Por Joaquim Blessmann
Afinal, Galileu foi condenado pela Inquisição por defender que a Terra gira em torno do Sol? Copérnico foi discípulo de Galileu? Galileu morreu queimado na Idade Média? Muitas pessoas acham que conhecem a história do processo de Galileu pela Inquisição, mas conhecem apenas mitos. É preciso inserir-se no contexto em que o caso se desenvolveu para formar uma idéia clara do assunto.
1. O MITO
Três séculos e meio de uma publicidade distorcida e laicista fizeram nascer o mito de que Galileu foi um “mártir da ciência e da liberdade de pensamento e a Igreja a costumeira inimiga da liberdade e do progresso humano”, comenta Cintra1. Também transcrevemos o seguinte trecho, retirado de obra de Massara: “Não se tratou de um conflito entre ciência e religião, entre razão e fé, como uma certa literatura laica, claramente interessada, tem feito crer; mas de uma crise interna do organismo eclesiástico”2. Aliás, essa não é a única distorção histórica; há muitas. Monumental, é por exemplo, aquela que apresenta a Idade Média como uma época de obscurantismo e estagnação, o que não corresponde à realidade. Parece haver uma tendência de cada época a denegrir a que veio imediatamente antes. Pense-se, por exemplo, na Renascença. Ou, atualmente, a atitude de muitos católicos, com suas críticas por vezes contundentes à Igreja de antes do Concílio Vaticano II.
Parece que se baseiam em uma afirmação de Cristo, convenientemente deturpada: “Eu estarei convosco até a consumação dos séculos, porém só a partir do Concílio Vaticano II...”
A seguir, reproduziremos afirmações errôneas sobre o caso Galileu, que conseguimos coletar. Algumas delas serão refutadas logo após serem enunciadas. As demais, no decorrer deste trabalho.
– “Galileu foi condenado na Idade Média”. A Idade Média vai até meados do século XV. Ora, Galileu nasceu em 1564, ou seja, cerca de um século após o seu término.
– “Galileu foi condenado por dizer que a Terra era redonda”. Ora, já na antiga Grécia isto era admitido por muitos. Por exemplo, Pitágoras (século VI a.C.) e seus discípulos falavam da esfericidade da Terra, da Lua e do Sol, bem como da rotação da Terra. Na Europa, a esfericidade da Terra já tinha defensores quatro séculos antes de Galileu. Uma prova concreta tinha sido dada pela expedição de circunavegação da Terra, comandada por Fernão de Magalhães, em 1521.
– “Galileu teve Copérnico como discípulo”. Copérnico faleceu em 1543 e Galileu nasceu 21 anos depois, em 1564.
– “Galileu foi o autor da teoria heliocêntrica”. O sistema heliocêntrico deve-se a Aristarco de Samos, no século III a.C., cerca de 1.900 anos antes de Galileu publicar e defender suas concepções astronômicas.
– “Galileu foi condenado porque defendia o sistema heliocêntrico”. Não, ele foi condenado pelo modo como o defendia.
Outras afirmações errôneas, que tentaremos esclarecer neste trabalho, são as seguintes: Galileu foi torturado, cegado, aprisionado numa masmorra, queimado vivo, condenado por heresia, etc.
Se quisermos analisar corretamente, e com a máxima isenção de ânimo possível, fatos ocorridos em outra época, é necessário que nos ponhamos a pensar com a mentalidade, os costumes e, importante, com os conhecimentos e o “senso comum” daquela época. Por isto, o capítulo “O Ambiente”.
2. O AMBIENTE
2.1. A Filosofia
Eram dois os filósofos que preponderavam no pensamento da época: (a) Aristóteles e (b) São Tomás de Aquino.
a) Aristóteles partia da observação dos fatos naturais, e a partir daí raciocinava e chegava a um conjunto de princípios gerais que permitissem a compreensão do mundo material. Adota a astronomia geocêntrica, com a Terra, esférica e imóvel, no centro do universo. No mundo celeste, separado da terra pela esfera lunar, reina a perfeição. Na Terra, a imperfeição, com a geração, alteração e corrupção dos corpos, formados por quatro elementos básicos: terra, água, ar e fogo.
