para o que une esses momentos diferentes, para o que fundiu homens de três séculos numa mesma história grandiosa: um comum sentido da vida e do destino e a aceitação dos mesmos princípios, das mesmas certezas e das mesmas esperanças.
Fonte:
Daniel Rops, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas.
*DANIEL ROPS (pseudônimo literário de Henri Petiot) Membro da Academia Francesa, nasceu em Épinal, em 1901, e faleceu em Chambéry, em 1965. Foi professor de História e diretor da revista Ecclesia (Paris), e tornou-se mundialmente famoso sobretudo pelas obras de historiografia que publicou: a coleção História Sagrada, que abrange os volumes O povo bíblico (1943), Jesus no seu tempo (1945) e os onze tomos desta História da Igreja de Cristo (1948-65). Também foi autor de diversos ensaios, obras de literatura infantil e romances históricos, entre os quais destacamos Morte, onde está a tua vitória? (1934) e A espada de fogo (1938). Foi eleito para a Academia Francesa em 1955.
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