quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

As raízes africanas do cristianismo latino

Agostinho, o Mediterrâneo, a Europa



A Igreja africana dos primeiros séculos teve um papel importante na vida e no desenvolvimento do cristianismo ocidental. Uma conferência do bispo de Argel
de Henri Tessier

Restos arqueológicos de uma basílica cristã em Cartago
     Ainda que certamente não seja um especialista em cristianismo africano dos primeiros séculos, terei a permissão, espero, de expor algumas reflexões sobre o tema que minha conferência pretende desenvolver: “As raízes africanas do cristianismo latino”. Não falarei com base numa competência que não possuo, mas, sim, para propor aos especialistas perguntas sobre uma questão cuja importância é evidente para as Igrejas ao norte e ao sul do Mediterrâneo ocidental.
     Com efeito, parece-me significativo, no contexto do “Ano 2003 da Argélia na França”, trazer ao conhecimento de todos o papel que a Igreja africana dos primeiros séculos teve na vida e no desenvolvimento do cristianismo latino.
     Assim, levarei em consideração diversos aspectos da Igreja latina dos primeiros séculos, para propor perguntas aos especialistas aqui presentes a propósito das contribuições específicas dos cristãos da África setentrional no momento em que o cristianismo latino nascia e, pouco a pouco, ia assumindo na Europa um rosto liberto de suas origens primitivas, gregas e médio-orientais.
     Recentemente, o professor Claude Lepelley propôs uma reflexão sobre esse mesmo tema no simpósio realizado pela Unesco em 30 e 31 de janeiro de 2003. Tomarei a liberdade de basear-me ligeiramente em sua contribuição, mas aproveitarei de minha condição de pastor e do maior tempo que temos à disposição para, também, propor perguntas novas, esperando, assim, trazer minha contribuição a uma tomada de consciência importante para as relações entre os dois Ocidentes, o europeu e o que está ao sul do Mediterrâneo (esse é o sentido da palavra Magreb).
     Tomar consciência desse fato é muito importante para os cristãos da Europa, como também para os atuais habitantes do Magreb. Os europeus devem saber que uma parte notável de suas raízes cristãs latinas se encontram ao sul do Mediterrâneo. E os habitantes do Magreb devem, da mesma forma, conhecer o papel que seus antepassados tiveram numa tradição cultural e religiosa que hoje parece completamente estranha à terra deles. É uma tomada de consciência que pode ter também sua importância para as jovens Igrejas da África, que vêem suas fontes espirituais como unicamente européias, esquecendo não apenas as origens orientais da Bíblia e o desenvolvimento da patrística oriental, mas também o papel da África romana.
     O professor Claude Lepelley, refletindo sobre isso, não hesita em expressar sua posição de forma paradoxal: “O cristianismo ocidental não nasceu na Europa, mas ao sul do Mediterrâneo”.
     É uma afirmação que pode causar espanto, mas amplamente confirmada pela história.
     Tentarei, portanto, dentro em pouco, explorar as pistas principais que devemos seguir para descobrir, sob diversos aspectos, as raízes africanas do cristianismo latino.
      
São Cipriano, detalhe de um mosaico do século VI que representa a procissão dos mártires, na Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena
      