Antes de Galileu, na Idade Média, muitos filósofos e teólogos admitiam as idéias físicoastronômicas de Aristóteles, porém sem vinculá-las diretamente à Filosofia. Infelizmente, os aristotélicos da Renascença confundiram Filosofia e ciência.
b) Na Suma Teológica, São Tomás de Aquino deixa bem claro que a realidade física, o fenômeno observado, é uma coisa; e outra são as teorias científicas que tentam explicá-lo: “Uma teoria deve salvar as aparências sensíveis” (isto é, deve estar de acordo com o que aparece aos sentidos, com a realidade física). “Isto, entretanto, não constitui uma prova suficiente e decisiva, porque talvez pudéssemos salvar as aparências sensíveis com uma teoria diferente e mais simples”.
Em outras palavras, uma teoria científica não pretende corresponder à realidade, mas apenas explicá-la. Exemplifiquemos:
– A teoria do contínuo, na engenharia. Admite-se, na engenharia, que a matéria é contínua, sem falhas, fissuras, vazios, poros, espaços entres cristais ou moléculas. É mais do que evidente que isto não corresponde à realidade. Mas as teorias baseadas neste postulado explicam satisfatoriamente o comportamento dos materiais e facilitam enormemente os cálculos, quer se trate de uma ponte, torre, barragem ou outra estrutura qualquer, quer se trate do movimento e de forças existentes nos líquidos e gases, tais como: sustentação de um avião, bolas com “efeito” (futebol, tênis, etc.) e mesmo no movimento do sangue nas veias e artérias, etc.
– Isaac Newton: “Tudo se passa como se a matéria atraísse a matéria na razão direta das massas e na razão inversa dos quadrados das distâncias” (gravitação universal). Note-se a modéstia do verdadeiro cientista. Não afirma, categórico: “a matéria atrai a matéria ...”, mas, modestamente, sugere que “tudo se passa como se ...”
– Owen Gingerich, astrônomo de Harvard: “Os átomos, como os imaginamos, não podem ser comprovados de um modo absoluto. O máximo que podemos dizer, é que o universo age como se fosse feito de átomos”3. Novamente, um modesto “como se”, indicando que se pretende explicar a realidade, sem a pretensão de afirmar que é assim e não pode ser diferente.
- O mesmo vale para o mundo psíquico: uma teoria pode explicar o comportamento humano, mas nada assegura que ela dê a razão real deste comportamento. E aqui penso nas teorias de Freud e de outros, conflitantes entre elas; cada autor rejeita explicações diferentes da sua, a qual, no seu entender, exprime a própria realidade.
2.2. A Astronomia
a) Sistema geocêntrico
É o sistema mais antigo, cuja origem é incerta. Na Antigüidade apresentaram-no, entre outros, Hiparco (190 a 120 a.C.). No século II de nossa era, o grego Cláudio Ptolomeu fez melhoramentos na hipótese de Hiparco, mostrando, por suas observações, que as órbitas dos planetas não podem ser circulares, como queriam Hiparco e Aristóteles, entre outros (o círculo era símbolo da perfeição). A Terra, imóvel, ocupa o centro do universo. Em torno dela giram, na seguinte ordem: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Esta concepção perdurou não só na Antigüidade, mas também por toda a Idade Média, em parte pela adesão de Aristóteles ao geocentrismo, em parte pelas objeções postas ao heliocentrismo, como veremos mais adiante.
b) Sistema heliocêntrico Aristarco de Samos (século III a.C.) foi o primeiro a adotar e ensinar o sistema heliocêntrico. De acordo com Aristarco, o Sol está imóvel no centro do universo, e à sua volta os planetas descrevem órbitas circulares; as estrelas fixas encontram-se numa esfera cristalina. Avaliou que as distâncias entre as estrelas eram extraordinariamente superiores à distância entre Sol e Terra.
