Nancy Pearcey
Tradução de Marcelo Herberts
Para surpresa de todos, a eleição presidencial de 2004 tornou-se em certa medida um
referendo sobre ciência e religião. Na Convenção Democrática Nacional, Ron
Reagan, filho do ex-presidente, rotulou a oposição à pesquisa de células-tronco
embrionárias como “artigo de fé”, e declarou que ela não pertence ao domínio da
política pública, que se baseia na ciência. Durante os debates presidenciais, John Kerry
declarou às audiências que embora “respeitasse” os princípios morais dos eleitores
sobre o aborto e as células-tronco embrionárias, ele não poderia impor esse “artigo de
fé” por meio de expedientes políticos. 1
Após a eleição, a dicotomia entre religião e ciência foi enfatizada ainda mais
severamente na reação impressionante no Blue States. Comentaristas liberais como
Maureen Dowd alertaram enfaticamente que os conservadores morais substituiriam
“ciência pela religião, fatos pela fé”. Um patrocinador de Kerry queixou-se de que os
eleitores de Bush “se baseiam na fé antes que na realidade”. A capa da Stanford
Medicine (Outono de 2004) exibiu um homem ostentando uma Bíblia de um de uma
rachadura no chão, encarando um cientista de jaleco ostentando um tubo de ensaio. 2
Uma análise extensiva dessa dicotomia frequentemente sustentada é oferecida em meu
último livro Total Truth: Liberating Christianity from Its Cultural Captivity
(Crossway). 3
O posicionamento padrão a muitos americanos no Blue States parece ser que o
Cristianismo é um entrave à ciência – que a religião implica um mundo de milagre
perpétuo, fechado à pesquisa de causas naturais. 4 Isso é com frequência atrelado ao
clichê familiar de que ao longo dos séculos a igreja cristã tem intimidado, silenciado e
perseguido cientistas. Há alguns meses atrás, um jornalista repetiu o estereótipo surrado,
escrevendo que “proponentes de Copérnico foram denunciados como heréticos e
queimados na fogueira”. 5 Recentemente, um colunista escreveu que Copérnico
1 Versões anteriores do artigo foram enviadas ao Fórum Megaviews, Laboratório Nacional de Los
Alamos, 24 de Setembro de 2003, e ao Fórum Veritas na USC, 18 de Fevereiro de 2004. Veja também
Nancy Pearcey, “How Science Became a Christian Vocation,” em Reading God’s World: The Scientific
Vocation, ed. Angus Menuge (St. Louis, MO: Concordia, 2004).
2 Para mais informação, veja www.totaltruthbook.com.
3 Em português: Verdade Absoluta: Libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural, Ed. CPAD, 1ª
edição, 2006.
4 Eugenie Scott, da National Center for Science Education, tem com frequência declarado que o
Cristianismo é um entrave à ciência. Veja, por exemplo, “Evolution and Intelligent Design”, 28 de
Setembro, 2001, Religion and Ethics Newsweekly, Episódio nº 504, em
http://www.pbs.org/wnet/religionandethics/week504/feature.html
5 Brendan O'Neill, “They have vilified the sun – and me”, Spiked, 23 de Julho, 2004, em
http://www.spiked-online.com/Articles/0000000CA616.htm.
P
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“escandalizou o mundo – e mais importante, a Igreja Católica – com a sua teoria da
cosmologia heliocêntrica”. O mesmo padrão se mantém hoje, prossegue o colunista: “O
conflito entre religião e ciência soa também familiar. Darwin ainda enfrenta problemas
ao atravessar guardiões criacionistas em alguma escola do distrito.” 6
A história do conflito soa familiar porque é o padrão de interpretação da história
ensinado por todo o sistema educacional público. De fato, ele é tão amplamente aceito
que é com frequência tratado não como uma interpretação, mas simplesmente como um
fato da história. No entanto, por mais surpreendente que isso possa soar, entre os
historiadores da ciência a visão-padrão tem sido claramente ridicularizada. A maior
parte dos historiadores de hoje concorda que o maior impacto que o Cristianismo teve
sobre a origem e o desenvolvimento da ciência moderna foi positivo. Longe de ser um
entrave, o Cristianismo é um estímulo à ciência.
