sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Colombo e o começo do Novo Mundo



  Por Robert Royal  


Humanista, profeta, conquistador, evangelizador... Colombo foi uma personalidade típica do seu tempo e, ao mesmo tempo, o iniciador de um empreendimento gigantesco, que ainda hoje prossegue: o de encontrarmos uma forma de convivência adequada ao Novo Mundo, globalizado e multicultural.


  Dizia o inescrupuloso Harry Lime, personagem interpretado por Orson Welles no filme O terceiro Homem: “Na Itália, por trinta anos, durante o reinado dos Bórgias, houve guerras, terrorismo, assassinatos e massacres. Mas também houve Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, houve amor fraterno, quinhentos anos de paz e de democracia. E o que foi que eles produziram? O relógio cuco!”

A idéia de Lime parece não ter sido apenas um mero dito espirituoso: é possível que o próprio Orson Welles sentisse prazer em evocar essa perigosa constatação (foi idéia dele acrescentar a frase ao script original do filme, escrito por Graham Greene). A Europa do século XV em geral, e em particular a Itália, deveram a sua vitalidade a muitas outras causas além dos Bórgias e do maquiavelismo. Mas não deixa de ser um paradoxo da História que as épocas de turbulência social tenham sido freqüentemente um solo fértil para o progresso humano.

O mundo que nós conhecemos hoje começou no século XV. Não no sentido de início da vida humana ou das civilizações, que obviamente já existiam há milênios, mas no sentido de todas as partes do globo estarem em contato umas com as outras, e começarem a reconhecer-se mutuamente como partes de uma única raça humana: um processo que até hoje está em andamento.

Desde a Antiguidade clássica já se sabia que a Terra era um globo esférico; no final da Idade Média, quem lia Dante dava-o por suposto. Mas o antigo cálculo matemático somente tornou-se um fato humano concreto graças a uma pequena expedição, composta de um punhado de homens, movidos por uma confusa mistura de ambição pessoal, motivos religiosos e afã de lucro. Sessenta anos depois, um historiador descreveria a descoberta do Novo Mundo como “o maior evento desde a criação do mundo (excluindo a Encarnação e Morte dAquele que o criou)”.

Até hoje, mesmo confusamente, continuamos a render homenagens àquela façanha. Em 1999, a NASA estava prestes a mandar ao espaço um satélite, que ficaria em órbita a aproximadamente um milhão e meio de quilômetros de distância, no ponto chamado de L-1, isto é: o ponto de libração – de equilíbrio oscilatório – onde a força de atração gravitacional da Terra é exatamente igual à do Sol. Equipado com telescópio e câmera de vídeo, esse satélite forneceria imagens da superfície da Terra vinte e quatro horas por dia. Como era de se esperar, um dos entusiastas do projeto era Al Gore, provavelmente a figura pública mais enfaticamente ambientalista que havia na época. Entretanto, apesar de Gore e muitos outros acreditarem que os humanos causaram muito dano ao nosso planeta desde o início das grandes explorações, e apesar das queixas dos multiculturalistas contra tudo o que possa significar hegemonia européia, o novo satélite foi chamado de Triana, em homenagem a Rodrigo de Triana, o primeiro a avistar terra firme do convés da caravela Pinta na primeira viagem de Colombo.

Esse nome talvez seja apenas mais um efeito da crescente influência hispânica nos Estados Unidos; ou talvez manifeste o desejo de nos vermos também nos umbrais de uma nova era de grandes descobertas. Seja qual for o nosso senso do futuro, o fato é que as descobertas de Colombo – e os progressos intelectuais e religiosos que estavam por trás delas – são hoje admitidas como válidas por alguns, ao passo que outros vêem nelas o início de uma sinistra hegemonia do Ocidente sobre o Homem e sobre a Natureza.


A EUROPA NO SÉCULO XV E O RENASCIMENTO

O panorama dos últimos cinco séculos mostra – como não podia deixar de ser – o costumeiro espetáculo de grandes glórias misturadas com cruéis atrocidades. Mas nós não podemos avaliar as viagens dos descobridores – e menos ainda a cultura quinhentista que as impulsionou – sem nos sentirmos gratos pelas suas realizações e nos interessarmos pelas suas dimensões humanas. No século XV, os descobrimentos foram considerados quase como um milagre, principalmente por causa da maneira como esse século começou.

Os primeiros anos após 1400 foram marcados por grandes convulsões religiosas, políticas, econômicas e até mesmo ambientais. Num dado momento da primeira década, havia três papas rivais (1) e três pretendentes à coroa do Sacro Império Romano Germânico (2). Mas a crise institucional generalizada era só uma pequena parte do problema. A Europa sofria ainda os efeitos do auge da Peste Negra, ocorrido havia pouco mais de cinqüenta anos, e das pequenas ondas subseqüentes. No total, em meados do século XIV, em torno de 40% da população havia desaparecido, e em algumas regiões até mais. As terras ficaram sem cultivar por falta de trabalhadores, as vilas ficaram desertas e a pobreza espalhou-se.
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(1) Depois da morte de Gregório XI, em 27 de março 1378, foi eleito papa o cardeal Bartolomeu Prignano, que assumiu o nome de Urbano VI. No entanto, o conclave fora difícil: os cardeais não conseguiam chegar a um acordo, e a população cercava o Vaticano gritando: “Queremos um romano ou matamos todos!” Após a eleição, o povo acabou por invadir o conclave e tentou aclamar outro cardeal como papa. Embora a eleição de Urbano VI tenha sido legítima, os seus adversários, irritados com o seu autoritarismo, usaram a invasão como pretexto para realizar uma segunda eleição, a 9 de agosto de 1378, na cidade de Fondi, elegendo como papa o controvertido Roberto de Genebra, que assumiu o nome de Clemente VII e estabeleceu-se em Avinhão.