Não havia provas convincentes de que a realidade estivesse de acordo com esta teoria, mas ela justificava plenamente a regularidade do movimento dos planetas. Por outro lado, havia argumentos de peso contra ela, baseados nos conhecimentos e no “bom senso” da época, proveniente da observação de fenômenos naturais. O argumento de maior importância (creio que muitas pessoas, mesmo nos tempos atuais, não sabem como o refutar) é o seguinte:
Se a Terra gira em torno do Sol, é necessário que também gire em torno de si, para produzir o dia e a noite. Se ela gira em torno de si, deve haver um movimento relativo terra-ar e, portanto, para quem está parado na superfície da Terra, um vento com a mesma velocidade. Se estou andando a cavalo, pensavam, quanto mais rápido andar o cavalo, mais veloz o vento que sentirei, devido ao movimento relativo cavalo-ar. Se estou parado, não sobre o cavalo, mas sim na superfície da Terra, e ela está “correndo” em sua rotação, deverei sentir um vento correspondente. E qual a velocidade deste vento? Os gregos já tinham feito o cálculo. Mais precisamente, Eratóstenes, medindo a diferença de latitude entre Siena (atualmente, Assuan) e Alexandria, e medindo a distância entre estas duas cidades, determinou a circunferência da Terra, no Equador. Foi concluído que, se a Terra girasse sobre si mesma, a velocidade no Equador seria de cerca de 400 m/s (1.440 km/h). E esta seria a velocidade do vento causado pela rotação da terra, velocidade essa suficiente para destruir florestas, veículos, construções, etc. (Na realidade, a velocidade é ainda maior: 1.670 km/h.) Este vento não existe. Logo: a Terra não pode ter o movimento de rotação requerido pelo sistema heliocêntrico para formar dias e noites.
Outro argumento contra o sistema heliocêntrico exporemos a seguir: Se uma pedra for atirada verticalmente para cima, enquanto ela sobe e desce, a Terra se desloca e a pedra chocar-se-á com o terreno em um ponto afastado do ponto de lançamento. Se, após seu lançamento, a pedra levar dez segundos para chocar-se com o terreno, no Equador ela estaria a quatro quilômetros a oeste de seu ponto de lançamento! Repito o comentário feito acima: hoje em dia, quantos saberão explicar por que isto não acontece?
Ilustração representando o sistema heliocêntrico
(extraída de Harmonia Macrocosmica, de Andreas Cellarius, 1660-1).
Por estas e outras dificuldades, a teoria heliocêntrica foi abandonada, voltando a ser apresentada muitos séculos depois por Nicolau Copérnico, nascido em Torun, Polônia, em 14.02.1473, e falecido em Frauenburg, Polônia, em 24.05.1543.
Copérnico estudou astronomia e matemática na Universidade de Cracóvia e, por três anos, Direito Canônico em Bolonha, Itália. Também freqüentou as Universidades de Roma, Pádua e Ferrara. Em 1501 aceitou o posto de cônego da Catedral de Frauenburg, cidade onde fez suas observações astronômicas.
Reintroduziu o sistema heliocêntrico de Aristarco, com modificações, em dois trabalhos:
– em 1530: “Comentários sobre as Hipóteses da Constituição do Movimento Celeste”;
– em 1543: “Sobre a Revolução dos Corpos Celestes”.
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Este último trabalho foi dedicado ao Papa Paulo III, que aceitou a dedicatória, sem problemas. E, mais ainda, o sistema proposto por Copérnico foi usado pela Igreja para reformar o calendário litúrgico, permitindo prever a data da Páscoa e, a partir dela, as demais datas do ano litúrgico. O sistema geocêntrico de Ptolomeu havia levado a erros cumulativos importantes. Os cálculos para definir as datas litúrgicas foram enormemente simplificados com o sistema heliocêntrico. Estes cálculos foram feitos pelo jesuíta e matemático Cristóvão Clavius.
Segundo Copérnico, o Sol ocupa o centro do sistema planetário. Em torno dele os planetas giram em órbitas circulares, na seguinte ordem: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno. c) Sistema misto
Proposto por Tycho Brahe (1571-1630), astrônomo dinamarquês. Tornou-se conhecido e admirado pelas medidas precisas que realizou, com instrumentos adequados, construídos por ele mesmo com muita perfeição. O seu sistema é considerado por alguns autores como um sistema “conciliatório”. No centro do universo, a Terra, imóvel. À sua volta giram a Lua e o Sol. Os demais planetas giram em torno do Sol, acompanhando-o em seu movimento em torno da Terra. À distância, a esfera das estrelas.