Uma razão por que essa dramática mudança de idéia não foi filtrada para o
público é que a história da ciência ainda é um campo relativamente novo. Há apenas
cinqüenta anos atrás, não era nem mesmo uma disciplina independente. A partir das
últimas décadas, no entanto, ela se desenvolveu dramaticamente, e no processo, vimos
que muitos dos velhos mitos e estereótipos que cresceram conosco foram sendo
derrubados. Hoje a visão dominante é que o Cristianismo forneceu muitas das
motivações e suposições filosóficas cruciais que foram necessárias para a ascensão da
ciência moderna. 7
Num sentido, isso deveria vir sem surpresa. Acima de tudo, a ciência moderna
cresceu apenas num único lugar e momento: na Europa medieval, num período em que
a sua vida intelectual era sob todos os aspectos permeada pela cosmovisão cristã. Outras
grandes culturas, como a chinesa e a indiana, frequentemente desenvolviam tecnologias
e engenharias de alto nível. Mas sua habilidade tinha uma inclinação para consistir de
uma experiência com fim prático e regras do polegar [de princípio básico]. Elas não
desenvolveram o que conhecemos como ciência experimental – teorias testáveis
organizadas em sistemas coerentes. Ciência nesse sentido apareceu apenas uma vez na
história. Como escreve o historiador Edward Grant, “É questão fora de disputa que a
ciência moderna emergiu no século dezessete, na Europa Ocidental, e em nenhum outro
lugar”. 8
6 Kathleen Parker, Townhall, 4 de Dezembro, 2004, em
http://www.townhall.com/columnists/kathleenparker/kp20041204.shtml. Para uma introdução acessível à
controvérsia sobre o Darwinismo, veja os meus capítulos sobre o assunto (capítulos 6, 7, 8, 9, 10) em
How Now Shall We Live? [em português: E Agora, Como Viveremos? Ed. CPAD, 2000], em co-autoria
com o novelista Harold Fickett e com o ex-aliado de Nixon, Charles Colson (Tyndale, 1999). Uma
discussão atualizada pode ser encontrada em Verdade Absoluta (capítulos 5, 6, 7, 8). Para uma discussão
das implicações culturais e filosóficas do Darwinismo, explicando por que ele se mantém controverso em
meio ao público (norte-) americano, veja o meu ensaio “Darwin Meets the Berenstain Bears: Evolution as
a Total Worldview”, em Uncommon Dissent: Intellectuals Who Find Darwinism Unconvincing, ed.
William Dembski (Wilmington, Delaware: ISI Books, 2004), pp. 53-73.
7 Eu desenvolvi esse argumento de forma mais detalhada em The Soul of Science: Christian Faith and
Natural Philosophy (Crossway) [A Alma da Ciência – Fé Cristã e Filosofia Natural, Ed. Cultura Cristã,
2005) que é uma importante fonte do presente ensaio. Para um tratamento mais conciso e acessível, veja o
meu capítulo “A Base para a Verdadeira Ciência”, capítulo 40, em E Agora, Como Viveremos?[Ed.
CPAD, 2000]
8 Edward Grant, The Foundations of Modern Science in the Middle Ages (New York: Cambridge
University Press, 1998 [1996]), p.168.
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Esse fato é indubitavelmente sugestivo, e tem levado acadêmicos a se perguntar
por que afinal a ciência moderna emergiu apenas na Europa medieval. O sociólogo da
religião Rodney Stark identificou as 52 figuras que fizeram as mais significativas
contribuições à revolução científica, e então pesquisou fontes biográficas para descobrir
suas visões religiosas. Ele chegou à conclusão de que entre os contribuintes mais
notáveis à ciência, surpreendentemente apenas dois eram céticos. (Paracelso e Edmund
Halley).
Stark então subdividiu novamente esse grupo, entre aqueles que eram
“convencionais” em suas visões religiosas (isto é, seus escritos exibem as visões
religiosas convencionais de suas épocas), e aqueles que eram “devotos” (seus escritos
expressam um forte compromisso pessoal). Os números resultantes mostraram que mais
de 60 por cento daqueles que impulsionaram a revolução científica eram religiosamente
“devotos”. 9 Claramente, sustentar uma cosmovisão cristã não representava barreira para
o empreendimento científico de excelência, e também, parece que ela fornecia a esse
empreendimento uma inspiração positiva.