     1. A literatura cristã latina nasceu na África romana
     O primeiro dado tem uma importância considerável. As mais antigas obras de teologia cristã em latim que chegaram até nós foram escritas na Itália, na Espanha, na Gália ou na Dalmácia, mas vêm de Cartago. No tempo de Tertuliano, os cristãos do norte do Mediterrâneo ainda escreviam em grego. Era o que fazia, evidentemente, Clemente de Roma, um século antes. Mas era também o que, pouco antes de Tertuliano, fazia Justino - que não é exatamente um “padre latino”, mas morreu mártir em Roma (†165 aprox.). Ele vinha da Palestina, escrevera inicialmente em grego aos gregos, e continuou a fazê-lo quando chegou a Roma.
     Irineu (†200 aprox.), quando se transferiu para Lyon, vindo de Esmirna, escreveu naquela cidade, também em grego, o seu Adversus haereses, na época em que Tertuliano já escrevera seus primeiros tratados em latim. Hipólito (†236), mesmo sendo um sacerdote de Roma, mais jovem do que Tertuliano, escreveria também sua obra em grego.
     Além de Tertuliano, o primeiro autor em latim que se conhece é Minúcio Félix. Mas não há provas de que seja anterior a Tertuliano. E, em todo caso, sua obra se mantém no nível de uma apologética que usa pouco o vocabulário teológico propriamente cristão. Portanto, devemos a Tertuliano os primeiros tratados teológicos em latim. Ele escreveu primeiramente em grego, mas bem cedo passaria ao latim, para chegar até seu público africano. Estabelecer com precisão o quanto a língua cristã deve a Tertuliano é tarefa para especialistas. Mesmo não tendo criado todo o vocabulário cristão em latim, será a sua obra a constituir o primeiro corpus cristão de referência nessa língua. Ao que parece, a língua latina deve a ele mil palavras cristãs.
     Apresento a seguir, a título de exemplo, duas citações de Tertuliano que ilustram a dificuldade dessa primeira tentativa de transposição do cristianismo, a partir da sua expressão original em grego, para a formulação em latim.
     O primeiro trecho expõe o problema da tradução grega da palavra logos pelo latim sermo (que podemos traduzir igualmente tanto por “palavra” quanto por “Verbo”): “De fato, antes de qualquer outra coisa, Deus estava só: era completamente, para Si mesmo, o seu próprio mundo, o seu próprio estado, e todas as coisas. Estava só também no fato de que não havia nada que fosse externo a ele. No entanto, não estava então realmente só. Estava acompanhado daquele que Ele ti­nha em Si mesmo, ou seja, de Sua razão. Com efeito, Deus é racional e a Razão está no início nEle mesmo, visto que tudo procede dEle. Essa Razão é seu próprio pensamento. Os gregos o chamam ‘logos’, vocábulo para o qual nós dizemos também ‘palavra’. É por isso que, graças a uma tradução facilitada, nós costumamos dizer que ‘no princípio a palavra estava junto de Deus’, ao passo que seria preferível falar de Razão, pelo fato de que, antes do próprio princípio, Deus não era Verbo, mas Razão, e de que o Verbo existe mediante a Razão, que, por conseqüência, lhe é anterior” (Adversus Praxean, 5, 2-3).
     No segundo exemplo, descobriremos a oscilação que existe no vocabulário entre substantia e materia, quando Tertuliano, numa mesma passagem, recorre a essas duas palavras para traduzir o grego ousia (substância): “É chamado Filho de Deus e Deus, em razão da unidade da substância; pois Deus também é espírito. Quando um raio é lançado para fora do sol, é uma parte que se distancia do todo; mas o sol está dentro do raio, pois é um raio de sol, e a substância não é dividida, mas se estende, como a luz que ilumina a luz. A matéria-fonte continua inteira, e não perde nada, mas comunica sua natureza por muitos canais” (Apologeticum XXI, 12).
     Mas, no conjunto, ficamos profundamente impressionados com a firmeza e decisão das formulações de Tertuliano. Eis um exemplo, tomado entre muitos outros possíveis: “Era preciso, então, que a imagem e semelhança de Deus fosse criada dotada de livre-arbítrio e autonomia própria, a fim de que justamente a estes - ao livre-arbítrio e à autonomia - fosse confiada a imagem e a semelhança de Deus. A propósito disso foi assinalada ao homem uma substância apropriada a esse estado” (Adversus Marcionem II, 6, 3).
Evangeliário latino, Codex Palatinus 1589, ff. 43v-44r, fim do século V, Museu e Coleção Provinciais, Castelo do Bom Conselho, Trento (Itália). Os Evangelhos púrpuras de Trento transmitem um texto latino anterior a Jerônimo, correspondente a uma edição dos Evangelhos difundida na África no século III, que foi utilizada por Cipriano
     Cipriano (†258), cronologicamente o segundo dos Padres ocidentais a nos deixarem uma obra escrita em latim, também é africano. Sua obra é anterior em mais de um século à de Hilário de Poitiers (†367), à de Ambrósio de Milão (†397), e, ainda, à de Jerônimo (†420). Arnóbio (†327 aprox.) é africano também. Lembremos, por outro lado, que curiosamente o pagão Cecílio, do Octavius, a apologia de Minúcio Félix, é apresentado como um amigo proveniente de Frontão de Cirta (Constantina, na Numídia) e autor de uma diatribe contra os cristãos (162-166). Podemos notar também que Lactâncio, morto por volta de 325, três quartos de século depois da morte de Cipriano, nasceu na África, segundo São Jerônimo. Lactâncio ensinou latim em Nicomédia, na Ásia Menor, onde o imperador Diocleciano estabeleceu sua capital, portanto em pleno âmbito de difusão da cultura grega. Dizem desse africano “que é o homem mais eloqüente de seu tempo em língua latina”. São períodos em que, no Ocidente cristão, não há nenhum nome de autor latino cristão que possa ser citado, enquanto não chegarmos a Hilário de Poitiers (†367) e Martinho de Tours (†397).
      
