O dinheiro
Por Régine Pernoud
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Este artigo traça um breve histórico do desenvolvimento do comércio e do mercado financeiro e a reação da Igreja frente as injustiças sociais ocasionadas por ele. É um capítulo do livro “A burguesia”, escrito pela eminente historiadora francesa. |
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O maneio do dinheiro caracterizou sempre a burguesia; inseparável do comércio, factor inegável de progresso, uma vez que é a base da economia de mercado, esse maneio que atinge no nosso tempo desenvolvimentos insuspeitos aquando das origens da burguesia, foi contrariado e limitado durante os tempos medievais e mais tarde ainda, pela legislação eclesiástica, sempre em vigor em Direito, ainda que caída em desuso, a partir do século XIX.
Esta legislação, precisada no Código de Direito Canônico de 1917, que mantém na posse dos clérigos a interdição da prática de usura, entende essa palavra no sentido de “empréstimo com lucro”, por outras palavras: proveito extraído de um empréstimo de dinheiro. O termo: usurário, na época feudal, designa aquilo a que chamamos banqueiros, manipuladores de dinheiro.
Temos, aliás, a tendência para simplificar abusivamente as fases por onde passou a condenação da usura; para relembrar resumidamente as principais etapas, o combate havia sido iniciado nesse ponto pelos Padres da Igreja, Clemente de Alexandria, no início do século III, mas sobretudo São Gregório Nazianzeno e os dois irmãos São Basílio e São Gregório de Niza, que denunciam incansavelmente os danos da usura no mundo romano e a sujeição que ela implica, levando quase automaticamente os mais pequenos ao poder dos que detêm o dinheiro. Fundamentam-se nas prescrições da Bíblia, Antigo e Novo Testamentos, e denunciam a incompatibilidade entre o Evangelho e a usura, quer dizer, mais valia produzida pelo pagamento de um lucro pelo dinheiro emprestado. Pouco a pouco, é elaborada toda uma doutrina no seio da Igreja, que impregnará as massas. O dinheiro em si é improdutivo: o que ele produz é o facto do trabalho de quem beneficiou com o empréstimo. Aristóteles tinha-o constatado e filosoficamente estabelecido, mas no mundo antigo essa constatação mantinha-se no plano do pensamento, sem conseqüência prática sobre a vida humana – um pouco como as aquisições científicas se tomavam em ciência pura e não se realizavam ao nível da técnica. Todavia, a sua influência será profunda no momento em que, a meio do século XIII se vai operar a síntese entre pensamento aristoteliano e pensamento cristão. Mas, muito tempo antes, a usura, livre no mundo antigo, encontrava-se condenada no mundo cristão. Não somente, como já se disse e repetiu, devido ao famoso versículo do Evangelho: “Empresta sem nada esperar em troca”, mas porque o empréstimo com lucro é, nessa qualidade, uma hipoteca sobre o trabalho do próximo, logo, uma forma de exploração contrária à caridade. Todo o objecto mobiliário ou imobiliário, logo que é emprestado, presta um serviço efectivo e sofre uma certa degradação, o que justifica o pagamento de um aluguer: quer se trate de um campo, de uma casa, etc. Sempre que se trata de um empréstimo de dinheiro, pelo contrário, num tempo em que as moedas consistem num metal precioso que não se altera, a soma emprestada deve ser devolvida sem lucro, uma vez que o serviço que prestou só será válido quando um trabalho o faça frutificar, e o dinheiro devolvido conserva o valor que tinha no momento do empréstimo, sem degradação. Os Padres da Igreja teceram condenações extremamente violentas no que respeita à usura. Para São Basílio, aquele que empresta com usura comete um crime, porque aquele a quem empresta torna-se seu escravo. O concílio de Elvira (cerca do ano 300) ordenava excomungar o clérigo que tivesse recebido usuras, quer dizer, lucros com dinheiro (cânone 20, aplicável em toda a Espanha).
