Agostinho, o Mediterrâneo, a Europa
A Igreja africana dos
primeiros séculos teve um papel importante na vida e no desenvolvimento
do cristianismo ocidental. Uma conferência do bispo de Argel
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de Henri Tessier
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Com efeito, parece-me significativo, no
contexto do “Ano 2003 da Argélia na França”, trazer ao conhecimento de todos o
papel que a Igreja africana dos primeiros séculos teve na vida e no
desenvolvimento do cristianismo latino.
Assim, levarei em consideração
diversos aspectos da Igreja latina dos primeiros séculos, para propor perguntas
aos especialistas aqui presentes a propósito das contribuições específicas dos
cristãos da África setentrional no momento em que o cristianismo latino nascia
e, pouco a pouco, ia assumindo na Europa um rosto liberto de suas origens
primitivas, gregas e médio-orientais.
Recentemente, o professor Claude Lepelley
propôs uma reflexão sobre esse mesmo tema no simpósio realizado pela Unesco em
30 e 31 de janeiro de 2003. Tomarei a liberdade de basear-me ligeiramente em
sua contribuição, mas aproveitarei de minha condição de pastor e do maior tempo
que temos à disposição para, também, propor perguntas novas, esperando, assim,
trazer minha contribuição a uma tomada de consciência importante para as
relações entre os dois Ocidentes, o europeu e o que está ao sul do Mediterrâneo
(esse é o sentido da palavra Magreb).
Tomar consciência desse fato é muito
importante para os cristãos da Europa, como também para os atuais habitantes do
Magreb. Os europeus devem saber que uma parte notável de suas raízes cristãs
latinas se encontram ao sul do Mediterrâneo. E os habitantes do Magreb devem,
da mesma forma, conhecer o papel que seus antepassados tiveram numa tradição
cultural e religiosa que hoje parece completamente estranha à terra deles. É uma
tomada de consciência que pode ter também sua importância para as jovens
Igrejas da África, que vêem suas fontes espirituais como unicamente européias,
esquecendo não apenas as origens orientais da Bíblia e o desenvolvimento da
patrística oriental, mas também o papel da África romana.
O professor Claude Lepelley, refletindo
sobre isso, não hesita em expressar sua posição de forma paradoxal: “O
cristianismo ocidental não nasceu na Europa, mas ao sul do Mediterrâneo”.
É uma afirmação que pode causar espanto, mas
amplamente confirmada pela história.
Tentarei, portanto, dentro em pouco,
explorar as pistas principais que devemos seguir para descobrir, sob diversos
aspectos, as raízes africanas do cristianismo latino.
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1. A literatura cristã latina nasceu na África
romana
O primeiro dado tem uma importância
considerável. As mais antigas obras de teologia cristã em latim que chegaram
até nós foram escritas na Itália, na Espanha, na Gália ou na Dalmácia, mas vêm
de Cartago. No tempo de Tertuliano, os cristãos do norte do Mediterrâneo ainda
escreviam em grego. Era o que fazia, evidentemente, Clemente de Roma, um século
antes. Mas era também o que, pouco antes de Tertuliano, fazia Justino - que não
é exatamente um “padre latino”, mas morreu mártir em Roma (†165 aprox.). Ele
vinha da Palestina, escrevera inicialmente em grego aos gregos, e continuou a
fazê-lo quando chegou a Roma.
Irineu (†200 aprox.), quando se transferiu
para Lyon, vindo de Esmirna, escreveu naquela cidade, também em grego, o seu Adversus
haereses, na época em que
Tertuliano já escrevera seus primeiros tratados em latim. Hipólito (†236),
mesmo sendo um sacerdote de Roma, mais jovem do que Tertuliano, escreveria
também sua obra em grego.
Além de Tertuliano, o primeiro autor em
latim que se conhece é Minúcio Félix. Mas não há provas de que seja anterior a
Tertuliano. E, em todo caso, sua obra se mantém no nível de uma apologética que
usa pouco o vocabulário teológico propriamente cristão. Portanto, devemos a
Tertuliano os primeiros tratados teológicos em latim. Ele escreveu
primeiramente em grego, mas bem cedo passaria ao latim, para chegar até seu
público africano. Estabelecer com precisão o quanto a língua cristã deve a
Tertuliano é tarefa para especialistas. Mesmo não tendo criado todo o
vocabulário cristão em latim, será a sua obra a constituir o primeiro corpus cristão de referência nessa língua. Ao
que parece, a língua latina deve a ele mil palavras cristãs.
