Nos últimos trinta anos, um certo grau de ceticismo sobre os méritos da tecnologia vieram à tona nas reflexões e escritos de muitos cristãos. Sem dúvida, os bons cristãos têm razão para estarem preocupados com os usos que muitas vezes são dados à tecnologia. Quando Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal”, não se referia à mentalidade burocrática que, com relativa eficiência, tratava de matar os judeus europeus. Ela também tinha em mente o modo pelo qual a tecnologia moderna fazia com que a matança em série de seres humanos parecesse menos enlouquecida, menos sanguinária, e até mesmo um tanto desapaixonada.
Cada vez mais os acontecimentos tecnológicos quotidianos, tais como a popularização do e-mail e da Internet, são, por vezes, retratados por alguns cristãos como facilitadores da despersonalização da vida humana e dos relacionamentos. Outros cristãos parecem suspeitar da associação da tecnologia com a emergência da modernidade, ou seja, um período da história no qual as exigências da Revelação são, muitas vezes, vistas como se fossem desafiadas pelos avanços da ciência.
Certa vez, Karl Marx argumentou que a sociedade tecnológica facilitava o ateísmo. Sem dúvida, há um tanto de verdade nessa afirmativa. Os avanços tecnológicos criam para nós um mundo cercado de produtos feitos pelo homem. Muitos de nós vivemos numa cultura repleta de aparelhos mecânicos pelos quais moldamos nossas vidas, e em estruturas sem precedentes na história, dominadas por certas características construídas pelo homem. Como resultado, a tecnologia nos dá uma imagem de nossas obras. Essa auto-imagem é o que muitos seres humanos consideram, admiram e, às vezes, cultuam.
O problema do auto-consumo e do culto idólatra de si mesmo têm, no entanto, atormentado o homem desde o princípio. Ocorreu em todas as culturas e em todas as épocas, não importando o grau de desenvolvimento tecnológico. No mundo romano atingiu uma espécie de apogeu com a auto-atribuição de divindades por parte dos Césares.
Será possível, então, que os cristãos pensem em tecnologia de alguma forma que evite, ao mesmo tempo, tanto a romantização do mundo pré-moderno e natural, mas também o “cientificismo” que nos faz crer que que a percepção da verdade é essencialmente limitada ao conhecimento da técnica?
Devemos ter em mente que o mal não procede da tecnologia em si. O mal deriva do pecado original e das livres escolhas dos seres humanos que preferem o mal ao bem. Portanto, o problema geralmente não é a tecnologia, mas como ela é usada. Dificilmente esse é um novo dilema.
Leonardo Da Vinci, que também era um engenheiro, desistiu de publicar os planos de um submarino que projetou porque considerava injusto atacar, sem aviso prévio, um adversário que não pudesse ver quem o atacava. Poderíamos supor que a decisão de Da Vinci foi ditada por um estranho código de cavalheirismo renascentista. O raciocínio de Da Vinci, entretanto, pressupunha simplesmente que a tecnologia estava sujeita a uma ordem maior: os ditames da lei moral divina, a única ordem que poderia dar à tecnologia um significado apropriado e determinar os fins para os quais poderia ser usada. Assim, devemos considerar que os submarinos não precisam ser empregados somente para fins violentos. Eles, de fato, têm servido para revelar ao homem muitas das glórias, anteriormente ocultas aos homens, como o mundo submarino criado por Deus.
Na verdade, é difícil pensar em algo que nos dê uma imagem mais poderosa da manifestação da Criação de Deus do que os imensos espaços solares que a astronomia nos permite vislumbrar. Em outras palavras, a tecnologia permitiu perceber uma parte do mistério complexo e interligado do universo de um modo nunca antes imaginado por Galileu ou Ptolomeu.
E nisso reside a maior de todas as ironias. Foi precisamente por realizar o mandato do livro do Gênesis de preencher a Terra e subjugá-la, que os seres humanos não só participam da ampliação do ato criador, mas também adquirem maior percepção das maravilhas da Criação. Por intermédio da tecnologia, cada vez um número maior de cientistas começa a vislumbrar o projeto e a ordem das coisas, onde muitos de seus ancestrais só viam a escuridão e o caos.
Nesse sentido, a tecnologia pode ajudar a desmistificar e “des-divinizar” o mundo material ao nos despertar para a majestade dAquele que o criou.
Jean Daniélou, um jesuíta estudioso da Patrística, certa vez observou que o homem primitivo identificava o sobrenatural em todos os lugares, mas isso se devia, em grande parte, à sua ignorância. Dessa forma, percebeu Daniélou, a tecnologia pode ajudar a “libertar a religião e a percepção humana do sobrenatural do incômodo fardo do pseudo-sobrenatural e do pseudo-religioso”.
Tudo isso nos leva a reconhecer que não há necessidade de denegrir Bill Gates para exaltar Santo Agostinho, da mesma forma que também não precisamos degradar a tecnologia humana para exaltar as obras de Deus. Quanto maiores as conquistas da tecnologia humana, segundo o divino ordenamento moral, escreveu Daniélou, Deus se mostra ainda maior ao homem.
Nesse sentido, não devemos ser excessivamente temerosos das conquistas tecnológicas do homem. Certamente, o cristão deve exigir que o uso que o homem dê à tecnologia, como a todas as outras escolhas, se conforme à Lei moral de Deus, uma lei possível de ser conhecida pela fé e pela razão. Mas, quanto maior o homem e suas conquistas tecnológicas, mais os cristãos devem perceber que ainda maior Ele deve ser – o Deus feito homem, o Alfa e o Ômega de todos os tempos, Jesus Cristo – de quem herdamos nossa própria grandeza.
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