O Concilio de Nicéia de 325, através do seu cânone 17, alargava esta interdição à Igreja universal. No tocante aos laicos, as interdições seriam mais tardias; elas só terão um alcance prático com a legislação de Carlos Magno (Admonitio generalis de Aix-la-Chapelle, 789). O Decreto de Graciano (cerca de 1140) exprime bem os pontos essenciais dessa mentalidade: primeiramente no que diz respeito ao comércio: “É difícil, senão impossível, ao negociante agradar a Deus”, especificando bem: “Aquele que compra uma coisa, não para a vender integralmente e sem lucro, mas a fim de se servir dela para fabricar qualquer outra coisa, não é um negociante. Mas o homem que compra uma coisa para obter um lucro, vendendo-a tal qual a comprou, este homem é um dos compradores e desses negociantes que foram expulsos do Templo de Deus”. Ora, retoma ele, “de todos os negociantes, o mais maldito é o usurário, porque vende uma coisa dada por Deus, mas adquirida pelos homens (ao contrário do negociante) e depois da usura ele retoma a coisa com o bem de outrem, aquilo que o negociante, não faz”. Objectar-se-á: “Aquele que aluga um campo para receber uma renda ou uma casa para obter um aluguer, não será semelhante a quem empresta o seu dinheiro a juros?” Certamente que não. Primeiro, porque a única função do dinheiro é o pagamento de um preço de compra; depois, o rendeiro faz frutificar a terra; o locatário frui da casa: nestes dois casos, o proprietário parece dar uso do seu bem para receber dinheiro e, de um certo modo, trocar o ganho por ganho, enquanto que com o dinheiro avançado ele não pode fazer qualquer uso; finalmente, o uso esgota a pouco e a pouco o campo, degrada a casa, enquanto que o dinheiro emprestado não sofre nem diminuição, nem envelhecimento”.
Mas, concorrentemente a esta mentalidade geral, o gosto do lucro cresce na época e encontra-se estimulado pelo intenso desenvolvimento do tráfico internacional, principalmente do tráfico Oriente-Ocidente. Notemos que o lucro do comerciante que transporta do Oriente especiarias é então considerado como legítimo, porque ele compensa as despesas e as fadigas nos preços de quem as procura e de quem as leva até às grandes feiras da Champagne, da Île-de-France ou qualquer outro sítio. O comércio, assim compreendido, é uma verdadeira função indispensável à vida da cidade. A distinção será fortemente estabelecida a partir do século XIII; apenas o lucro puro é considerado como condenável, e um tal Jean Gerson, no século XV, formulará em termos perfeitamente claros esta condenação: “Vender uma coisa mais cara do que o preço de compra, se o ganho em excesso é assinalável, tendo em consideração todas as dificuldades, os perigos, os melhoramentos, de que deve ser indemnizado, deve ser considerado como uma falta, e uma falta mais grave se, sendo feita, se aproveitar da necessidade do próximo”. Por outras palavras, a “lei” da oferta e da procura é condenada; o comércio, ele próprio, é coisa, não somente lícita, mas útil: aquilo que se condena é o lucro puro, obtido a expensas do próximo. Um Santo Tomás encarava, aliás, de bom grado a organização do comércio, indispensável à vida dos homens, num plano colectivo: os bens necessários à vida, ao conforto, ao prazer de todos os cidadãos, podem do mesmo modo ser transportados por iniciativa da própria cidade. Não podemos deixar de chamar a atenção para o facto de, na época, não ser considerado acção colectiva tudo o que diz respeito à produção, a qual necessita de uma iniciativa individual e pede para ser estimulada pelo ganho individual, mas que, em compensação, tudo o que diz respeito ao transporte e distribuição, aquilo a que chamaríamos o colectivismo é considerado e parece perfeitamente defensável.
No que diz respeito à usura, longe de se contentar com interdições lançadas de uma vez por todas, a procura está então muito activa. Sem pretendermos tornar-nos pesados com os pormenores, indiquemos que, a partir do século XIII, foram formulados os célebres “casos” que os teólogos da Sorbonne só definirão expressamente no século XVII.