O cisma causou grande confusão na Cristandade e dividiu os governantes da época, que apoiavam um ou outro conforme os seus interesses: Inglaterra, Alemanha, Escandinávia e o norte e o centro da Itália apoiavam o papa romano, enquanto Espanha, França, Escócia e o Reino de Nápoles submetiam-se ao papa de Avinhão.

A solução mais adequada para o cisma seria que os dois papas abdicassem e que os cardeais se reunissem novamente para eleger um novo pontífice. Como ninguém quis ceder, o cisma continuou, mesmo depois da morte dos dois. Após a morte de Urbano VI, em 1389, os cardeais partidários da sua causa elegeram sucessivamente Bonifácio IX (1389-1404), Inocêncio VII (1404-1406) e Gregório XII (1406-1417). Da sua parte, os cardeais de Avinhão elegeram o espanhol Pedro de Luna, que assumiu o nome de Bento XIII (1394-1422).

O concílio de Pisa (1409), reunido para dar fim ao cisma, acabou por eleger um terceiro papa: o arcebispo de Milão, Petros Filargo, que tomou o nome de Alexandre V, e depôs Bento XIII e Gregório XII. Os depostos, porém, recusaram-se a abdicar, e acabou por haver três papas... Alexandre V morreu em 1410 e foi sucedido por João XXIII. De 1414 a 1417, realizou-se o concílio de Constança, que conseguiu finalmente terminar com o cisma: João XXIII e Gregório XII abdicaram e Bento XIII foi declarado deposto. Elegeu-se então o cardeal Otto Colonna, que assumiu o nome de Martinho V (N. do E.).

(2) Os três pretendentes eram Venceslau da Boêmia, Jobst da Morávia e Segismundo de Luxemburgo, que acabou ascendendo ao trono (1411-1437) e teve papel importante na convocação do concílio de Constança (N. do E.).
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O que muitos ambientalistas de hoje desejam com tanto fervor aconteceu: a natureza vingou-se, aproveitando a queda da população. Os lobos multiplicaram-se, aparecendo até nas grandes cidades. Outros predadores humanos – na forma de bandos de salteadores – tornaram inseguras as viagens em amplas regiões. Tais conseqüências do retrocesso populacional forçaram Henrique V, o legendário vencedor de Azincourt (3), a oferecer recompensas pela eliminação de ambas as espécies de pragas.
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(3) Foi em Azincourt, uma cidade do norte da França, que Henrique V da Inglaterra venceu os franceses em 1415, abrindo caminho para a conquista da Normandia em 1419 (N. do E.).
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Apesar da beleza das paisagens mostradas – com uma maestria jamais vista antes – pela pintura e pela literatura da época, o século XV não criou para si quaisquer ilusões a respeito da bondade da natureza intocada, fosse ela a humana ou outra qualquer. Pelo contrário: foram os sofrimentos e asperezas naturais que empurraram o século XV para as suas conquistas quase inigualáveis.

Como se não bastasse a situação interna, a Europa estava sendo pressionada por forças externas. Em 1453, os turcos otomanos finalmente conseguiram tomar Constantinopla. Poucos anos depois, as tropas turcas já estavam lutando em Belgrado, bem dentro dos Bálcãs. A cidade de Otranto, no calcanhar da Itália, foi invadida em 1480, e esteve sob o seu poder por algum tempo. Seria de se esperar que as forças da Cristandade deixassem de lado temporariamente as suas desavenças e tentassem defender-se do ataque de uma cultura e de uma religião estranhas. Mas os principais estados nacionais do Atlântico – Espanha, Portugal, Inglaterra e França – estavam ainda em formação.

O resto da Europa Ocidental, apesar das reivindicações teóricas do Imperador, era um mosaico de pequenos poderes rivais lutando entre si. Sendo assim, não foi feito nenhum esforço coordenado, embora Pio II e outros Papas tivessem convocado a Cruzada. Pio II chegou a mandar uma carta ao sultão Maomé II, conquistador de Constantinopla, convidando-o a converter-se ao Cristianismo. Quer tenha sido uma tentativa séria ou apenas um mero pretexto para ações posteriores, a carta falhou. Nem os interesses “cristãos” nem os “europeus” foram suficientes para aglutinar os esforços. O Papa morreu em 1464 no porto italiano ocidental de Ancona, à espera de que o seu povo viesse para juntar-se a ele.

A idéia de uma Cruzada para retomar a Terra Santa foi encarada no transcurso do século ora como uma utopia quimérica, ora como uma proposta séria. Fernando de Espanha ouvia com freqüência esses planos, mas não fazia muita coisa. (Maquiavel o elogia no Príncipe por ser um desses governantes astutos que se esforçam por parecerem bons sem necessariamente o serem). Carlos VIII da França invadiu a Itália em 1494, mas também tinha a intenção de tentar reaver Constantinopla e restaurar o Império Cristão do Oriente. Antes dele, Henrique V proclamava, a caminho de Azincourt, suas intenções de não apenas assumir o trono francês como também de “reerguer as muralhas de Jerusalém”.