Apresento a seguir, a título de exemplo,
duas citações de Tertuliano que ilustram a dificuldade dessa primeira tentativa
de transposição do cristianismo, a partir da sua expressão original em grego,
para a formulação em latim.
O primeiro trecho expõe o problema da
tradução grega da palavra logos pelo latim sermo
(que podemos traduzir igualmente tanto por “palavra” quanto por “Verbo”): “De
fato, antes de qualquer outra coisa, Deus estava só: era completamente, para Si
mesmo, o seu próprio mundo, o seu próprio estado, e todas as coisas. Estava só
também no fato de que não havia nada que fosse externo a ele. No entanto, não
estava então realmente só. Estava acompanhado daquele que Ele tinha em Si
mesmo, ou seja, de Sua razão. Com efeito, Deus é racional e a Razão está no
início nEle mesmo, visto que tudo procede dEle. Essa Razão é seu próprio
pensamento. Os gregos o chamam ‘logos’, vocábulo para o qual nós dizemos também
‘palavra’. É por isso que, graças a uma tradução facilitada, nós costumamos
dizer que ‘no princípio a palavra estava junto de Deus’, ao passo que seria
preferível falar de Razão, pelo fato de que, antes do próprio princípio, Deus
não era Verbo, mas Razão, e de que o Verbo existe mediante a Razão, que, por
conseqüência, lhe é anterior” (Adversus Praxean, 5, 2-3).
No segundo exemplo, descobriremos a
oscilação que existe no vocabulário entre substantia e materia, quando Tertuliano, numa mesma passagem, recorre a
essas duas palavras para traduzir o grego ousia (substância): “É chamado Filho de Deus e Deus, em
razão da unidade da substância; pois Deus também é espírito. Quando um raio é
lançado para fora do sol, é uma parte que se distancia do todo; mas o sol está
dentro do raio, pois é um raio de sol, e a substância não é dividida, mas se
estende, como a luz que ilumina a luz. A matéria-fonte continua inteira, e não
perde nada, mas comunica sua natureza por muitos canais” (Apologeticum XXI, 12).
Mas, no conjunto, ficamos profundamente
impressionados com a firmeza e decisão das formulações de Tertuliano. Eis um
exemplo, tomado entre muitos outros possíveis: “Era preciso, então, que a
imagem e semelhança de Deus fosse criada dotada de livre-arbítrio e autonomia
própria, a fim de que justamente a estes - ao livre-arbítrio e à autonomia -
fosse confiada a imagem e a semelhança de Deus. A propósito disso foi
assinalada ao homem uma substância apropriada a esse estado” (Adversus
Marcionem II, 6, 3).
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Cipriano (†258), cronologicamente o
segundo dos Padres ocidentais a nos deixarem uma obra escrita em latim, também
é africano. Sua obra é anterior em mais de um século à de Hilário de Poitiers
(†367), à de Ambrósio de Milão (†397), e, ainda, à de Jerônimo (†420). Arnóbio
(†327 aprox.) é africano também. Lembremos, por outro lado, que curiosamente o
pagão Cecílio, do Octavius, a apologia de Minúcio Félix, é apresentado como um amigo proveniente
de Frontão de Cirta (Constantina, na Numídia) e autor de uma diatribe contra os
cristãos (162-166). Podemos notar também que Lactâncio, morto por volta de 325,
três quartos de século depois da morte de Cipriano, nasceu na África, segundo
São Jerônimo. Lactâncio ensinou latim em Nicomédia, na Ásia Menor, onde o
imperador Diocleciano estabeleceu sua capital, portanto em pleno âmbito de
difusão da cultura grega. Dizem desse africano “que é o homem mais eloqüente de
seu tempo em língua latina”. São períodos em que, no Ocidente cristão, não há
nenhum nome de autor latino cristão que possa ser citado, enquanto não
chegarmos a Hilário de Poitiers (†367) e Martinho de Tours (†397).