      
     2. As mais antigas traduções da Bíblia para o latim são também africanas
     Ainda a propósito da língua, seria interessante obter informações detalhadas dos especialistas, sobretudo a respeito da Vetus Latina. De fato, dizem que a África possuía as mais antigas versões latinas de um determinado número de livros da Bíblia antes que Jerônimo desse ao mundo latino a sua famosa tradução, que se tornaria ponto de referência unânime no mundo latino até a reforma litúrgica do Vaticano II.
     Também aqui, deixo às pessoas competentes a tarefa de dar explicações mais precisas, mas há muito tempo os especialistas atribuem à África cristã um papel determinante no que diz respeito às primeiras traduções da Bíblia do grego para o latim. Pierre Maurice Bogaert (“La Bible latine des origines au Moyen-Âge”, in: Revue Theologique de Louvain, 19 [1988], p. 137) escreve: “Quando essa necessidade começou a ser sentida - seguramente a partir de meados do século II, na África romana -, a Bíblia foi traduzida do grego para o latim. [...] Até prova em contrário, sou mais pela origem africana [das traduções] que pela origem romana ou italiana”. Pensa-se, ainda, que todas essas primeiras traduções tenham sido feitas para a comunidade judaica da África setentrional, pelas exigências de seus fiéis.
     É verdade que essas traduções antigas seriam muitas vezes suplantadas, em seguida, pela tradução de Jerônimo, mas seus vestígios continuariam a ser importantes em muitos livros da Bíblia, como, por exemplo, no dos Salmos.
     O Ocidente latino, repito, deve à África romana algumas de suas mais antigas traduções bíblicas.
      
Evangeliário latino, Codex Eusebi, s.n., pp. 440-437, Biblioteca Capitular, Verceli (Itália). Este manuscrito é o testemunho mais antigo dos quatro Evangelhos em texto dito “europeu”, anterior à Vulgata de Jerônimo
      