A Europa Ocidental sempre teve uma vaga consciência da sua responsabilidade em defender a Cristandade da ameaça militar do Islã, e da necessidade urgente de recuperar os territórios conquistados pelos muçulmanos, embora as boas intenções estivessem bloqueadas por distrações intra européias. Se o Islã continuasse a avançar, boa parte da Europa teria ficado com uma cultura semelhante àquelas que hoje associamos ao Oriente Médio. As Américas teriam sido grandes territórios muçulmanos, ao invés de cristãos.

O Islã era mais adiantado que a Europa de 1492, mas os meandros da cultura são paradoxais, e foi justamente essa sua superioridade que contribuiu para que fosse superado. Os muçulmanos pareciam não ter muito interesse nos progressos técnicos do Ocidente nas artes da navegação, e até mesmo nações bem situadas como o Marrocos nunca se dispuseram a enfrentar o alto mar em busca de novas terras. As inovações tecnológicas e militares da Europa talvez tenham sido filhas da necessidade, dada a superioridade das culturas ao redor e a existência de conflitos e rivalidades entre as nações européias.

Isso lembra-nos algo que as análises históricas contemporâneas muitas vezes omitem: as forças “eurocêntricas”, a respeito das quais ouvem-se hoje tantas críticas, eram no século XV algo muito diferente. Aqueles que hoje chamamos de “europeus” consideravam-se, naquela época, como membros da Cristandade: uma Cristandade que – como veremos – precisava desesperadamente recuperar algumas das suas verdades fundamentais.

Não se consideravam portadores de uma cultura superior. Sabiam que Roma e a Grécia Antiga viviam num nível mais alto, e foi por essa razão que o Renascimento sentiu a necessidade de recuperar e imitar os modelos clássicos. A fabulosa opulência do Extremo Oriente e a civilização claramente superior do vizinho Islã não permitiam que a Cristandade pensasse ser culturalmente avançada, nem tampouco – o que é ainda mais significativo – fechar-se sobre si mesma, tal como o faziam outros impérios da época, como a China, que se consideravam auto-suficientes. Os mapas europeus da época – consultados por praticamente todos os navegantes – são testemunhas dessa crença central: neles o centro do mundo está em Jerusalém, e não na Europa.

Contudo, esse intenso sentimento de estar sob ameaça, de estar em inferioridade, combinado com uma diversidade social quase caótica, incutiu nos europeus da época uma inquietação rica e dinâmica. Não foi surpresa que o movimento de renovação da Europa tenha começado nas áreas menos afetadas pela implosão da população, e portanto mais prósperas: a área dos que hoje chamamos de Países Baixos e, especialmente, o Norte da Itália. Houve renascimentos desde o século XII, como demonstrou Erwin Panofsky (4) poucas décadas atrás, mas o que teve lugar no norte da Itália no século XV – o único que chamamos sem mais de Renascimento – teve múltiplas e amplas conseqüências.
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(4) Renaissance and Renascences in Western Art (1960).
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Pio II foi por muitos motivos uma figura emblemática na metade do século. Culto humanista, nascido em Sena em 1405, Aeneas Sylvius Piccolomini esteve inicialmente sob a influência de São Bernardino, que pregava a estrita observância da vida franciscana. Mas logo se sentiu atraído pelos encantos da vida dos humanistas da Renascença italiana, quer dizer, pela libertinagem e pela atividade literária. Mudou de lado na contenda entre os Papas rivais; perseguiu suas próprias ambições pessoais por muitos anos; escreveu um livro de História (Historia rerum ubique gestarum, “História dos acontecimentos e dos grandes feitos realizados em toda a parte”), que se tornou popular, no qual punha lado a lado fatos de grande alcance e ficções sobre terras estrangeiras; e por fim chegou até a ser poeta imperial e secretário do Imperador do Sacro Império, Frederico III.

Apesar de tudo, se comparado aos mesquinhos papas e antipapas que o precederam, e às escapadas amorosas dos Bórgias, Pio II foi até virtuoso: tinha cultura, era um trabalhador tenaz, gostava da Natureza, queria a reforma... Fez muita diferença para a Europa que ao longo do seu mandato o papado tenha recobrado o respeito que antes tivera e que depois viria novamente a ter. O Renascimento religioso, porém, assim como o cultural, científico e artístico que nos são mais familiares, viria de outras fontes.

Os progressos alcançados pelo Renascimento encontraram múltiplos usos e aplicações numa Europa em fermentação. A geometria desenvolvida pelo florentino Paolo Toscanelli permitiu que Fillippo Brunelleschi, apesar das objeções de uma comissão de especialistas florentinos, arriscasse a construção da cúpula sem apoios que coroa o magnífico Duomo de Florença.