2. As mais antigas traduções da Bíblia para o
latim são também africanas
Ainda a propósito da língua, seria
interessante obter informações detalhadas dos especialistas, sobretudo a
respeito da Vetus Latina.
De fato, dizem que a África possuía as mais antigas versões latinas de um
determinado número de livros da Bíblia antes que Jerônimo desse ao mundo latino
a sua famosa tradução, que se tornaria ponto de referência unânime no mundo
latino até a reforma litúrgica do Vaticano II.
Também aqui, deixo às pessoas competentes
a tarefa de dar explicações mais precisas, mas há muito tempo os especialistas
atribuem à África cristã um papel determinante no que diz respeito às primeiras
traduções da Bíblia do grego para o latim. Pierre Maurice Bogaert (“La Bible
latine des origines au Moyen-Âge”, in: Revue Theologique de Louvain, 19 [1988], p. 137) escreve: “Quando essa
necessidade começou a ser sentida - seguramente a partir de meados do século
II, na África romana -, a Bíblia foi traduzida do grego para o latim. [...] Até
prova em contrário, sou mais pela origem africana [das traduções] que pela
origem romana ou italiana”. Pensa-se, ainda, que todas essas primeiras
traduções tenham sido feitas para a comunidade judaica da África setentrional,
pelas exigências de seus fiéis.
É verdade que essas traduções antigas
seriam muitas vezes suplantadas, em seguida, pela tradução de Jerônimo, mas
seus vestígios continuariam a ser importantes em muitos livros da Bíblia, como,
por exemplo, no dos Salmos.
O Ocidente latino, repito, deve à África
romana algumas de suas mais antigas traduções bíblicas.
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3. Os primeiros relatos dos mártires em língua
latina
Outro campo de expressão cristã muito
antigo em língua latina aparece na África na forma dos Atos dos mártires. Dom Victor Saxer, ex-presidente do
Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã, escreve a respeito disso: “A
hagiografia africana - de expressão latina desde seu nascimento - tem o
privilégio singular de incluir algumas das obras mais antigas, mais autênticas
e mais belas desse gênero literário” (Victor Saxer, Saints Anciens d’Afrique
du Nord, Roma, 1979, p.
6). De resto, o mais antigo documento cristão em latim que chegou até nós é
também o mais antigo relato proveniente da África cristã, o dos mártires de
Scili (17 de julho de 180), sendo Scili uma cidade da África proconsular sobre
cuja localização ainda pairam dúvidas.
Aqui também, os especialistas devem
sublinhar o fato de que os Atos dos mártires africanos e suas Paixões são os documentos mais antigos desse
gênero na literatura cristã. Servirão de modelo para os trabalhos seguintes do
gênero no Ocidente.
O mesmo vale para o gênero literário mais
amplo, ou seja, as biografias dos santos. Um gênero que nasceu na África e que
terá uma grande seqüência em toda a Igreja. Foi inaugurado pela vida de São
Cipriano, escrita pelo diácono Pôncio.
Conhecemos também a vida de Santo
Agostinho redigida por seu colega e amigo Possídio de Calama (a atual Guelma,
na Argélia) e a de Fulgêncio de Ruspe (†527; Ruspe ficaria hoje entre Sfax e
Sousse, na Tunísia), escrita pelo diácono de Fulgêncio, Ferrando.
A porta está aberta para as obras
hagiográficas bastante posteriores de Gregório de Tours sobre São Martinho e a
glória dos mártires.
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4. O peso demográfico da Igreja da África no
Ocidente latino
Claude Lepelley, em sua conferência na
Unesco, encontra outro motivo pelo qual a Igreja da África influenciou o
Ocidente latino: seu peso demográfico. Não é fácil medi-lo em termos de
população cristã, mas o número de episcopados é notável. No primeiro Concílio
de Cartago, no ano 200, já se contam setenta bispos da África romana sob a
presidência de Agripino. No mesmo período, na Itália setentrional, não se sabe
se havia outros episcopados além dos de Roma, Milão e Ravena. No segundo
Concílio de Cartago, já são noventa bispos africanos reunidos. No mesmo
período, no Sínodo de Roma, sob o papa Cornélio, contam-se apenas sessenta
bispos. No Concílio de Arles sobre o donatismo (problema africano), em 314,
nota-se a presença de 46 bispos (16 da Gália, 10 da Itália, 9 da África, 6 da
Espanha e 8 da Bretanha).