Quais foram os elementos-chave nessa inspiração? Destaquemos vários
princípios básicos esboçando uma série de contrastes com as outras religiões e
filosofias. Se nós fizermos a alegação de que o Cristianismo teve um papel causal na
ascensão da ciência moderna, para sermos científicos sobre a questão precisamos
também descartar outras causas possíveis. Uma vez que, à luz do fato histórico,
nenhuma outra religião ou filosofia teve o mesmo papel causal, a melhor forma de
expressar a questão é, Por que elas não tiveram o mesmo papel?
Religiões Politeístas
As outras religiões tipicamente diferem do Cristianismo em um ou dois
principais aspectos. O Deus do Antigo e Novo Testamento é um ser pessoal, por um
lado, ao passo que também é infinito ou transcendente. Muitas religiões ao longo da
história têm sido centradas em deuses que são pessoais, mas finitos – divindades locais,
limitadas, como os deuses gregos e nórdicos. Por que as religiões politeístas não
produziram a ciência moderna?
A resposta é que deuses finitos não criam o universo. De fato, o universo é que
cria esses deuses. Diz-se geralmente que eles surgem de alguma “essência” primordial,
pré-existente. Por exemplo, na genealogia dos deuses da Grécia, as forças fundamentais
como Caos deram origem a Gaia, a grande mãe, que criou e então se uniu aos céus
(Ouranos) e ao mar (Pontos) para dar origem aos deuses. Portanto, uma cosmovisão
politeísta, o universo em si não é criação de uma Mente racional, e logo, não é
concebido para ter uma ordem racional. O universo tem algum tipo de ordem, é claro,
mas que é inescrutável pela mente humana. E se você não espera encontrar leis
racionais, nem mesmo irá atrás delas, e a ciência não alcançará o fundamento.
Essa questão envolvendo o politeísmo remete a Isaac Newton, este tendo certa
vez argumentado que a base para a crença na possibilidade de leis da natureza é o
monoteísmo, já que implica que tudo na natureza reflete o ato criativo de uma Mente
9 Rodney Stark, For the Glory of God: How Monotheism Led to Reformations, Science, Witch-Hunts, and
the End of Slavery (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2003), pp. 160-163, 198-199.
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única. Newton estava argumentando contra a noção grega, ainda prevalecente em seus
dias, que a terra era um lugar de mudança e corrupção, ao passo que os corpos celestiais
eram perfeitos e incorruptíveis. Contrário a essa visão, Newton acreditava que ambos
eram produto de uma só Mente divina, e que portanto, ambos estavam sujeitos às
mesmas leis. Isso abriu caminho para o seu conceito penetrante da gravidade – a idéia
então revolucionária de que a mesma força que explica porque maçãs caem ao chão
explica também a órbita dos planetas. 10
Mais recentemente, foi desenvolvido um argumento similar pelo Prêmio-Nobel
e bioquímico Melvin Calvin. Falando sobre a convicção de que o universo tem uma
ordem racional, ele diz que “Na medida em que tento discernir a origem dessa
convicção, eu me vejo diante de uma noção básica… primeiramente enunciada no
mundo ocidental pelos antigos hebreus: a saber, que o universo é governado por um
Deus único, e não o produto de caprichos de diferentes deuses, cada qual governando
sua própria região segundo suas próprias leis. Essa visão monoteísta parece ser o
fundamento histórico da ciência moderna.” 11
Panteísmo Oriental
E sobre as religiões orientais, que estão em voga mesmo nas culturas ocidentais
da atualidade? Se o politeísmo envolve deuses pessoais, mas finitos, o panteísmo
envolve o oposto – uma deidade impessoal e infinita. Por que esse tipo de religião não
produziu a ciência moderna? A resposta é que o deus do panteísmo não é realmente um
ser tal como o que poderíamos chamar de essência, um substrato espiritual para toda a
realidade. E essências não criam mundos; de fato, porque não são agentes pessoais, elas
realmente não fazem nada. Como resultado, mais uma vez, não há a convicção de que o
universo é criação de uma Mente racional. Além do mais, racionalidade implica
diferenciação, e o deus do panteísmo é uma unidade todo-hermética, além de qualquer
diferenciação. Isso explica porque as religiões orientais levam tipicamente à meditação,
que visa categorias racionais transcendentes, mas tipicamente não estimulam a
investigação racional da natureza.