COLOMBO, PROFETA DO SEU PRÓPRIO DESTINO

Poucas décadas depois, Toscanelli trocaria cartas com um marinheiro genovês, intelectualmente curioso, que estava na Espanha tentando convencer uma outra equipe de especialistas de que era possível chegar às Índias navegando rumo oeste (nenhum pensador sério, diga-se de passagem, acreditava nessa época que a Terra fosse plana). Seus números estavam errados: a distância era maior do que ele dizia ser; e os tais peritos – e talvez também o próprio Colombo – sabiam disso. Mas naquela época, por várias razões, as pessoas tinham confiança suficiente para tentar coisas que iam mais além do que era tido como possível.

Recentemente, tem-se escrito muito, por exemplo, para tentar mostrar que o lado cristão da personalidade de Colombo era apenas uma máscara para encobrir a sua ambição. Os argumentos que ele esgrimia deveriam ser lidos como metáforas destinadas a encobrir hipocritamente, sob a capa da religião, as ambições expansionistas da Europa. De fato, existiam hipócritas no século XV, assim como hoje. Mas a verdadeira História não se conta com esse tipo de fábulas morais anacrônicas: ela é mais complexa do que uma projeção retroativa de motivos simples sobre figuras muito diferentes de nós.

Tal como os humanistas italianos – tantas vezes mal retratados pelos intelectuais descrentes de hoje –, Colombo sabia conjugar a sua fé com novos conhecimentos e novos interesses, sem que isso a afetasse em nada. Seu ideal era o da Renascença: a glória; nesse caso, a glória de realizar uma viagem sem precedentes. Barganhou muito com os reis Fernando e Isabel para garantir para si e para os seus descendentes os lucros financeiros das descobertas. (Os muçulmanos dominavam todas as rotas de comércio com o Oriente, estabelecendo assim um monopólio; a busca de rotas alternativas para o comércio europeu tornou-se, portanto, algo sumamente necessário e lucrativo). Contudo, mesmo após enumerar todas essas razões mundanas, o projeto alberga ainda uma dimensão espiritual deveras surpreendente.

No prefácio do seu Libro de las profecías, uma antologia de textos proféticos que ele compilou no fim da sua vida, Colombo conta a Fernando e Isabel como, muito antes de procurá-los, convenceu-se de que a viagem não somente era possível, mas que era a sua própria vocação pessoal:

“Durante esse tempo, procurei encontrar e ler todo tipo de textos: Geografias, Histórias, Cronologias, Filosofias e outros assuntos. Pude sentir a mão do Senhor, que abriu a minha mente para o fato de que era possível navegar daqui para as Índias, e o meu coração para o desejo de levar a cabo esse projeto. Esse era o fogo que ardia dentro de mim quando vim visitar Vossas Altezas”.

A própria leitura desse texto já nos mostra claramente que estamos lidando com um tipo incomum de marinheiro, que avalia e compara, como os humanistas da sua época, conhecimentos antigos e atuais com vistas a novos propósitos. No fim das contas, há algo de ironia na afirmação de Colombo, que afirmava que Deus queria nesse empreendimento realizar um milagro ebidentísimo (milagre evidentíssimo) por meio de um homem sem instrução: “Para a execução da viagem às Índias, não fui ajudado pela inteligência, nem pela Matemática, nem pelos mapas. Tudo foi simplesmente o cumprimento do que Isaías havia profetizado”.

Colombo evidentemente usou de uma considerável dose de inteligência, habilidade matemática e conhecimento geográfico para planejar a sua rota. Ele também sabia muito bem, baseado na experiência, que os ventos do Atlântico mais próximos ao Equador conduzem melhor para o Oeste do que os ventos mais ao norte, que sopram para o Leste, de volta à Europa. Além disso, estava atento a todos os sinais ambientais. No fim da primeira viagem, rumou para o sul, seguindo um bando de pássaros que corretamente supôs estarem indo rumo a terra firme. Se esse fato acidental ou providencial não tivesse ocorrido, Colombo provavelmente não teria aportado no Caribe, mas em algum ponto entre a Flórida e a Virgínia, e neste caso as conseqüências para a história posterior teriam sido sem dúvida muitíssimo diferentes.

Apesar de todo o conhecimento – teórico e prático – que a viagem de Colombo produziu, a descrição que ele faz das suas intuições religiosas provoca em nós algo que beira à decepção: uma impressão parecida à que se sente diante das especulações místicas do matemático Pascal, ou dos comentários de Isaac Newton às profecias do Livro de Daniel. Mas quem está familiarizado com o modo como as profecias funcionam ao longo da História sabe que elas muitas vezes se realizam por caminhos que os seus autores jamais imaginaram. No caso de Colombo, nossa intenção é evitar um julgamento excessivamente rápido sobre a “mão do Senhor” e outras evidências de que ele às vezes ouvia coisas que soavam como locuções divinas. Afinal, pode muito bem ser o caso de que existam decepções, intuições, ou algo mais agindo nas profundezas da História humana.

Longe de ser uma tardia e idealizada reinterpretação de seu próprio passado, as observações de Colombo são confirmadas por uma curiosa fonte. Estudiosos descobriram recentemente um autógrafo de Colombo datado de 1481 – mais de uma década antes da sua viagem – inscrito no verso de uma cópia da Historia rerum ubique gestarum, de Aeneas Sylvius Piccolomini (mais tarde Pio II). Ali, Colombo havia recolhido uma pequena lista de profecias de vários autores que – agora vemos com toda a clareza – norteava todo o seu projeto de vida.