Conhecemos o número de bispos que
participaram do Concílio de 411 em Cartago. Sabe-se que havia 279 bispos
católicos presentes e 270 donatistas. Considerando que de ambos os lados havia
uma centena de bispos ausentes, seu número total chegaria a mais de seiscentos.
É um dado que dá uma idéia da rede de episcopados sobretudo na África
proconsular (Tunísia), mas também na Numídia (região de Constantina).
Além disso, a influência africana em Roma
faz-se sentir já desde 189, quando Vítor, um africano de Leptis Magna, é eleito
papa em Roma (189-198). Isso mostra o espaço que devia ter a Igreja da África
em Roma desde o fim do século II. Um espaço que, nos séculos III e IV,
continuaria a aumentar.
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5. A influência determinante de Santo Agostinho
Mas todos os elementos assinalados até
aqui não teriam seguramente conseqüências duradouras sem a personalidade
teológica e espiritual de Santo Agostinho, e sem as prodigiosas dimensões de
sua obra escrita. É inútil evocar aqui como a sua influência persiste no
Ocidente latino até a Reforma, até o jansenismo, e, por último, até hoje. Essa
influência foi descrita em todos os estudos sobre Agostinho. O que se deve
sublinhar, sobretudo, é a presença, em sua obra, de uma síntese original do
cristianismo, que, mesmo conhecendo ele a patrística grega, ganha os contornos de
uma meditação pessoal da Escritura e de sua experiência espiritual específica.
Goulven Madec, numa obra recente (Lectures
augustiniennes, Paris,
2001, pp. 99-109), propõe um estudo sobre as influências cristãs recebidas por
Agostinho, e nota a importância das referências latinas, mais numerosas que as
dos Padres gregos. Hilário de Poitiers, a certa altura exilado no Oriente, e
Ambrósio devem muito mais a suas fontes gregas do que Agostinho. Agostinho
deseja ser plenamente fiel à tradição da grande Igreja, mas arraiga sua
teologia em primeiro lugar na sua leitura pessoal das Escrituras e na própria
experiência.
Sua referência às fontes da filosofia
grega também é mediada pelo testemunho de dois latinos, Simpliciano e Vitorino,
mais do que pelo dos Padres gregos. Com Agostinho, o Ocidente latino
conquistou sua independência teológica e, com isso, também sua personalidade
cristã.
Alguns poderiam desaprovar essa evolução,
e preferir a leitura do cristianismo proposta pelos Padres gregos. Mas todos
devem reconhecer que o Ocidente latino deve sobretudo a Agostinho sua leitura
própria da mensagem bíblica.
6. A tradição monástica agostiniana
Sabe-se que o monaquismo nasceu no
Oriente. Ele se difunde no Ocidente primeiramente por intermédio de São
Martinho (†397), nascido em Panônia, na fronteira latina do Ocidente. O próprio
Agostinho conta como descobriu, em Milão, graças a Ponticiano, alguns
anacoretas convertidos à vida ascética pela biografia de Santo Antônio Abade
(†356), que Atanásio acabara de escrever, poucos anos depois da morte de
Antônio. Essa descoberta, como se sabe, terá um papel importante na vida de
Agostinho, que, de volta a Tagaste, organizará os primeiros lugares africanos
de vida monástica. Adaptará, depois, esse modo de viver à comunidade que se
desenvolverá ao seu redor, quando for bispo, e dará ao mundo latino sua regra
de vida e o exemplo de suas comunidades monásticas pastorais. O Ocidente latino
adotará esse exemplo numa parte de sua tradição de vida religiosa comunitária
(os agostinianos, os premonstratenses, etc.). Mas os especialistas encontram
também na regra de São Bento influências derivadas em particular da regra de
Santo Agostinho.
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7. A influência do direito eclesiástico africano
O professor Claude Lepelley nos sugere
também um outro âmbito no qual se exerce a influência da Igreja da África sobre
a Igreja latina: o do direito eclesiástico. Como se sabe, a vida conciliar foi
mais intensa na África setentrional que nas outras regiões do Ocidente latino,
sobretudo nos séculos III e IV. As decisões daqueles entendimentos constituíram
o corpus que
influenciaria as Igrejas do Ocidente, sobretudo por intermédio da Espanha
visigótica.