Quando o historiador marxista Joseph Needham estudou a cultura chinesa,
almejava saber por que ela não desenvolveu a ciência moderna. Sendo marxista
convicto, primeiro esgotou todas as explicações materialistas, e então finalmente
concluiu que o motivo está na visão chinesa de criação: “Não havia segurança de que o
código de leis da Natureza pudesse ser revelado e interpretado, pois não havia garantia
de que um ser divino, muito mais racional do que nós, tivesse uma vez formulado um
código tal que fôssemos aptos a interpretar”. 12
10 Morris Kline, Mathematics: The Loss of Certainty (New York: Oxford University Press, 1980), p. 52.
Talvez seja pertinente ressaltar que muitos dos historiadores citados no presente artigo não se consideram
cristãos professos, e assim, suas opiniões não podem ser rejeitadas como se fossem guiadas por uma
agenda religiosa. Eles apenas buscam realizar bom trabalho acadêmico, além de acurácia histórica.
11 Melvin Calvin, Chemical Evolution (Oxford: Clarendon Press, 1969), p. 258, ênfase adicionada. Veja a
minha discussão em Soul of Science, p. 25 (A Alma da Ciência – Fé Cristã e Filosofia Natural, Ed.
Cultura Cristã, 2005).
12 Joseph Needham, The Grand Titration: Science and Society in East and West (Toronto: University of
Toronto Press, 1969), p. 327. Veja Stark, pp. 148, 150, bem como a minha discussão em Soul of Science,
pp. 29, 22 ((A Alma da Ciência – Fé Cristã e Filosofia Natural, Ed. Cultura Cristã, 2005).
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Quais princípios gerais emergem desses exemplos? É que a ciência depende de
certas suposições prévias sobre a natureza do universo – especificamente, que o
universo possui uma estrutura inteligível que possa ser racionalmente conhecida. Tanto
lógica quanto historicamente, a crença surge somente a partir da convicção de que o
universo é a criação de uma Mente racional, inteligente.
Filosofia Grega Clássica
E sobre as filosofias não-religiosas? Muitos historiadores dão aos antigos gregos
o crédito de serem os precursores do pensamento científico, com base no fato de serem
os primeiros a tentar explicar o mundo por meio de princípios racionais. Certamente, é
inegável que a filosofia grega teve um imenso impacto formativo sobre a cultura
ocidental. No entanto, não foi o suficiente para produzir ciência – por diversas razões. 13
Primeiro, os filósofos clássicos definiram ciência como conhecimento
logicamente necessário – conhecimento das Formas racionais eternas incorporadas na
Matéria. O problema com essa definição é que uma vez que você tenha compreendido a
essência de qualquer objeto através de um insight racional, você pode estender toda
informação relevante sobre dela por meio da dedução absoluta. Tome como exemplo a
caçarola: uma vez que você saiba que o propósito de uma caçarola é ferver líquidos,
você pode deduzir que ela precisaria ter uma forma apropriada para reter o líquido, que
ela deveria ser feita de um material que não derretesse quando aquecido, e assim por
diante. Esse método dedutivo era o modelo para os pensadores gregos clássicos.
No entanto, como resultado, ele tinha pouca utilidade para observações e
experimentos detalhados. Assim, a metodologia experimental da ciência moderna não
veio dos gregos; antes, foi derivada do conceito bíblico de Criador. Teólogos medievais
raciocinaram que se Deus é onipotente, como ensina a Bíblia, então Ele poderia ter feito
o mundo de inúmeras outras maneiras. A ordem no universo não é logicamente
necessária, ao contrário do que pensavam os gregos, mas é contingente, fixada
externamente por Deus agindo conforme o Seu próprio livre-arbítrio. Isso foi chamado
na teologia de voluntarismo, e Newton expressou a idéia nestas palavras: “O mundo
poderia ter sido de outra forma… Portanto não foi uma determinação necessária, mas
voluntária e livre, que deveria ser tal como é”. 14
Qual a implicação que a convicção de liberdade divina teve sobre a ciência? É
que nós não podemos obter conhecimento do mundo apenas e tão-somente pela dedução
13 A discussão a seguir nos dá a chave de porque as culturas islâmicas, qualquer que seja o caso, não
produziram a ciência moderna. Uma razão é que a sua vida intelectual era dominada pela filosofia grega.