A religiosidade de Colombo parece ter-se desenvolvido no âmbito do renascimento religioso europeu do século XV. A devotio moderna, movimento que começou com Gerardo de Groote e com os Irmãos de Vida Comum (5), espalhou-se tanto entre os clérigos e religiosos como entre os leigos, convidando todos a voltarem para uma religiosidade mais pessoal, baseada no exercício das virtudes evangélicas, tal como eram vividas na Igreja dos primeiros séculos. Seu autor mais conhecido é Tomás de Kempis, cuja Imitação de Cristo (ca. 1427) influenciou numerosas pessoas e movimentos, tanto católicos como protestantes, ao longo de vários séculos. Mais de um século e meio depois, Inácio de Loyola (o fundador dos jesuítas), por exemplo, tomou esse livro como sua primeira leitura quando decidiu levar a sério a prática da religião. A devotio moderna moldou figuras tão diversas como Nicolau de Cusa e Erasmo de Rotterdam (6). De muitas formas, foi um impulso paralelo a agir por trás do Renascimento em seu esforço de retomar o passado religioso como base para o futuro.
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(5) Gerardo de Groote (1340-1384), monge holandês em torno de quem se agruparam os Irmãos da vida comum, padres e leigos que, sem fazerem votos, consagravam a Deus uma vida de pobreza, oração e caridade. (N. do E.).

(6) Nicolau de Cusa (1401-1464), cardeal, teólogo e filósofo alemão. Escreveu diversas obras sobre direito, espiritualidade e filosofia, dentre as quais se destaca De docta ignorantia (“Sobre a douta ignorância”, 1439-1440), em que medita sobre os problemas que a inteligência encontra no seu caminho. Desiderius Erasmus ou Erasmo de Rotterdam é o nome adotado pelo humanista holandês Gerhard Gerhards (1466?-1536). Homem erudito, editou a primeira edição do Novo Testamento em grego e os escritos de alguns Padres da Igreja. Embora fiel a Roma, satirizou com certo excesso os defeitos do clero, além de fomentar uma interpretação racionalista da Sagrada Escritura que influenciou muitos reformadores, como Lutero (N. do E.).
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Menos conhecida, porém, é a Observância: uma corrente do século XV que começou entre os Franciscanos, e que mais tarde espalhou-se por outras Ordens e mesmo entre os leigos. De fato, a maior disputa entre os monastérios dessa época era a obrigatoriedade de se viver a estrita Observância nas Regras conventuais ou manter-se a legislação não reformada. (Lutero começou sua vida religiosa numa comunidade de Agostinianos Observantes.) Entre os Franciscanos estavam figuras como São Bernardino de Sena, São João de Capistrano e São Tiago de Marco. Seus esforços também visavam um renascimento religioso, mediante o retorno às práticas mais humildes e austeras da primitiva Cristandade. Para o nosso propósito, é também necessário fazer notar que, em meio a essa vida mais austera, ocasionalmente surgiram rebrotes parciais das especulações milenaristas de Joaquim de Fiore (6), o abade cisterciense do século XII que dizia que a nova Era do Espírito Santo e o fim do mundo pareciam estar próximos.
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(7) Joaquim de Fiore (1132?-1202) propunha nos seus escritos a doutrina do “Evangelho Eterno”. Segundo ele, a História poderia ser dividida em três eras de acordo com as três Pessoas da Santíssima Trindade: a era do Pai, que é a narrada no Antigo Testamento, a era do Filho que iria da vinda de Cristo até 1260, ano do advento da era do Espírito Santo, quando, após uma grande catástrofe, a Igreja acabaria e todas as pessoas viveriam em paz e comunhão na terra até a segunda vinda de Cristo. Os escritos de Joaquim de Fiore foram condenados pelo Papa Alexandre IV em 1256 e caíram em profundo descrédito quando o ano de 1260 chegou sem que nada do que o monge previra acontecesse. Durante os anos do Grande Cisma, Telésforo de Cosenza, o Eremita, tentou popularizá-las novamente, mas poucos o levaram a sério (N. do E.).
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Não temos evidências irrefutáveis de que Colombo tenha sido terciário franciscano observante, mas, ao final da sua vida na Espanha, o seu modo de vestir era aparentemente igual o deles. Em suas viagens pela Espanha, hospedava-se em conventos franciscanos, e não nas casas dos nobres. As incertezas no tocante à história do jovem Colombo e à história dos Observantes na Espanha não permitem maiores precisões, mas em todo caso é claro que, juntamente com as suas outras motivações, Colombo absorveu algo das correntes milenaristas do seu tempo. Especificamente, parecia acreditar que uma das razões para que se abrisse a rota do Oriente era permitir que a pregação do Evangelho finalmente pudesse chegar a todas as nações: pré-requisito para o fim do mundo e para a volta triunfal de Cristo (cfr. Mc 13,10), volta que os joaquimitas tinham predito para meados do século XVI.

É interessante notar que Colombo aparentemente acreditava numa suposta predição que não está em nenhum dos escritos de Joaquim de Fiore: a de que o rei da Espanha libertaria a Terra Santa. Embora Colombo tivesse interesse em manter Fernando e Isabel focados no projeto das Índias, não deixou de rogar-lhes com freqüência que empreendessem a Cruzada. O fato de que a Espanha só tivesse conseguido reconquistar o reino de Granada no início de 1492 dava aos espanhóis uma sensibilidade maior que a dos outros europeus para a necessidade de resistir às incursões muçulmanas. (Uma sensibilidade que também teve o seu lado negativo, traduzido nas injustiças cometidas pela Inquisição espanhola, que decretou a expulsão dos muçulmanos e dos judeus do país no mesmo dia em que Colombo começou a sua navegação.) Colombo não foi atendido, mas não temos motivos para duvidar da sua sinceridade.

