Veja 23-05-2001
O historiador Jacques Le Goff
revisita a vida, o tempo e as
circunstâncias do Poverello
revisita a vida, o tempo e as
circunstâncias do Poverello
Roberto Pompeu de Toledo
São Francisco Recebendo as Chagas, afresco de Giotto |
E se Jesus voltasse? Dostoievski imaginou a cena, no famoso episódio de Os Irmãos Karamazov intitulado "O Grande Inquisidor". Um dia, Jesus aparece em Sevilha, no tempo da Inquisição. Ainda na véspera, 200 hereges haviam sido queimados. A multidão logo reconhece o recém-chegado. Vão lhe abrindo caminho e se ajoelhando. Um cego grita que o cure – e nesse exato momento a luz penetra-lhe as pálpebras. Uma família que vinha enterrar a filhinha pede-lhe que a ressuscite – e ele o faz. A agitação chama a atenção do cardeal, que sai à rua. Ele também reconhece Jesus de imediato – e o que faz? Manda prendê-lo. Trancafiam-no numa cela. Mais tarde o cardeal vai visitá-lo. Está irritado. Com que propósito, com que direito, essa súbita aparição? "Não tens o direito de acrescentar nada ao que disseste", diz, desfiando o argumento que é o ponto alto da história. "Por que nos vieste perturbar?" E promete que, no dia seguinte mesmo, haverá de levar o intruso à pior das fogueiras. Ele não tinha o direito de acrescentar fosse o que fosse ao que já dissera. E a administração do que dissera não lhe cabia mais.
Dostoievski é ficção. No mundo real, algo próximo da reencarnação de Jesus ocorreu quando, em 1181 ou 1182, na cidade italiana de Assis, veio à luz um certo Francisco Bernardone. Ele não nasceu pobre, como Jesus – era filho de rico comerciante de tecidos. Mas se fez pobre por escolha, e inaugurou a nova vida numa cena teatral em que, tendo de um lado o bispo da cidade e, do outro, seu indignado pai, se despiu até ficar todo nu – "nu como Cristo", disse. Conhece-se, talvez como a de nenhum outro santo, a legenda de São Francisco de Assis. Ele pregava aos passarinhos. Andava com uma simples túnica, na qual amarrava uma corda, à guisa de cinto. Tinha horror a tudo o que era posse ou poder. Beijava os leprosos. Fazia poesias singelas, como o "Cântico do Irmão Sol". Sobretudo, o Poverello, como foi apelidado, tinha como projeto, mais de um milênio depois, retomar o Evangelho em sua literalidade. Foi tão bem-sucedido, na empreitada da imitação de Cristo, que consta ter sido premiado, ao fim da vida, com os estigmas – as mesmas marcas que Jesus recebeu na cruz.
Le Goff, entre outras observações de quem conhece o período com intimidade, mostra como São Francisco transportou para a religião, ele que na juventude viveu entre os ricos, e assimilou-lhes as modas, as fórmulas corteses da cavalaria. A pobreza, ele a chamava de "Senhora Pobreza". Era uma namorada a quem cortejava. O "jogral de Deus", como foi chamado, aproximava-se com cuidados de amante de flores da repulsa como a miséria, a sujeira e a lepra. Às moedas, dizia que não se devia dar mais importância do que às pedras. Tudo o que cheirasse a riqueza e poder lhe merecia aversão. Não gostava de livros, porque eram objetos caros, que só a riqueza podia comprar, e porque traziam conhecimento, algo que leva à superioridade, ou à ilusão da superioridade, e portanto ao poder.
Da perspectiva de hoje, São Francisco estaria entre o hippie e o revolucionário – em qualquer caso, um contestador do sistema. Ele próprio reconhecia-se como, digamos, diferente. "Disse o Senhor para mim que queria que eu fosse um novo louco no mundo", afirmou. Sua face "revolucionária" compreende a decisão de pregar nas praças, junto ao povo, encarando o mundo de frente, bem como escolher os pobres e os simples como modelos. Mas há também, nota Le Goff, uma face "reacionária". Numa época em que a Europa se reencontrava com o conhecimento, e floresciam as universidades, condenou os livros e a ciência. Numa época em que a economia monetária propiciava a passagem do sufoco feudal para a abertura do capitalismo, condenou o dinheiro.
Francisco equilibrou-se a um passo da heresia. Não é certo, como demonstra Le Goff, que quisesse fundar uma ordem. Preferiria uma "fraternidade", uma comunidade de uns poucos, como a de Jesus. Sua insistência em cultivar a pobreza e reviver o Evangelho, numa época em que a Europa se enriquecia e o alto clero mergulhava no luxo, já era, de si, um escândalo. A ojeriza ao poder e às hierarquias piorava-lhe a situação. Ao contrário de outros movimentos contemporâneos com igual dose de contestação, no entanto, o seu não foi anatematizado. O balé de aproximações e distanciamentos em que se constituiu sua relação com a hierarquia católica desembocou em conciliação. Para começar, ele acabou concordando em transformar o movimento numa ordem, o que significava acomodá-lo no seio da Igreja. Ao redigir a Regra da nova ordem, Francisco incluiu itens como a obrigação de pregar, para todos os irmãos, e o direito de desobediência a superiores eclesiásticos, por razões de consciência. Ao passar pelo crivo da Cúria Romana, no entanto, a Regra foi drasticamente modificada. A pregação só poderia ser feita com autorização dos bispos, e o direito de desobediência desapareceu. No capítulo do culto à pobreza, Francisco havia estatuído que, em viagem, os irmãos não levassem bolsa, alforje, dinheiro ou cajado. Depois da intervenção da Cúria, só restou a proibição de ir a cavalo.
Aos poucos, desarmava-se o franciscanismo de sua radicalidade. E, se isso pôde ser desencadeado ainda em vida do santo, depois se tornou muito mais fácil, e célere. A canonização veio logo em 1228, dois anos após a morte, o que sugere a estratégia de, sem perda de tempo, apropriar-se de sua memória e administrar-lhe o culto, em vez de deixá-lo perigosamente solto nas ruas e praças que Francisco tanto percorreu. Mais dois anos e, em 1230, dá-se a "injúria", como diz Le Goff, da majestosa basílica erguida em Assis em louvor do santo – monumento que, até hoje, faz simultaneamente a delícia dos turistas e admiradores da arte e a negação do cultuado. Não demorou igualmente para que o dinheiro fosse aceito na Ordem, salvo para fruição individual, e o estudo e os livros entrassem na rotina dos irmãos.
Fica-se indeciso entre o que mais admirar. Se a empreitada de São Francisco ou a habilidade com que ela foi absorvida e retrabalhada. Se o desafio do santo ou a facilidade com que tal desafio foi desarticulado. O que nos traz de volta ao Grande Inquisidor, que não é citado no livro de Le Goff, nem tem nada a ver com ele, mas que nos serve para formular uma conclusão. Que fogueira, que nada. O poder e a ordem estabelecida têm modos muito mais sutis e eficazes de lidar com o que lhes soa inconveniente.
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