Na Era Dourada do Islamismo, nos séculos dezessete e dezoito, os exércitos de Maomé conquistaram
territórios da Pérsia à Espanha – e neste processo, também assimilaram as filosofias desses lugares.
Assim, o mundo árabe teve uma rica tradição de tratados sobre a obra de pensadores como Platão,
Aristóteles e Pitágoras, muito antes da Europa. De fato, dois dos mais proeminentes filósofos aristotélicos
da Idade Média foram Avicenna e Averroes – conhecidos em suas terras nativas, respectivamente, como
Abu Ali al-Hussein Ibn Sina e Abdul Waleed Muhammad Ibn Rush. O que isso significa é que em termos
de ciência, a filosofia árabe tinha tendência a reter os aspectos positivos, mas também negativos, da
filosofia grega. Veja a transcrição de um ensaio que eu ofereci baseado na obra Verdade Absoluta, na
Heritage Foundation, em Washington, DC, 19 de Outubro de 2004, em
www.heritage.org/Press/Events/loader.cfm?url=/commonspot/security/getfile.cfm&PageID=71383.
14 Citado em Edward B. Davis, “Newton’s Rejection of the ‘Newtonian World View’: The Role of Divine
Will in Newton’s Natural Philosophy,” em Science and Christian Belief, 3, nº 1, p. 117, ênfase
adicionada.
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lógica. Isto é, nós não podemos simplesmente deduzir o que Deus deveria ter feito;
antes, precisaríamos observar e experimentar a fim de descobrir o que Deus de fato fez.
Isso foi belamente exposto pelo amigo de Newton, Roger Cotes, ao dizer que a Natureza
“não poderia ter surgido de nada que não fosse o perfeito livre-arbítrio de Deus a tudo
conduzindo e dirigindo”. E porque o universo é uma criação livre e contingente, Cotes
segue, “Nós devemos, portanto… estudá-las [as leis da natureza] a partir das
observações e dos experimentos”. 15
O debate sobre a liberdade divina tomou lugar primeiro na teologia, e então
posteriormente foi traduzido para a linguagem da filosofia da ciência. No século
dezessete, o matemático francês Marin Mersenne discordou do argumento lógico de
Aristóteles, de que a terra deveria estar no centro do cosmos. Como explica o
historiador John Hedley Brook, “Para Mersenne, não havia ‘deveria’ nessa questão.
Estava errado dizer que o centro era o lugar natural da terra. Deus tinha sido livre para
colocá-lo no lugar onde bem desejasse. Fomos incumbidos de encontrar esse lugar”. 16
O conceito bíblico de Deus abriu a porta para uma metodologia de observação e
experimentação.
Lembre da Sua Matemática
Muitos historiadores têm proposto Euclides e Pitágoras como importantes
precursores da ciência moderna, uma vez que eles tornaram possível o tratamento
matemático da natureza. Isso é verdade, é claro – com uma restrição crucial: para os
gregos, as verdades matemáticas não eram plenamente demonstradas na esfera material.
Isso é simbolicamente representado no mito da criação de Platão, em que o mundo é
formado por um demiurgo (uma divindade de nível inferior) que na verdade não cria
matéria, mas trabalha com substâncias pré-existentes. Porque seus materiais precursores
existem independentemente, possuem propriedades independentes sobre as quais o
demiurgo não tem controle. Ele tem simplesmente que usá-los da melhor forma que lhe
for possível. Como resultado, os gregos esperavam que o mundo fosse nada mais que
uma aproximação das formas ideais – um reino imprevisível de anomalias irracionais.
Eles não esperavam encontrar precisão matemática na criação. Como explica Dudley
Shapere, no pensamento grego o mundo físico “contém um elemento essencialmente
irracional: nada nele pode ser descrito de forma exata pela razão, e em particular, por
leis e conceitos matemáticos”. 17
Em contraste, o Deus bíblico é o Criador da própria matéria. Conseqüentemente,
Ele tem controle absoluto sobre os seus materiais precursores, e pode criar o mundo
exatamente como deseja. Esse é o significado prático da doutrina da criação ex nihilo –
que não existiu matéria pré-existente com suas propriedades inerentes de eternidade e
independência, limitando o que Deus poderia fazer com ela. Logo, não há nada
15 Roger Cotes, prefácio à segunda edição do Principia de Newton, em Newton’s Philosophy of Nature:
Selections from His Writings, ed. H.S. Thayer (New York: Hafner, 1953), ênfase adicionada.