2.3. Os Eclesiásticos e a Astronomia
Embora a maioria dos eclesiásticos estivesse de acordo com a teoria geocêntrica, havia Cardeais e outros eclesiásticos adeptos do sistema de Copérnico ou defensores de Galileu. Citamos uns poucos4:
– O beneditino Benedetto Castelli diz, referindo-se ao sistema geocêntrico, defendido por Aristóteles: “Aristóteles errou nessa, como em muitas outras coisas”.
– O Cardeal Maffeo Barberini (mais tarde Urbano VIII) opôs-se a que Galileu fosse declarado herético, bem como o Cardeal Luigi Caetani.
– O mesmo Barberini, já eleito papa, declarou ao Cardeal Zoller que a Igreja não tinha condenado, nem estava por condenar, a teoria heliocêntrica como herética, mas apenas como temerária.
– Niccolò Riccardi, Mestre do Sacro Palácio*, estava convencido de que o heliocentrismo não era matéria de fé e de que, de forma alguma, convinha comprometer nele as Escrituras.
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(*) Atualmente, diz-se Teólogo da Casa Pontifícia. É o teólogo pessoal do Papa: revisa os documentos pontifícios e é consultor de diversas comissões do Vaticano. São Domingos foi o primeiro a assumir o posto, em 1218; desde então, o cargo é sempre ocupado por um dominicano.
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(*) Atualmente, diz-se Teólogo da Casa Pontifícia. É o teólogo pessoal do Papa: revisa os documentos pontifícios e é consultor de diversas comissões do Vaticano. São Domingos foi o primeiro a assumir o posto, em 1218; desde então, o cargo é sempre ocupado por um dominicano.
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– Em 1632, na iminência do segundo processo, Castelli professou sua fé copernicana a Vincenzo Maculano, Comissário do Santo Ofício. – Relembramos que o sistema heliocêntrico foi usado para a reforma do calendário litúrgico.
2.4. A Interpretação da Bíblia
Desde os Santos Padres dos primeiros séculos do Cristianismo, já eram conhecidos outros sentidos, além do estritamente literal, ao ser interpretada a Bíblia. Henri de Lubac5 destaca que na exegese medieval se procedia à leitura da Sagrada Escritura segundo os quatro sentidos: literal, histórico, alegórico e moral.
Entretanto, no tempo de Galileu a interpretação da Bíblia era feita de modo mais rígido e, em geral, atendo-se exageradamente ao sentido literal do texto. Como causa principal desse modo de proceder, estava o protestantismo, que, desde o manifesto de Lutero, em 1517, vinha promulgando a livre interpretação da Bíblia. Para evitar os males que estavam sendo causados à fé cristã por este modo de proceder, a Igreja passou a se fixar mais no sentido literal das palavras, enquanto não houvesse motivos fortes que desaconselhassem tal proceder.
Lembramos aqui o princípio da consciência possível, da sociologia: “Todo pensamento é socialmente condicionado e limitado. Devido aos condicionamentos que limitam a visão da realidade, há um limite máximo que o conhecimento ou a compreensão de um indivíduo, um grupo, uma classe social ou toda uma época pode atingir... Outros fatores condicionantes que integram o conceito de consciência possível são a religião, o pensamento científico, as ideologias, as solidariedades étnicas e nacionais, o gosto artístico, etc., que limitam o campo da consciência para toda uma comunidades humana e até mesmo para uma época. Cada época possui paradigmas que condicionam sua cosmovisão científica e sua práxis concreta”6.
Naquela época, com o exíguo desenvolvimento das ciências naturais, as Escrituras eram usadas também para explicações científicas. Sem o conhecimento dos gêneros literários dos antigos orientais, do sentido correto de certas palavras, os teólogos interpretavam a Bíblia literalmente, o que, aliás, é um princípio da hermenêutica: “Não é lícito abandonar o sentido literal de um texto, sem que haja evidentes indícios de que é metafórico”7. Por exemplo, no caso de existirem argumentos de peso a favor de uma hipótese científica.
Além do mais, a interpretação literal de certos trechos da Bíblia (que apontavam para o geocentrismo) estava de acordo com o bom senso geral da época, que via o movimento do Sol e da Lua, bem como com os filósofos aristotélicos e com a quase totalidade dos astrônomos. Antes de Galileu, Aristarco e Copérnico já haviam lançado a hipótese do heliocentrismo, mas sem qualquer argumento convincente. E sem que alguém tivesse refutado o forte argumento contrário à rotação da Terra: “e o vento, senhores, o vento de 1.440 km/h oriundo da rotação da terra?”