Esses “títulos extrínsecos” que autorizam, aos olhos dos teólogos, a percepção de uma certa soma pelo mutuante, logo que entra na posse do seu capital, são bem conhecidos; todos os canonistas enumeraram assim, Damnum emergens, sempre que o mutuante sofre um prejuízo; Lucrum cessans, na ausência de lucro; Periculum sortis, em compensação do risco de perda do seu capital; foram admitidos a partir do século XIII. Tendo-se verificado no século XV uma nova expansão da actividade económica, especialmente em Itália e nos países da Europa Central, uma nova procura se impunha e é então que teólogos canonistas como Santo Antonino de Florença ou São Bernardino de Sena, debruçando-se sobre o estudo dos problemas económicos, criam a noção de capital produtivo: o dinheiro emprestado, não apenas para solucionar uma necessidade momentânea, mas para iniciar uma actividade produtora de bens. Neste caso, é legítimo que o mutuante receba uma parte dos bens produzidos, na condição, todavia, que o seu dinheiro tenha corrido os riscos do empreendimento; por outras palavras, cria-se então a noção de investimento e condena-se, em nome do Evangelho, a do capital garantido. Ainda uma outra excepção vai ser considerada: stipendium laboris, a retribuição dos serviços daquele que emprestou, como seria, nos nossos dias, o salário dos seus empregados.
Por outras palavras, ao longo dos séculos, a disciplina eclesiástica não deixou de evoluir, considerando todas as condições novas que poderiam surgir. Ela também não deixou de considerar como fundamentalmente anticristã a própria noção de empréstimo com lucros; e do mesmo modo, como contrário ao espírito da caridade – essencial à vida evangélica –, toda a tentativa de monopólio ou de açambarcamento dos bens de consumo. Também, no século XVIII, se vai desencadear um verdadeiro tumulto entre, por um lado, teólogos e canonistas e, por outro lado, os defensores das doutrinas liberais, os quais têm essencialmente como objectivo “liberalizar” as relações entre compradores e vendedores, quer dizer, dar ao mais poderoso toda a independência face ao mais fraco. Nessa época, todos os princípios da economia “boa e leal” praticada nos tempos medievais: o preço justo, tudo o que fosse uma concorrência baseada na qualidade do produto, a interdição imperativa das compras massivas permitindo aos capitalistas-comerciantes controlar o mercado de trabalho, são tratados como reaccionários e ridicularizados. É então que o papa Bento XIV dirige em 1745, em honra dos bispos de Itália, a famosa carta Vix pervenit, que renova expressamente a condenação do empréstimo com lucros, alargada seguidamente a toda a Igreja.
A CONSCIÊNCIA TRANQUILA
Acontece que, entretanto, se verificou um movimento que modificou, em profundidade, a mentalidade geral: a Reforma. Embora esta tenha sido freqüentemente discutida ou contestada, a sua influência não parece negável no que concerne ao maneio do dinheiro. Várias vezes foi citada a célebre frase de Calvino: “Por que razão não se permite aos possuidores de um determinado montante de dinheiro retirar uma soma qualquer, quando se permite ao proprietário de um campo estéril arrendá-lo mediante uma renda?” Formulada, na época, por numerosos juristas e teóricos, esta proposta, que punha em causa a esterilidade do dinheiro nessa qualidade, terá uma influência dominante em todo o lado onde se estabelecer a Reforma. Aí remonta a alteração do sentido do termo usura, que designava até então todo o lucro proveniente de dinheiro, e passará somente a designar o lucro excessivo recebido através de empréstimo de dinheiro. Além disso, e sob a mesma influência, a riqueza torna-se símbolo de prosperidade, símbolo da bênção de Deus – um sentimento herdado do Antigo Testamento, ou, pelo menos, de certos livros do Antigo Testamento, antes da passagem dos profetas.
Por outras palavras, o rico podia, futuramente, ter a consciência tranqüila; era superar um passo capital. Até então, e especialmente durante o período feudal, o rico não podia ter a consciência tranqüila. Constituía, aliás, uma excepção, e uma excepção visível, numa sociedade onde as irregularidades de fortuna eram muito pouco sensíveis. Os que conseguiram obter grandes fortunas eram os comerciantes, e sobretudo os que faziam o comércio do dinheiro: aqueles a que se chama Lombardos, até porque é justo reconhecer que, naquela época, em matéria de manipulação de dinheiro, foram os italianos que inventaram tudo. Ora, estes Lombardos, quando a sua fortuna ultrapassa o que parece razoável, vêem-na confiscada, tal como acontece aos usurários judeus.
A batalha decisiva sobre esta questão do maneio do dinheiro verifica-se em França, durante o século XVIII, onde a burguesia, tal como a nobreza, conhecem a “doce vida”; ela resume-se à batalha a favor ou contra o empréstimo a juros, iniciada pelo pequeno clero contra a grande burguesia.