Nos dez últimos anos da sua vida, Colombo mudou algumas das suas reivindicações, mas uma delas permaneceu constante: deixou instruções aos seus testamenteiros para que criassem um fundo no Banco de São Jorge, em Gênova, destinado a custear a libertação de Jerusalém. Por mais que lhe atribuamos outras motivações, não resta dúvida de que em assuntos espirituais Colombo colocava em jogo não somente as suas palavras, mas também o seu dinheiro.


OS NOVOS POVOS E A EVANGELIZAÇÃO

Certas pessoas ocultaram por muito tempo uma boa parte dessa verdadeira história, para assim poderem instrumentalizar a figura simbólica de Colombo. Para muitos dos antigos norte americanos, Colombo era apresentado como um heróico proto-americano, combatente do obscurantismo dos espanhóis católicos reacionários, que acreditavam que ele navegaria até despencar pela borda da Terra plana. (Como já vimos, nem Colombo e nem seus críticos intelectuais acreditavam em tais absurdos.) Segundo essa visão, Colombo seria um precursor do Protestantismo americano, da Ciência moderna e das empresas capitalistas. Tais ilusões históricas não fazem muita falta, e por isso as descartamos.

Colombo também fez o papel de herói das minorias étnicas católicas – especialmente irlandesas e italianas – durante as ondas de emigração do final do século XIX e começos do século XX. Nisso há menos inconvenientes, porque de fato ele foi um herói. O entusiasmo foi crescendo a tal ponto que, no quarto centenário da viagem, em 1892, houve quem pleiteasse a sua canonização. Mas o Papa Leão XIII, bem ciente da situação matrimonial irregular de Colombo (por razões de herança, o navegador não se casou com a mulher com quem vivia, mesmo depois da morte da sua legítima esposa), fez apenas o elogio das suas virtudes humanas: “Pois a proeza foi uma das maiores e mais grandiosas que qualquer época jamais viu realizada por um homem; e quanto àquele que a realizou, pela sua grandeza de mente e de coração, muito poucos se lhe podem comparar em toda a História da Humanidade”.

É claro que nos últimos anos a posição de Colombo como herói vem sendo severamente bombardeada. Ele e a cultura que representa são apontados como os responsáveis pelo início da moderna dominação européia e por todos os males que depois se abateram sobre o mundo: colonialismo, escravismo, imperialismo cultural, devastação ambiental e fanatismo religioso. Algum ponto de verdade há nessas acusações, mas atribuir as dimensões negativas da globalização – tal como hoje se diz – a um só indivíduo e a uma coisa tão complexa quanto uma cultura é uma grande injustiça histórica para com os indivíduos e para com as idéias.

Os europeus, por exemplo, tiveram uma atitude ambígua perante os novos povos encontrados. Por um lado, estes surgiam como as primícias do “bom selvagem”: o mito tão variadamente descrito nas obras autores como Thomas More, Montaigne e Rousseau. Por outro lado, o contato real com essas populações mostrou que possuíam selvageria em excesso e às vezes muito pouca nobreza.

O próprio Colombo aderia a uma ou outra dessas atitudes, nas diferentes épocas da sua vida. Em sua primeira comunicação aos monarcas da Espanha, logo após a descoberta, descrevia os tainos do Caribe em termos entusiastas:

“Eu sei e percebi que esse povo não tem nenhum tipo de religião nem são idólatras, mas antes são mansos e não conhecem o mal. Não capturam nem matam os outros, e andam desarmados. São tão tímidos que cem deles fogem correndo de apenas um de nós, mesmo que esteja só brincando. São muito confiados: crêem que existe Deus e que existe o Céu, e crêem firmemente que nós viemos do Céu. Aprendem rapidamente qualquer oração que lhes ensinamos, e a fazer o sinal da Cruz. Por isso Vossa Alteza deve decidir-se a torná-los cristãos”.

Como sugerem as próprias incoerências e contradições contidas nessa passagem, Colombo estava influído por aquela corrente da mitologia européia que pensava que os povos “incivilizados” estavam mais próximos das condições do Jardim do Éden do que os povos imersos nos conflitos da “civilização”.

Os tainos na verdade estavam bem metidos nas disputas tribais, no escravismo e no canibalismo que havia no Caribe desde muito tempo antes da chegada dos europeus (a palavra “canibal” é uma corruptela de “caríbal”, nome usado pelos nativos para se referirem aos ferozes índios caraíbas, e que depois foi dado a toda a região).