Citamos aqui D. Estêvão Bettencourt:
“Para estabelecer a atual teoria planetária, milhares de sábios e estudiosos contribuíram; assim as hipóteses de Copérnico, as medidas científicas de Tycho, as observações de Galileu, as leis formuladas por Kepler... Ainda durante cerca de cem anos depois de Galileu os argumentos antigos em favor do geocentrismo continuaram a ter peso mais forte na opinião pública do que as razões aduzidas por Copérnico e Galileu em favor do heliocentrismo”.
“A fim de ilustrar quão árduo devia ser a um cristão imbuído da mentalidade dos séculos XVI/XVII admitir o heliocentrismo, seja aqui observada a atitude dos autores protestantes diante do novo sistema:
“Lutero (+1546) julgava que as idéias de Copérnico eram idéias de louco, que tornavam confusa a astronomia.
“Melancton, companheiro de Lutero, declarava que tal sistema era fantasmagoria e significava a rebordosa das ciências.
“Kepler (1571-1630), astrônomo protestante contemporâneo de Galileu, teve que deixar sua terra, o Wurttemberg, por causa de suas idéias copernicanas.
“Em 1659, o Superintendente Geral de Wittemberg, Calovius, proclamava altamente que a razão se deve calar quando a Escritura falou; verificava com prazer que os teólogos protestantes, até o último, rejeitavam a teoria de que a Terra se move.
“Em 1662, a Faculdade de Teologia protestante da Universidade de Estrasburgo afirmou estar o sistema de Copérnico em contradição com a Sagrada Escritura.
“Em 1679, a Faculdade de Teologia protestante de Upsala (Suécia) condenou Nils Celsius por ter defendido o sistema de Copérnico.
“Ainda no século XVIII, a oposição luterana contra o sistema de Copérnico era forte: em 1774 o pastor Kohlreiff, de Ratzeburg, pregava energicamente que «a teoria do heliocentrismo era abominável invenção do diabo»”8.
2.5. A Inquisição
Só a leitura desta palavra já costuma causar mal-estar, por ser geralmente associada a terror, tortura, fogueira, morte. Nem tanto assim, embora não se possa dizer que a Inquisição tratava de amenidades.
Houve excessos, e graves, principalmente nos países onde o poder civil passou a comandar. Nem tudo é justificável, mesmo sem a intromissão do poder civil, que transformava a Inquisição em um órgão de interesse político, principalmente na Espanha e Portugal, a partir do século XVI. Destacou-se, por sua excessiva severidade, o inquisidor dominicano Tomás de Torquemada.
Entretanto, procuremos entender os fatos e pensar com a mentalidade época, de acordo com o princípio da consciência possível, que comentamos anteriormente. Na época feudal, profano e sagrado eram muito unidos; por assim dizer, as duas faces de uma mesma moeda. Desvios doutrinários afetavam a vida social.
“De certa forma a Inquisição foi a reação de defesa de uma sociedade para a qual a preservação da fé era tão importante como a saúde ou os direitos humanos para a sociedade atual... Embora tenha havido episódios deploráveis, a Inquisição representou um claro progresso com relação aos tribunais e julgamentos da época, como reconhecem muitos juristas atuais: era o tribunal mais justo e brando do seu tempo [o grifo é nosso]. Ela introduziu a justiça regular, evitando que a justiça leiga ou mesmo a revolta popular infligissem os piores castigos aos suspeitos de heresia. Muitas vezes foi a autoridade eclesiástica quem interveio para subtrair à fúria da multidão os que esta considerava heréticos, embora nem sempre conseguisse evitar que condenados à prisão fossem retirados e conduzidos à fogueira pela população furiosa e amotinada, que se queixava da «fraqueza e excessiva brandura» do bispo. Todos esses aspectos ajudamnos a não julgar com tanta severidade instituições de outras épocas e mentalidades, ao mesmo tempo que nos levam a considerar que o nosso tempo também não está isento de coisas piores: guerras, campos de concentração, gulags, racismos, colonialismos, explorações, etc”9.