A obra capital de Bernard Groethuysen, A Igreja e a Burguesia, indica o número incrível de sermões, panfletos e escritos diversos, pelos quais se exprimiram as duas posições, por um lado a da Igreja, por outro a dos financeiros; mas estes encontram-se apoiados pela filosofia do tempo, a qual se apresenta aqui sob o seu duplo aspecto, ao mesmo tempo legalista e optimista. Uma confiança absoluta nas “leis naturais” leva a ver, no livre jogo dessas “leis”, a condição de uma prosperidade geral. É conhecido o famoso apóstrofe de Turgot: “Sem juros, não há empréstimos; sem empréstimos, não há dinheiro; sem dinheiro, não há comércio, não existem negócios, tudo morre, tudo está perdido”. Conhecem-se bastante pior os escritos desses membros, quase sempre provenientes do pequeno e do médio clero, que à análise se revelam fortemente perspicazes: “Os que pedem emprestado indemnizam com os juros que pagam; os negociantes de venda por grosso encontram essa indemnização nos negociantes de venda a retalho, e estes no povo que suporta, assim, os juros dos empréstimos do comércio, dos depósitos a prazo e à ordem, das letras de câmbio, etc., bem como o excedente dos preços das mercadorias vendidas a crédito, ou compradas a prazo... Todo o prejuízo, todos os danos recaem sobre o público e, por conseguinte, sobre os pobres que formam a maioria” (Traité, de Hyacinthe de Gasquet, 1766). Essas mesmas vozes impotentes, sufocadas por tudo aquilo que contar para a época, no pensamento como nos negócios, manifestavam, todavia, uma estranha lucidez e têm hoje valor profético: “Os que empilham bens uns sobre os outros sem fim, sem medida; os que juntam todos os dias novos campos e novas casas às suas antigas heranças; os que acumulam quantidades extraordinárias de trigo, para o vender quando a ocasião lhes for mais favorável; os que emprestam com usura, aos pobres ou aos ricos – pensam nada fazer contra a razão, contra a igualdade, enfim, contra a lei divina, porque eles não prejudicam ninguém, segundo eles, e ajudam aqueles que sem isso passariam por grandes necessidades... e, por conseguinte, é uma grande injustiça, e uma injustiça que encerra muitas outras, que uma só pessoa possua tantas terras, e casas, e todos os dias pense em adquirir mais e mais, o que não pode acontecer sem que se desaposse um grande número de antigos proprietários; que uma só pessoa possa recolher os frutos de todas as terras, de um país bastante grande e prive uma enorme multidão de homens, reduzidos por este meio à mendicidade; que uma só pessoa atraia para a sua casa toda a fertilidade dos campos e force tanta gente a viver das suas esmolas; que um só homem queira ser o dono da vida e da morte de um povo inteiro... É a maior das injustiças... porque é declarar a guerra à espécie humana e afastar mais gente dos seus bens, coisa que a guerra não faria”. Estas linhas foram escritas em 1697, por um tal Padre Thomassin, num Tratado do negócio e da usura, de que ninguém fez grande caso. Se elas não puderam conhecer as alterações que, no século XIX, substituíram a sociedade anónima pelo proprietário possuidor e que, no século XX, deram a essas sociedades, até mesmo a um Estado todo-poderoso e único detentor das actividades de uma nação, um poder aproximadamente sem limites, pelo menos encontram-se nelas, por antecipação, o esquema das estruturas económicas levadas a cabo em todo o Ocidente pela burguesia.
Do mesmo modo, ela não se enganou naquela época. É um bloco anticlerícal, pelo menos da burguesia dos negócios e – o que volta sensivelmente ao mesmo – a dos filósofos. Um só ficará à margem: Jean-Jacques Rousseau, que morre pobre.
Após o primeiro obstáculo, transposto no início do século XVI, é um segundo obstáculo no século XVIII: elabora-se uma verdadeira doutrina do lucro pelo maneio do dinheiro, que encontra nela própria a sua própria justificação e que, notemos, manter-se-á imutável e, aliás, muito raramente posta em causa até ao nosso tempo.