     3. Os primeiros relatos dos mártires em língua latina
     Outro campo de expressão cristã muito antigo em língua latina aparece na África na forma dos Atos dos mártires. Dom Victor Saxer, ex-presidente do Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã, escreve a respeito disso: “A hagiografia africana - de expressão latina desde seu nascimento - tem o privilégio singular de incluir algumas das obras mais antigas, mais autênticas e mais belas desse gênero literário” (Victor Saxer, Saints Anciens d’Afrique du Nord, Roma, 1979, p. 6). De resto, o mais antigo documento cristão em latim que chegou até nós é também o mais antigo relato proveniente da África cristã, o dos mártires de Scili (17 de julho de 180), sendo Scili uma cidade da África proconsular sobre cuja localização ainda pairam dúvidas.
     Aqui também, os especialistas devem sublinhar o fato de que os Atos dos mártires africanos e suas Paixões são os documentos mais antigos desse gênero na literatura cristã. Servirão de modelo para os trabalhos seguintes do gênero no Ocidente.
     O mesmo vale para o gênero literário mais amplo, ou seja, as biografias dos santos. Um gênero que nasceu na África e que terá uma grande seqüência em toda a Igreja. Foi inaugurado pela vida de São Ciprian­o, escrita pelo diácono Pôncio.
     Conhecemos também a vida de Santo Agostinho redigida por seu colega e amigo Possídio de Calama (a atual Guelma, na Argélia) e a de Fulgêncio de Ruspe (†527; Ruspe ficaria hoje entre Sfax e Sousse, na Tunísia), escrita pelo diácono de Fulgêncio, Ferrando.
     A porta está aberta para as obras hagiográficas bastante posteriores de Gregório de Tours sobre São Martinho e a glória dos mártires.
      
      
Os restos arqueológicos do teatro romano de Leptis Magna, atualmente na Líbia
     4. O peso demográfico da Igreja da África no Ocidente latino
     Claude Lepelley, em sua conferência na Unesco, encontra outro motivo pelo qual a Igreja da África influenciou o Ocidente latino: seu peso demográfico. Não é fácil medi-lo em termos de população cristã, mas o número de episcopados é notável. No primeiro Concílio de Cartago, no ano 200, já se contam setenta bispos da África romana sob a presidência de Agripino. No mesmo período, na Itália setentrional, não se sabe se havia outros episcopados além dos de Roma, Milão e Ravena. No segundo Concílio de Cartago, já são noventa bispos africanos reunidos. No mesmo período, no Sínodo de Roma, sob o papa Cornélio, contam-se apenas sessenta bispos. No Concílio de Arles sobre o donatismo (problema africano), em 314, nota-se a presença de 46 bispos (16 da Gália, 10 da Itália, 9 da África, 6 da Espanha e 8 da Bretanha).
     Conhecemos o número de bispos que participaram do Concílio de 411 em Cartago. Sabe-se que havia 279 bispos católicos presentes e 270 donatistas. Considerando que de ambos os lados havia uma centena de bispos ausentes, seu número total chegaria a mais de seiscentos. É um dado que dá uma idéia da rede de episcopados sobretudo na África proconsular (Tunísia), mas também na Numídia (região de Constantina).
     Além disso, a influência africana em Roma faz-se sentir já desde 189, quando Vítor, um africano de Leptis Magna, é eleito papa em Roma (189-198). Isso mostra o espaço que devia ter a Igreja da África em Roma desde o fim do século II. Um espaço que, nos séculos III e IV, continuaria a aumentar.
      