Outras citações, que confirmam as palavras acima10:
– Revista Crítica Histórica: “Com o passar dos anos e com a multiplicação das pesquisas de arquivo, foram aparecendo cada vez mais elogios à racionalidade dos procedimentos e à brandura dos tribunais da Inquisição, que se revela não mais como uma entidade demoníaca, mas como uma instituição dotada de regras racionais e capaz de moderar o uso da tortura e desencorajar a denúncia e a delação”.
– Luigi Firpo, historiador laicista, com acesso aos tribunais do Santo Ofício: “Compareceram diante daquele tribunal mais delinqüentes comuns, pessoas culpadas de atos que o direito moderno considera crimes, do que acusados de crimes de opinião e paladinos da liberdade de pensamento. As prisões de hoje são verdadeiros infernos se comparadas com as tão difamadas celas da Inquisição. Naturalmente, a Inquisição não era um agradável clube para conversas amenas, mas fornecia garantias jurídicas inexistentes nos tribunais civis daquela época” (O grifo é nosso).
– Gustav Henningsen, historiador dinamarquês: “Ao contrário de todas as instituições da época, a Inquisição não recorria normalmente à tortura”. ... “A Inquisição introduziu um princípio de transparência, de moderação e de direito onde o poder político e o povo queriam proceder à justiça sumária e exemplar”... “A população católica não temia o Santo Ofício, como muitos historiadores quiseram demonstrar. Os inquisidores não era monstros nem torturadores, mas teólogos e juristas respeitados e estimados”.
“Nas igrejas protestantes predominava um zelo intransigente, reforçado pelo fundamentalismo bíblico que as caracterizava”... “Os protestantes criticavam a moderação do Santo Ofício.” Aliás, diga-se de passagem, a Igreja foi responsabilizada por grande parte dos crimes e fogueiras perpetuados pelos protestantes.
– Estêvão Bettencourt: “Mais de uma vez a Santa Sé interveio para moderar o zelo e punir os excessos dos inquisidores. Todo inquisidor que abusasse comprovadamente do seu ministério era deposto do cargo”11.
– Boulanger: “Foi sobretudo na Espanha que a Inquisição deixou as mais profundas e tristes recordações. Instituída no século XIII, segundo as formas canônicas, foi modificada no fim do século XV por Fernando V e Isabel. Sob seu influxo a Inquisição converteu-se, por assim dizer, numa instituição do Estado, onde entrava mais política que religião [...].
“O código penal da Idade Média era em geral muito mais rigoroso que o da Inquisição. As atrocidades (torturas e morte pelo fogo) da legislação criminal da época tinham por finalidade impedir a repetição dos crimes, incutindo o terror com exemplos espantosos àqueles povos difíceis de governar e de costumes violentos”12.
Lembremos, outrossim, que modos de agir de épocas passadas parecem, no presente, atrocidades ou vinganças, mas foram, dentro do ambiente então vigente, melhoramentos para a sociedade, abrandamentos de costumes bárbaros. Por exemplo, a conhecida “lei do talião”, que transportou para o domínio da punição uma exigência de justiça, graduando a pena de acordo com o dano produzido (“olho por olho, dente por dente”). Antes dela, a vingança dependia da ira do vingador: a um dente arrancado poderia corresponder uma cabeça arrancada...
2.6. O Index
O Index Librorum Prohibitorum era uma lista de publicações que continham doutrinas errôneas, contrárias à fé e à moral cristãs. Por essa razão, as publicações contidas no Index não podiam ser lidas pelos católicos. Houve exageros e excessos de rigor, mas o princípio é perfeitamente válido, e aplicado ainda hoje em dia em muitos países civilizados, nos quais há censura de programas de TV, peças de teatro, publicações, filmes, etc., tendo em vista a salvaguarda de princípios éticos e de respeito a convicções religiosas. Não são, por exemplo, os filmes classificados por idade, para evitar deformações no desenvolvimento psíquico e moral das pessoas?
Porventura deixaria uma mãe veneno ao alcance de seus filhos? Poderia então a Igreja, como mãe que é dos católicos, deixar ao alcance de seus filhos publicações que fossem nocivas à sua saúde espiritual?