Colombo desfrutou por algum tempo de um relacionamento surpreendentemente bom com os tainos, que por sua vez usavam os espanhóis como trunfo contra os seus inimigos. Mas a distância entre as duas culturas era grande, e nas expedições seguintes, com a vinda de exploradores não tão exemplares, a situação mudou para pior. No final da sua terceira viagem, para queixar-se das críticas que vinha recebendo pelo seu modo de governar tanto os nativos quanto os espanhóis, Colombo escreveu:

“Sou julgado em minha terra como se tivesse sido mandado à Sicília ou a uma ou duas cidades com sistema de governo bem estabelecido, e onde as leis pudessem ser levadas à risca sem que isso implicasse na destruição de tudo... Devo ser julgado como um capitão que a Espanha mandou às Índias para conquistar um povo guerreiro e numeroso, cujos costumes e crenças são bem diferentes dos nossos”.

Colombo acabou por descobrir que os índios também são seres humanos de carne e osso, portadores daquela mistura de bem e de mal que em toda parte constitui a condição humana.

Hoje em dia é comum qualificar a atuação dos europeus nessa fase inicial como carente daquela sensibilidade para com os outros que um moderno etnólogo ou antropólogo recomendariam nesses casos. Essa recriminação não leva em conta que foi precisamente por meio desses tumultuosos conflitos que o Ocidente aprendeu a tratar as diferentes culturas, compreendendo-as nos seus próprios termos tão objetivamente quanto possível.

O próprio Colombo foi suficientemente perspicaz para perceber diferenças entre os vários subgrupos de tainos, assim como entre estes e as outras tribos. Mesmo quando se viu forçado a agir com dureza – contra os índios ou contra os espanhóis –, não o fazia pelo mero desejo de poder. Bartolomé de las Casas, o conhecido defensor dos índios, falava da “gentileza e bondade” de caráter do Almirante, e mesmo quando deplorava o que estava acontecendo, fazia notar: “Na verdade, não me atreveria a condenar as intenções do Almirante, pois conheço-o bem e sei que suas intenções são boas”. Las Casas atribui as insuficiências do Almirante à sua incapacidade de saber como agir em situações novas e sem precedentes.

Isso levanta a questão sobre as intenções de fundo e sobre o impacto da cultura européia quinhentista no resto do mundo. As atrocidades cometidas por Espanha, Inglaterra, Holanda e outras potências européias nos séculos seguintes são bastante conhecidas, e hoje ninguém as defende. Mas não se pensa tanto sobre aqueles aspectos dessa cultura que justamente foram a fonte dos princípios em nome dos quais hoje se criticam certos comportamentos de então. Um exemplo: não foi somente Las Casas, mas uma multidão de outros pensadores religiosos da época, os que primeiro trataram de especificar quais seriam os deveres morais dos europeus para com os outros povos.

Las Casas, que era bispo de Chiapas, no México (onde as relações entre a maioria da população nativa e o poder central eram difíceis), fez todo o possível para entender as práticas locais. Certa vez chegou até a descrever os sacrifícios humanos como sendo o reflexo de uma autêntica piedade, e a dizer que “embora cruéis, eram meticulosos, delicados e requintados”, frase que seus críticos apontavam como indício de uma certa frieza sua para com as vítimas. Outros missionários aprenderam as línguas nativas e fizeram o levantamento das suas crenças. As informações que chegavam do Novo Mundo à Espanha animaram Francisco de Vitória – um teólogo dominicano da Universidade de Salamanca – a formular os princípios de lei natural que deram origem ao Direito Internacional moderno, como a maioria dos historiadores acertadamente reconhece. Quem lê os textos de Vitória sobre os índios encontra um clima mais parecido à Declaração dos Direitos Humanos da ONU do que a um sinistro eurocentrismo.

A influência de Las Casas e Vitória aparece na célebre afirmação do Papa Paulo III, em sua Encíclica Sublimis Deus :

“Os índios, assim como qualquer outro povo que possa vir a ser descoberto pelos cristãos, jamais devem ser privados de sua liberdade e da posse das suas propriedades, mesmo que estejam fora da Fé em Jesus Cristo. (...) Tudo o que vá contra isso deve ser declarado nulo e sem efeito (...) Em virtude de Nossa Autoridade Apostólica declaramos (...) que os assim chamados índios e os demais povos devem ser convertidos à Fé em Jesus Cristo pela pregação da palavra de Deus e pelo exemplo de uma vida boa e santa”.

A própria Coroa espanhola tinha escrúpulos nesse assunto das conquistas. Além de promulgar várias leis para tentar conter as atrocidades, fez algo que nunca um império em expansão jamais havia feito, nem jamais faria depois: uma pausa no processo, enquanto uma comissão de teólogos examinava a questão. Em meados do século XVI, Carlos V ordenou que uma comissão de teólogos debatesse a questão no Mosteiro de Valladolid. Las Casas defendia os índios. Juan Ginés de Sepúlveda, naquela altura a maior autoridade em Aristóteles, dizia que os índios eram escravos por natureza, e que portanto era correto submetê-los ao domínio espanhol. Embora a comissão não tenha chegado a nenhum voto claro, e os colonizadores espanhóis logo tenham voltado às suas velhas práticas, a visão de Las Casas era claramente superior, e chegou às vezes a prevalecer.


RELIGIÃO E DIVERSIDADE CULTURAL

Conquistas à parte, a questão da evangelização – mesmo quando levada a cabo por meios pacíficos – ainda continua aberta. Muitas pessoas hoje em dia, inclusive cristãs, pensam que evangelizar é coisa que não tem muito cabimento. O dever de pregar o evangelho a todas as nações – tão caro ao coração de Colombo – parece algo vergonhoso, ainda mais por causa do modo como vem sendo cumprido. Os primeiros missionários, porém, procuraram um tipo de aculturação que reconhecesse o que havia de bom nas práticas dos nativos e, partindo daí, construir uma ponte simbólica que os levasse à Fé cristã. Foi a linha adotada pelos franciscanos na Nova Espanha e pelos jesuítas no Canadá, muitos deles mártires.