Certamente que o gosto e o desejo do lucro estão na própria natureza do homem e são, aliás, inseparáveis da vida, e factores evidentes de progresso. O que era novo era erigir em “lei natural” uma função económica, proclamar como um imperativo do progresso aquilo que havia sido, em certos casos, anteriormente tolerado, mas a título de expediente e como um mal menor. A doutrina do lucro apresentar-se-á, de ora avante, como um absoluto justificado, aliás, por deslumbrantes êxitos. Pode-se-lhe atribuir certamente a parte mais notável dos progressos concluídos no equipamento na Europa e em geral no Ocidente; e será interessante salientar que esse desenvolvimento de que, hoje, toda a gente beneficia, teria sido impossível sem o maneio do crédito e o espírito do lucro a que presidiu. Mas temos igualmente o direito de nos questionarmos se o excessivo passivo que comportou esse desenvolvimento terá sido inevitável.
O ACTIVO E O PASSIVO DO PROGRESSO
Hoje, basta resumir semelhante questão, uma vez que o conteúdo é geralmente conhecido. No século XVIII esse passivo é representado pelo empobrecimento dos campos, num tempo onde, segundo o exemplo da Inglaterra, começa o movimento de exploração capitalista da terra: a terra deve produzir, e o camponês era, de facto, infinitamente menos defendido que sob o regime da servidão feudal, que lhe garantia a tranqüila posse do campo que cultivava. Além disso, o século XVIII, tanto quanto o século XVII, é o da escravatura, e os filósofos são unânimes em exigir, aquando do tratado de paz com a Inglaterra, que sejam conservadas as Antilhas, onde o trabalho dos escravos garantia enormes lucros tanto aos plantadores como aos armadores. Recordemos que Montesquieu era um dos accionistas da Companhia da índias, gozando do monopólio do comércio negreiro, enquanto que cada um conhece a posição de Voltaire, comparando esses campos de café e de açúcar tão produtivos a “alguns arpents* de neve” do Canadá.
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(*) Arpent é uma antiga medida agrária francesa que valia 50 a 51 ares, conforme as regiões. (N. do T.)
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No século XIX, o passivo do desenvolvimento industrial seria representado pela exploração elevada hoje a um grau dificilmente crível pelo trabalhador industrial, homem, mulher ou criança. A Revolução tinha desembaraçado nesse domínio, libertando o trabalho de todos os regulamentos de controlo e juranda. A liberdade do trabalho tornada total, traduziu-se, de facto, no esmagamento dos trabalhadores. Foi necessário quase um século para que, nesse particular domínio, o termo fosse desmistificado, ou antes, o seu emprego: uma liberdade de direito traduzia-se numa exploração de facto, deixando face a face o possuidor e aquele que, para viver, apenas podia contar com a força dos seus braços.
O passivo do desenvolvimento industrial fez-se sentir, numa perfeita continuidade, entre o Antigo e o Novo Regime, sobre todos os territórios de além-mar, não tendo sido nunca as guerras coloniais tão extensas e tão sistemáticas como na Terceira República; quanto à escravatura, tinha sido suprimida em 1848, mas esquece-se muito que o sistema do trabalho obrigatório e do trabalho forçado se tinha mantido, tendo sido abolido em 1947.
A opinião só tomou consciência muito tardiamente da injustiça imobiliária de todo o sistema colonialista. É, hoje, um tema de acusação tornado habitual, mas deve-se salientar que se prefere, em geral, exercer a sua indignação sobre o passado do que sobre determinada fracção da sociedade que se expõe ao desprezo público, sob o nome de “burguesia capitalista”. Acontece que a verdade obrigaria hoje a reconhecer todas as camadas sociais – talvez, com excepção do subproletariado do qual afirmam que, em França, representa ainda dois milhões de seres humanos – que beneficiam das vantagens do desenvolvimento industrial; a diversos níveis, mas todos beneficiam. E isto às expensas de um mundo dito em “vias de desenvolvimento”, que se encontra em relação à Europa e à América do Norte, na situação dos operários que sob o reinado de Luís-Filipe povoavam os arrabaldes de Paris.