Está a maioria da população brasileira, atualmente, satisfeita com a deseducação promovida pela televisão? Não está desprezando e agredindo as mais caras tradições da família brasileira, os bons costumes, a moralidade, os princípios éticos? Não está minando o caráter de nossa juventude? Não se pedem medidas que proíbam programas que levam à dissolução dos valores morais, éticos e religiosos?
Acrescente-se ainda que pessoas de sólida formação espiritual tinham permissão para ler publicações no Index.
Atualmente não temos o Index, mas temos publicações sérias, como Pergunte e Responderemos, que analisam e recomendam ou desaconselham a leitura de certas publicações, as quais nada de útil apresentam e podem causar confusão e desvios de fé e Moral em pessoas com deficiências em sua formação espiritual.
3. OS PROCESSOS
3.1. O primeiro Processo (1616)
Galileu soube de um aparelho inventado pelo holandês Hans Lippershey que permitia ver objetos afastados com nitidez (telescópio). A partir dessas informações construiu um telescópio com melhores características e com ele fez muitas descobertas, tais como:
– as manchas do Sol (que não é, pois, o corpo perfeito descrito por Aristóteles);
– as crateras da Lua (que, portanto, não é a esfera lisa, perfeita, admitida por Aristóteles);
– a Via Láctea é constituída por um grande número de estrelas;
– Júpiter possui Luas (Galileu descobriu quatro), o que demonstrava que a Terra não era o centro de tudo;
– Vênus tem fases como a Lua; pelo que, muito provavelmente, deveria girar em torno do Sol.
Estas descobertas foram publicadas em 1610 e trouxeram uma grande popularidade a Galileu. Entre os que o cumprimentaram e admiravam seu trabalho, estavam Kepler e Clavius.
Por outro lado, os aristotélicos reagiram violentamente, inclusive duvidando da competência de Galileu como pesquisador: manchas solares e relevo da Lua dever-se-iam a sujeira nas Lentes do telescópio; outras descobertas não passariam de ilusões de ótica.
Em 1611, Galileu esteve em Roma e foi muito homenageado por cientistas e nobres. Foi recebido como membro da Accademia dei Lincei, a mais antiga academia científica da Itália. Os jesuítas (muitos dos quais eram professores e astrônomos) dedicaram-lhe uma festa acadêmica no Colégio Romano, com a presença de condes, duques, muitos prelados e alguns Cardeais. O próprio Papa Paulo V concedeu-lhe audiência.
Os problemas começaram com a publicação do livro Trattato contro il moto della Terra (“Tratado contra o movimento da Terra”), do físico e teólogo Ludovico delle Colombe, neste mesmo ano (1611). Ludovico elogiava Galileu, mas citava trechos da Bíblia e argumentos dos Santos Padres para demonstrar a tese geocêntrica. Eis algumas das citações: Fundaste a terra em bases sólidas, que são eternamente inabaláveis (Sal 103,5); Uma geração passa, outra vem; mas a Terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar ao seu lugar (Ecl 1, 4-5).
O problema é que Galileu, em vez de responder com argumentos físicos, usou argumentos bíblicos, citando outro trecho que parece defender a tese contrária: Diante dele estremece a terra inteira (Sal 95,9).
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O texto diz:
“Nós, Roberto Cardeal Belarmino, tendo ouvido que é caluniosamente citado que o Senhor Galileu Galilei em nossas mãos abjurou e também foi punido com saudável penitência por isto; e averiguações terem sido feitas no que diz respeito à verdade, dizemos que o dito senhor Galilei não abjurou qualquer opinião ou doutrina dele em nossas mãos nem naquela de qualquer outra pessoa em Roma, muito menos em qualquer outro lugar, no nosso conhecimento; nem ele recebeu penitência de qualquer tipo; mas somente foi dito a ele a decisão feita por Sua Santidade e publicada pela Sagrada Congregação do Índice, na qual é declarado que a doutrina atribuida a Copernicus, de que a Terra se move em torno do Sol e que o Sol está fixo no centro do Universo sem se mover de leste para oeste, é contrária às Santas Escrituras, e por conseguinte não pode ser defendida ou sustentada”.
Essa carta foi utilizada no segundo processo em 1633 (a imagem foi retirada da página do Observatório Nacional).
Fonte: www.quadrante.com.br
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