Muitos dos que hoje crêem, pensam que não havia tanta necessidade de evangelizar. Esse modo de ver as coisas provém da suposição de que as religiões nativas são válidas à sua maneira. Mas quando se examinam as evidências antropológicas, não parece tão fácil supor que todas as práticas religiosas estão no mesmo plano. Os antigos exploradores, ao se depararem com tais práticas, não pensavam assim, e nós tampouco deveríamos pensar.

O romancista mexicano Carlos Fuentes, por exemplo, que não é nem um pouco amigo da conquista espanhola nem da Cristandade, no mesmo momento em que louva a riqueza da cultura asteca, caracteriza o conjunto dos deuses astecas como “todo um Panteão do medo”. Fuentes deplora a freqüente participação dos missionários na injusta expropriação das terras indígenas, mas no plano teológico observa a notável mudança nas culturas nativas graças à influência do Cristianismo: “Só nos é possível imaginar o assombro de centenas, de milhares de índios que pediam o batismo ao perceberem que o que se lhes estava pedindo é que adorassem um deus que se sacrificou ele próprio pelos homens, em vez dos deuses que exigiam para si o sacrifício de homens, como eram os da religião asteca”.

Desde que foi anunciada na Palestina, há dois mil anos, essa revolução copernicana no pensamento religioso mudou as práticas de culto em todo o mundo, por mais que isso seja quase invisível para os modernos críticos da evangelização. Qualquer um de nós, se fosse transportado para a capital asteca de Tenochtitlán ou para algum dos outros muitos lugares do mundo antes da influência do Cristianismo, teria a mesma reação que tiveram os conquistadores: uma reação de raiva e horror.

Sentimentos não muito diferentes podem surgir também ao contemplar alguma das formas como os europeus evangelizaram, recorrendo por vezes à espada e perpetrando graves injustiças por todo o mundo, imitando nisso certas práticas islâmicas. Contudo, é extremamente reducionista reduzir a evangelização a simples imperialismo. Embora seja verdade que devemos respeitar as outras culturas, a maneira acrítica como se costuma exigir o respeito a quaisquer valores de quaisquer culturas não passa de indiferentismo religioso.

Por mais que nos sintamos superiores a essa já velha cultura quinhentista, ainda hoje estamos tentando resolver alguns dos mesmíssimos problemas surgidos no século XV. Não conseguimos ainda encontrar a maneira de fazer justiça às exigências simultâneas dos princípios universais e das comunidades particulares.

O que temos é o que Václav Havel chamou de um “fino verniz de civilização global”, composto de CNN, Coca Cola, blue jeans, rock’n’roll e talvez um pálido vislumbre de algo que se aproxime a um consenso global sobre como devemos tratar-nos uns aos outros neste planeta.

Mas essa unidade mínima esconde profundos conflitos, que envolvem não apenas a resistência a tudo o que é superficial, mas também a própria sobrevivência de diferentes comunidades de sentido. Dizemos, por exemplo, que respeitamos todas as culturas por igual... mas isso até toparmos com castas religiosas, com discriminação sexual, com o costume de mutilar os órgãos sexuais das mulheres e com as perseguições sistemáticas: nesse instante, pensamos que devem prevalecer os princípios universais. Mas quais princípios universais? Um primeiro-ministro da Malásia explicava recentemente que, ao contrário do que pensa a comunidade internacional, “os valores ocidentais são ocidentais, ao passo que os valores asiáticos são universais”. Talvez sejam precisos outros quinhentos anos para decidir se isso é assim ou se essa oposição entre Oriente e Ocidente permanecerá.

Tudo isso parece muito distante do século XV. Mas não é mera fantasia histórica ver nesse século o nascimento das questões que hoje são a pauta obrigatória de tarefas para o terceiro Milênio. O Cristianismo e o Islã, as duas maiores religiões proselitistas do mundo, ainda estão à procura de um modus vivendi. A cultura global iniciada por Colombo foi e será sempre européia na sua origem, e provavelmente também em sua forma básica.

Já faz tempo que escolhemos não ficar em casa, tranqüilos, apenas construindo essas maravilhosas engenhocas que são os relógios cuco. Essa decisão acarretou (e acarreta) muitos desafios, mas o próprio esforço deve lembrar nos quão glorioso – e, em última análise, providencial – é o destino da jornada que ora está em curso, e que começou no século XV.  
    Robert Royal
Presidente do Faith and Reason Institute e vice-Presidente do Ethics and Public Policy Center em Washington. Seus livros mais recentes são: The Virgin and the Dynamo: Use and Abuse of Religion in the Environmental Debate (“Nossa Senhora e o dínamo: usos e abusos da religião no debate ambientalista”) e Dante Alighieri: Divine Comedy, Divine Spirituality (“Dante Alighieri: Divina Comédia, divina espiritualidade”).     Fonte: site First Things
Link: http://www.firstthings.com
Tradução: Quadrante  

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