sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Telescópio de Deus

Veja 10-11-2009

Observatório do Vaticano
no Arizona segue
tradição
iniciada nas catedrais européias

Daniel Hessel Teich


No alto do Monte Graham, 3.000 metros acima do deserto do Arizona, um enorme telescópio perscruta os confins do universo. Seria apenas mais um entre dezenas de outros nos Estados Unidos, não fosse por alguns detalhes. Em uma das salas uma Bíblia pontifica sobre os manuais de astronomia em uma estante. Na entrada, uma placa de bronze exibe o nome do papa João Paulo II no meio de um texto escrito em latim. E nos postos de observação, em vez de astrônomos comuns, se revezam seis padres jesuítas. É o Telescópio de Tecnologia Avançada do Vaticano, o único no mundo a contar com a explícita bênção de Deus num investimento de 4 milhões de dólares da Igreja Católica. Um legítimo herdeiro da tradicional arte de observação astronômica católica, em que frades e monges estudavam os astros a partir da luz solar dentro das grandes catedrais na Idade Média. "Nosso principal trabalho tem sido conseguir fazer nossos instrumentos refletirem o céu com absoluta precisão", explicou a VEJA o padre Christopher Corbally, inglês de nascimento e doutor em astronomia pela Universidade de Toronto, no Canadá. "O domínio dessa tecnologia é fundamental para decifrarmos o universo", disse o padre astrônomo. Para isso ficam de olho dia e noite nos dados compilados pelo enorme telescópio, com um espelho de 1,80 metro de diâmetro.
É curioso. A mesma Igreja que condenou um astrônomo, Galileu Galilei, e proscreveu as obras de outro, Nicolau Copérnico, tem hoje representantes capazes de discutir com astrônomos da Nasa, a agência espacial americana, com a mesma desenvoltura com que rezam suas missas. Parece contradição, mas é apenas o resultado de uma convivência que dura séculos entre os padres e o céu astronômico. Numa pesquisa recém-publicada nos Estados Unidos, o historiador John Heilbron, professor da Universidade de Berkeley e pesquisador associado da Universidade de Oxford, mostra que o Vaticano, mesmo com todos os dogmas da religião, foi a instituição que mais investiu no desenvolvimento da astronomia da Baixa Idade Média até o princípio do iluminismo, no século XVIII. E num período particular, entre 1650 e 1750, logo depois da condenação de Galileu, propiciou aos astrônomos os meios mais acurados de observação solar da época. "A teoria de que o Sol e a Terra não tinham trajetórias circulares descrita por Kepler, fundamentada na teoria de Copérnico, foi comprovada dentro de uma catedral em 1655", afirma Heilbron, referindo-se aos experimentos do astrônomo Gian Cassini realizados dentro da igreja de São Petrônio, em Bolonha.
Da mesma forma que o telescópio de Monte Graham tem no miolo de sua estrutura espelhos potentíssimos, as antigas catedrais também foram dotadas de engenhosidade e precisão impressionantes para sua época. Nesses templos, os observatórios funcionavam basicamente a partir de um orifício no teto ou na parede. Por esse buraco a luz solar penetra no interior sombrio das igrejas e sua projeção forma uma rodela luminosa sobre uma linha traçada no piso. Essas linhas são os chamados meridianos, repletos de gradações numéricas e símbolos zodiacais, que possibilitavam a medição do tamanho e o deslocamento das manchas de luz. Com isso era possível observar a variação da distância entre a Terra e o Sol. No estudo em São Petrônio, Cassini não poderia ter margem de erro superior a 7 milímetros na mancha formada pelo Sol no piso da igreja. Para isso, fez seus cálculos e instalou o orifício no teto da igreja, a 27 metros de altura. A luz projetada por esse buraco percorre uma distância de 67 metros em linha reta. Com esse instrumento, Cassini, astrônomo alinhado com os setores conservadores da Igreja, conseguiu descobrir que a órbita dos planetas é ovalada e não redonda, como se pensava. Além dessa pesquisa científica, o instrumento serviu ainda para 4.500 observações feitas até 1736, quando foi definitivamente trocado pelos telescópios mais potentes. O que permitiu tais pesquisas foi um motivo bastante sutil. "A Igreja tendia a encarar todos os estudos baseados em cálculos matemáticos como hipotéticos e fictícios, o que permitia aos estudiosos de então trabalhar com relativa liberdade", explica Heilbron.
Pesquisas como as do professor Heilbron acabam sendo uma bênção para a Igreja Católica deste fim de milênio. O papa João Paulo II está pessoalmente empenhado em defender a ciência e até elogiar gênios antes proscritos, como fez ao reconhecer formalmente o erro da Igreja no caso de Galileu, há sete anos, e ao homenagear Copérnico em junho deste ano, numa visita à Polônia. Quer varrer qualquer sinal de arbitrariedade e intolerância para fora dos porões do Vaticano. No observatório de Monte Graham, por exemplo, os padres querem fazer ciência com o mesmo rigor de Harvard, Berkeley, Princeton ou qualquer outra grande universidade americana. Para enfurecê-los é só perguntar se eles estão tentando provar se Deus é um enorme buraco negro ou se procuram extraterrestres para futura catequização. "Com nossas pesquisas queremos as mesmas coisas que os outros cientistas: descobrir nossas origens, a origem do universo", diz Corbally, o padre astrônomo do Arizona. Ele acha que cumprirá sua parte nesse trabalho estudando estranhíssimas estrelas conhecidas, como Lambda Boos. Esses corpos celestes da Via Láctea, bastante semelhantes ao nosso Sol, mimetizam a atmosfera de estrelas muito mais novas. O padre está tentando provar que a estrela interage com o gás e as partículas cósmicas que estão em torno dela de maneira diferente das demais. É uma descoberta que, para ele, pode iluminar a evolução do universo. Da mesma forma que as pesquisas de seus colegas de séculos atrás com as manchas de luz no chão das catedrais.

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