      
No baixo-relevo em círculo, uma representação do papa Vítor I
     5. A influência determinante de Santo Agostinho
     Mas todos os elementos assinalados até aqui não teriam seguramente conseqüências duradouras sem a personalidade teológica e espiritual de Santo Agostinho, e sem as prodigiosas dimensões de sua obra escrita. É inútil evocar aqui como a sua influência persiste no Ocidente latino até a Reforma, até o jansenismo, e, por último, até hoje. Essa influência foi descrita em todos os estudos sobre Agostinho. O que se deve sublinhar, sobretudo, é a presença, em sua obra, de uma síntese original do cristianismo, que, mesmo conhecendo ele a patrística grega, ganha os contornos de uma meditação pessoal da Escritura e de sua experiência espiritual específica.
     Goulven Madec, numa obra recente (Lectures augustiniennes, Paris, 2001, pp. 99-109), propõe um estudo sobre as influências cristãs recebidas por Agostinho, e nota a importância das referências latinas, mais numerosas que as dos Padres gregos. Hilário de Poitiers, a certa altura exilado no Oriente, e Ambrósio devem muito mais a suas fontes gregas do que Agostinho. Agostinho deseja ser plenamente fiel à tradição da grande Igreja, mas arraiga sua teologia em primeiro lugar na sua leitura pessoal das Escrituras e na própria experiência.
     Sua referência às fontes da filosofia grega também é mediada pelo testemunho de dois latinos, Simpliciano e Vitorino, mais do que pelo dos Padres gregos. Com Agosti­nho, o Ocidente latino conquistou sua independência teológica e, com isso, também sua personalidade cristã.
     Alguns poderiam desaprovar essa evolução, e preferir a leitura do cristianismo proposta pelos Padres gregos. Mas todos devem reconhecer que o Ocidente latino deve sobretudo a Agostinho sua leitura própria da mensagem bíblica.
      
      
     6. A tradição monástica agostiniana
     Sabe-se que o monaquismo nasceu no Oriente. Ele se difunde no Ocidente primeiramente por intermédio de São Martinho (†397), nascido em Panônia, na fronteira latina do Ocidente. O próprio Agostinho conta como descobriu, em Milão, graças a Ponticiano, alguns anacoretas convertidos à vida ascética pela biografia de Santo Antônio Abade (†356), que Atanásio acabara de escrever, poucos anos depois da morte de Antônio. Essa descoberta, como se sabe, terá um papel importante na vida de Agostinho, que, de volta a Tagaste, organizará os primeiros lugares africanos de vida monástica. Adaptará, depois, esse modo de viver à comunidade que se desenvolverá ao seu redor, quando for bispo, e dará ao mundo latino sua regra de vida e o exemplo de suas comunidades monásticas pastorais. O Ocidente latino adotará esse exemplo numa parte de sua tradição de vida religiosa comunitária (os agostinianos, os premonstratenses, etc.). Mas os especialistas encontram também na regra de São Bento influências derivadas em particular da regra de Santo Agostinho.
      
      
A mais antiga imagem de Santo Agostinho, num afresco do século VI, em São João de Latrão, Roma
     7. A influência do direito eclesiástico africano
     O professor Claude Lepelley nos sugere também um outro âmbito no qual se exerce a influência da Igreja da África sobre a Igreja latina: o do direito eclesiástico. Como se sabe, a vida conciliar foi mais intensa na África setentrional que nas outras regiões do Ocidente latino, sobretudo nos séculos III e IV. As decisões daqueles entendimentos constituíram o corpus que influenciaria as Igrejas do Ocidente, sobretudo por intermédio da Espanha visigótica.
      
      
     8. A obra de Agostinho, disponível na Europa desde a morte do bispo de Hipona
     Não podemos contar, aqui, como a obra de Agostinho conseguiu escapar do saque de Hipona realizado pelos vândalos, para depois conquistar a Europa. Serge Lancel diz sobre isso: “Não faltam indícios que permitem afirmar, sem provas, mas com forte verossimilhança, que o conhecimento extremamente completo que se tinha na Itália da obra de Agostinho desde a metade do século V não se devia às cópias de sua obra, difundidas antes da morte do bispo de uma forma apenas parcial, mas muito mais a sua transferência integral para Roma e a sua inserção no acervo da biblioteca apostólica, por volta da metade do século V, em condições e de formas que, diga-se, continuam a ser misteriosas, se não miraculosas” (Serge Lancel, Saint Augustin, Paris, 1999, p. 668).
     Assim, a obra de Agostinho acabou disponível muito cedo ao norte do Mediterrâneo, de onde teve a difusão que todos sabemos.
     Conhecemos o que está escrito sobre um afresco no Latrão que constitui a mais antiga representação do bispo de Hipona: “Os vários Padres explicaram muitas coisas, mas apenas ele disse tudo em latim, explicando os mistérios com o tom de sua grande voz”.
      