As doutrinas de Marx sobre as mais-valias, o lucro proveniente do dinheiro, encontravam aproximadamente uma das posições tradicionais da Igreja. Então, surge um novo facto: se essas posições são ainda mantidas actualmente, deixar-se-á de falar nelas após a chegada ao poder da burguesia. O último decreto canónico realizado a propósito da usura de dinheiro tem um nome significativo: Non inquietandos (16 de Setembro de 1830): era nele indicado que não se deviam censurar os empréstimos que mantivessem um juro modesto, que era lícito, em virtude da lei civil. Esse decreto devia ser renovado em 1873 pela Congregação da Propagação da fé.
Às flutuações verificadas no valor do dinheiro iriam, efectivamente, modificar totalmente os dados do problema, mas o que parece extraordinário é o reduzido número de cristãos que se preocupam, futuramente, com questões deste género: se exceptuarmos os esforços de La Tour du Pin e de cristãos sociais do século passado, constata-se que, precisamente na época do capitalismo, crédito, especulação e maneio de dinheiro, conhecem desenvolvimento e uma importância jamais atingida pelo passado, mas nenhuma voz se levanta, na Igreja, para indicar sobre este ponto o dever dos cristãos. Mesmo os sindicatos “cristãos” adoptando, sem mais, as teses marxistas sobre quantidades de questões, não terão colocado nunca o problema de fundo sobre as relações do cristão e do maneio do dinheiro.
Os papas, a partir da encíclica Rerum Novarum, denunciaram a “usura devoradora” como a calamidade capital do tempo. Essas denúncias tomaram-se por diversas vezes nos escritos pontificais sem provocar, ao que parece, um eco válido. Concluindo o artigo consagrado ao termo “Usura” no Dictionnaire de la théologie catholique, o padre Henri du Passage limita-se a constatar: “Face a esta invasão do monstro capitalista, face a estas evoluções no terreno dos ateliers e, muito mais ainda, na Bolsa, um número de observadores imparciais tornaram-se mais reservados nas suas críticas com respeito à disciplina antiga sobre a usura... Ficará por esclarecer, acrescenta, nos dados complexos dos actuais problemas, uma doutrina de crédito que, satisfazendo de modo plenamente coerente as leis da moral, manterá e conduzirá o capital para o círculo dos seus deveres e dos seus direitos” (Dictionnaire de la théologie catholique, t. 15, col. 2389). Isto foi escrito em 1946, mas o desejo formulado continuou sem efeito; por conseguinte, cada um conhece o papel desempenhado pela praga da usura, na miséria provocada no conjunto dos camponeses chineses e, actualmente, esses flagelos da usura amplamente espalhados nas relações entre países ocidentais e países em vias de desenvolvimento. Contentemo-nos em citar um número: em 1969, a Índia havia recebido 600 milhões de dólares, a título de ajuda financeira, acordada pelas nações ricas; ora, sobre esses 600 milhões de dólares, 550 milhões serviram para amortização das dívidas. E sabe-se que hoje (1984) alguns países da América Latina colocam em perigo o sistema bancário internacional, na impossibilidade que têm de saldar dívidas que ultrapassam de longe a receita nacional.
Régine Pernoud
Historiadora e medievalista francesa (1909-1998). Doutora em Letras e diplomada pela École des Chartes e pela École du Louvre, foi diretora do Museu de Reims, do Museu de História da França, dos Arquivos Nacionais e do Centro Jeanne d´Arc d´Orléans (que fundou em 1974). Escreveu numerosas obras sobre a Idade Média, entre as quais destacamos “Idade Média: o que não nos ensinaram”, “Luz sobre a Idade Média” e “A mulher no tempo das catedrais”. Fonte: “A burguesia”, cap. VIII, Europa-América, Lisboa, 1995
Tradução: Vítor Romaneiro
Historiadora e medievalista francesa (1909-1998). Doutora em Letras e diplomada pela École des Chartes e pela École du Louvre, foi diretora do Museu de Reims, do Museu de História da França, dos Arquivos Nacionais e do Centro Jeanne d´Arc d´Orléans (que fundou em 1974). Escreveu numerosas obras sobre a Idade Média, entre as quais destacamos “Idade Média: o que não nos ensinaram”, “Luz sobre a Idade Média” e “A mulher no tempo das catedrais”. Fonte: “A burguesia”, cap. VIII, Europa-América, Lisboa, 1995
Tradução: Vítor Romaneiro
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