16 John Brooke e Geoffrey Cantor, Reconstructing Nature: The Engagement of Science and Religion (NY:
Oxford University Press, 1998), p. 20. Para saber mais a respeito desse assunto, veja a minha discussão
de como a teologia voluntarista levou a uma visão contingente da natureza, em Soul of Science, pp. 30-33,
81ff (A Alma da Ciência – Fé Cristã e Filosofia Natural, Ed. Cultura Cristã, 2005). Veja também Nancy
Pearcey, "Recent Developments in the History of Science and Christianity," e "Reply," Pro Rege 30, nº 4
(Junho, 2002):1-11, 20-22.
17 Dudley Shapere, Galileo: A Philosophical Study (Chicago: University of Chicago Press, 1974), pp.
134-36, ênfase no original.
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essencialmente arbitrário ou irracional na natureza. Sua estrutura ordenada pode ser
descrita com precisão matemática. Nas palavras do físico Carl von Weizsacker,
“Matéria no sentido platônico, que deveria ser ‘governada’ pela razão, não obedeceria
leis matemáticas com exatidão”. Por outro lado, “Matéria que Deus havia criado do
nada poderia seguir rigorosamente as regras que o seu Criador havia formulado para
elas. Neste sentido eu chamaria a ciência moderna de um legado, poderia mesmo dizer
um produto, do Cristianismo”. 18
Um exemplo histórico pode ser encontrado na obra de Johannes Kepler. Uma
vez que os gregos consideravam os céus como perfeitos, e o círculo como a forma
perfeita, eles concluíram que os planetas deveriam se mover em órbitas circulares, e
essa permaneceu a visão ortodoxa por quase dois milênios. Mas Kepler tinha
dificuldade com o planeta Marte. O círculo mais perfeito que ele poderia traçar deixou
ainda um pequeno erro de oito minutos de arco. Tivesse se mantido fiel à mentalidade
grega, Kepler teria dado de ombros a uma diferença pequena como essa, lembrando que
a natureza era apenas uma aproximação das formas ideais. (Neste caso, o pensamento
grego era um obstáculo à ciência).No entanto, como luterano, Kepler estava convencido
de que se Deus quisesse que algo fosse um círculo, seria exatamente um círculo. E se
não era exatamente um círculo, deveria ser exatamente alguma outra coisa, e não uma
mera variação caprichosa. Essa convicção manteve Kepler em conflito intelectual por
seis anos, e milhares de páginas de cálculos, até que ele finalmente chegou à idéia de
elipses. O historiador R. G. Collingwood vai longe ao ponto de dizer que “A própria
possibilidade de matemática aplicada é uma expressão… da convicção cristã de que a
natureza é criação de um Deus onipotente”. 19
Era Bom
Um problema final com o pensamento grego era o pequeno valor que ele
concedia ao mundo material. Matéria era vista como menos que real, o reino da simples
aparência, por vezes mesmo a fonte do mal. Muitos historiadores acreditam que essa é
uma das razões porque os gregos não desenvolveram uma ciência empírica. As elites
intelectuais não tinham interesse em sujar as suas próprias mãos com experimentos
reais, e tinham desprezo pelos fazendeiros e artesãos que poderiam fornecer-lhes um
conhecimento prático da natureza.
A igreja cristã primitiva mostrou forte objeção a essa atitude. Os pais da igreja
ensinaram que o mundo material veio das mãos de um Criador bom, e que portanto, era
essencialmente bom. O efeito disso é descrito por uma filósofa britânica da ciência,
Mary Hesse: “Nunca houve espaço na tradição cristã ou hebraica para a idéia de que o
mundo material é algo de que devemos nos desvencilhar, e que trabalhar nele é
degradante”. Pelo contrário, “As coisas materiais devem ser usadas para a glória de
Deus e para o bem do homem”. 20
18 C.F. von Weizsacher, The Relevance of Science (New York: Harper and Row, 1964), p. 163.
19 R.G. Collingwood, An Essay on Metaphysics (Chicago: Henry Regnery, Gateway Editions, 1972;
originalmente publicado por London: Oxford University Press, 1940), pp. 253-257. Veja Soul of Science,
pp. 27-29 (A Alma da Ciência – Fé Cristã e Filosofia Natural, Ed. Cultura Cristã, 2005).