Os restos arqueológicos da antiga cidade de Hipona, na Argélia
      
     Conclusão
     Parece-me que as várias temáticas enfrentadas, não obstante a brevidade das indicações propostas, põem suficientemente em evidência a realidade das raízes africanas ou númidas do cristianismo latino. Uma ilusão de perspectiva levou muitas vezes a considerar os primeiros séculos cristãos, no Império do Ocidente, como uma realidade quase unicamente européia. Na realidade, uma região como a África proconsular parece ter sido evangelizada muito antes e de maneira mais vasta que muitas regiões do norte da Itália, das Gálias ou da Espanha. Apenas para dar um exemplo, é significativo que o primeiro Concílio das Gálias, em Arles, a 314, tenha-se reunido para dar seu apoio a um problema tipicamente africano, o do cisma donatista. É a prova dos laços que então existiam entre as Igrejas ao norte e ao sul do Mediterrâneo ocidental. Mas é também a prova das dimensões reduzidas das Igrejas setentrionais, que, reunindo bispos da Itália, da Gália, da Espanha e da Bretanha, aos quais se acrescentavam bispos africanos, só conseguiam juntar um número de participantes muito inferior ao dos concílios africanos da mesma época.
     Mas é claro que será sobretudo com a personalidade espiritual, pastoral e teológica de Agostinho que a influência da Igreja africana sobre as Igrejas da Europa assumirá todo o seu porte. Um fato tão consolidado, em nível teológico, que não é nem o caso de frisá-lo. Mas é preciso calcular sua importância para além da esfera particular das ciências eclesiais. As opções filosóficas feitas por Agostinho já fazem parte do condicionamento do pensamento no Ocidente europeu. Para dar a essa afirmação o peso que ela deve ter, pode-se transcrever, entre outros testemunhos, a observação de um dos mais recentes ensaístas sobre a questão, Jean-Claude Eslin: “Do nosso ponto de vista, a grandeza de Agostinho consiste em ter ele sabido construir, numa obra que compreende mais de noventa volumes e opúsculos, uma articulação inédita entre o mundo da antigüidade e o mundo cristão que lhe dá nova forma. Nesse sentido, Agostinho representa o primeiro homem ocidental, o primeiro moderno, pois é o primeiro a ter tentado uma tal articulação numa expressão filosoficamente inteligível, e, tendo-o feito, modelado assim a nossa sensibilidade durante séculos. Com relação ao Império Romano, e também ao cristianismo do Oriente e à estabilidade dos valores deste mundo e do homem antigo, ele marca uma ruptura, e representa o momento fundador, pelo fato de que instaura uma inquietude ocidental, e introduz uma instabilidade constitutiva (na política, na sexualidade), uma dinâmica que, depois de quinze séculos, não se encerrou; Agostinho é a inquietação do espírito no próprio seio do porto encontrado” (Saint Augustin. L’homme occidental, Paris, 2002, pp. 8-9).
     Não acabaríamos de citar expressões que põem em evidência a influência sem igual do pensamento e da obra de Agostinho sobre o Ocidente latino. “Nenhuma obra de um autor cristão em língua latina suscitaria admiração e inquietude tão grandes e conheceria uma glória semelhante” (Dominique de Courcelles, Augustin ou le génie de l’Europe, Paris, 1994, p. 295). A ponto de o autor desse trecho, mesmo sabendo que está falando, como ele diz, “de um bárbaro cristão”, dar a sua obra o título Agostinho ou o gênio da Europa. E esse gênio era um númida do Império Romano. Que transfusão de sabedoria do sul para o norte do Mediterrâneo!
      
     (Extraído da conferência promovid­a pelo Instituto de Estudos Agostinianos; Paris, 13 de março de 2003)

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