20 Mary Hesse, Science and the Human Imagination: Aspects of the History and Logic of Physical Science
(New York: Philosophical Library, 1955), pp. 42-43, ênfase adicionada.
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Kepler é, mais uma vez, um bom exemplo. Quando ele descobriu a terceira lei
do movimento planetário (o período orbital elevado ao quadrado é proporcional ao
semi-eixo maior elevado à terceira potência, ou P [índice 2] = a [índice 3]), essa era
para ele uma “assombrosa confirmação de um deus geômetra digno de adoração. Ele
confessou ter sido ‘arrastado por um êxtase inexprimível perante o espetáculo divino da
harmonia celestial’”. 21
Na cosmovisão cristã, a investigação científica da natureza tornou-se tanto um
chamado como uma obrigação. Como explica o historiador John Hedley Brooke, os
cientistas primitivos “freqüentemente afirmariam que Deus se revelou em dois livros –
o livro das Suas palavras (a Bíblia) e o livro das Suas obras (natureza). Posto que uma
pessoa estivesse na obrigação de estudar o primeiro, estaria da mesma forma na
obrigação de estudar o segundo”. 22 O surgimento da ciência moderna não poderia ser
explicado à parte da visão cristã da natureza como sendo boa e digna de estudo, o que
levou os primeiros cientistas a tratar o seu trabalho como obediência ao mandato
cultural de “cultivar o jardim”.
A Guerra que Não Houve
Atualmente a maior parte dos historiadores da ciência concorda com essa
avaliação positiva do impacto que a cosmovisão cristã teve no surgimento da ciência.
No entanto, mesmo pessoas altamente educadas permanecem ignorantes desse fato.
Qual seria a razão para isso?
A resposta é que a história foi instituída como disciplina moderna por
representantes do Iluminismo, como Voltaire, Gibbon e Hume, que tinham uma agenda
muito específica: eles pretendiam desacreditar o Cristianismo e ao mesmo tempo
promover o racionalismo. E fizeram isso pintando a idade média como “Era das
Trevas”, um período de ignorância e superstição. Eles elaboraram uma saga heróica em
que a ciência moderna tinha de batalhar contra uma oposição e opressão ferrenhas das
autoridades da Igreja. Entre historiadores profissionais, esses antigos relatos não são
mais hoje considerados fontes confiáveis. No entanto, eles definiram o tom para o modo
com que os livros de história seriam escritos a partir de então. A história da ciência é
freqüentemente exposta como uma estória de moralidade secular de iluminismo e
progresso contra as forças obscuras da religião e da superstição.
Stark coloca isso em termos particularmente fortes: “O ‘Iluminismo’ [foi]
concebido inicialmente como uma tática de propaganda por ateus e humanistas
militantes que tentaram reivindicar o crédito pelo surgimento da ciência”. 23 O
comentário de Stark expressa um tom de afronta moral de que essa história prejudicial
continua a ser perpetuada, mesmo nos círculos acadêmicos. Ele mesmo publicou um
21 John Hedley Brooke, "Scientists and their Gods," Science and Theology News, Volume 11/12
Julho/Agosto, 2001, em http://www.stnews.org/archives/2001/Jul_feat2.html. Veja também John Hedley
Brooke, "Can Scientific Discovery be a Religious Experience?," o ensaio de Alister Hardy Memorial
realizado no Harris Manchester College, Oxford, em 4 de Novembro, 2000, em
http://users.ox.ac.uk/~theo0038/brookealisterhardy.html; e John Hedley Brooke, "Science and Religion:
Lessons from History?," Science, Volume 282, Número 5396 (11de Dezembro, 1998) pp. 1985 - 1986.
22 John Hedley Brooke, Science and Religion: Some Historical Perspectives, Cambridge University Press,
1995), p. 22. Veja também Soul of Science, pp. 34-36 (A Alma da Ciência – Fé Cristã e Filosofia
Natural, Ed. Cultura Cristã, 2005).
23 Stark, p.123.
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