8. A obra de Agostinho, disponível na Europa desde
a morte do bispo de Hipona
Não podemos contar, aqui, como a obra de
Agostinho conseguiu escapar do saque de Hipona realizado pelos vândalos, para
depois conquistar a Europa. Serge Lancel diz sobre isso: “Não faltam indícios
que permitem afirmar, sem provas, mas com forte verossimilhança, que o
conhecimento extremamente completo que se tinha na Itália da obra de Agostinho
desde a metade do século V não se devia às cópias de sua obra, difundidas antes
da morte do bispo de uma forma apenas parcial, mas muito mais a sua
transferência integral para Roma e a sua inserção no acervo da biblioteca
apostólica, por volta da metade do século V, em condições e de formas que,
diga-se, continuam a ser misteriosas, se não miraculosas” (Serge Lancel, Saint
Augustin, Paris, 1999, p.
668).
Assim, a obra de Agostinho acabou disponível
muito cedo ao norte do Mediterrâneo, de onde teve a difusão que todos sabemos.
Conhecemos o que está escrito sobre um
afresco no Latrão que constitui a mais antiga representação do bispo de Hipona:
“Os vários Padres explicaram muitas coisas, mas apenas ele disse tudo em latim,
explicando os mistérios com o tom de sua grande voz”.
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Conclusão
Parece-me que as várias temáticas
enfrentadas, não obstante a brevidade das indicações propostas, põem
suficientemente em evidência a realidade das raízes africanas ou númidas do
cristianismo latino. Uma ilusão de perspectiva levou muitas vezes a considerar
os primeiros séculos cristãos, no Império do Ocidente, como uma realidade quase
unicamente européia. Na realidade, uma região como a África proconsular parece
ter sido evangelizada muito antes e de maneira mais vasta que muitas regiões do
norte da Itália, das Gálias ou da Espanha. Apenas para dar um exemplo, é
significativo que o primeiro Concílio das Gálias, em Arles, a 314, tenha-se
reunido para dar seu apoio a um problema tipicamente africano, o do cisma
donatista. É a prova dos laços que então existiam entre as Igrejas ao norte e
ao sul do Mediterrâneo ocidental. Mas é também a prova das dimensões reduzidas
das Igrejas setentrionais, que, reunindo bispos da Itália, da Gália, da Espanha
e da Bretanha, aos quais se acrescentavam bispos africanos, só conseguiam
juntar um número de participantes muito inferior ao dos concílios africanos da
mesma época.
Mas é claro que será sobretudo com a
personalidade espiritual, pastoral e teológica de Agostinho que a influência da
Igreja africana sobre as Igrejas da Europa assumirá todo o seu porte. Um fato
tão consolidado, em nível teológico, que não é nem o caso de frisá-lo. Mas é
preciso calcular sua importância para além da esfera particular das ciências
eclesiais. As opções filosóficas feitas por Agostinho já fazem parte do
condicionamento do pensamento no Ocidente europeu. Para dar a essa afirmação o
peso que ela deve ter, pode-se transcrever, entre outros testemunhos, a observação
de um dos mais recentes ensaístas sobre a questão, Jean-Claude Eslin: “Do nosso
ponto de vista, a grandeza de Agostinho consiste em ter ele sabido construir,
numa obra que compreende mais de noventa volumes e opúsculos, uma articulação
inédita entre o mundo da antigüidade e o mundo cristão que lhe dá nova forma.
Nesse sentido, Agostinho representa o primeiro homem ocidental, o primeiro
moderno, pois é o primeiro a ter tentado uma tal articulação numa expressão
filosoficamente inteligível, e, tendo-o feito, modelado assim a nossa
sensibilidade durante séculos. Com relação ao Império Romano, e também ao
cristianismo do Oriente e à estabilidade dos valores deste mundo e do homem
antigo, ele marca uma ruptura, e representa o momento fundador, pelo fato de que
instaura uma inquietude ocidental, e introduz uma instabilidade constitutiva
(na política, na sexualidade), uma dinâmica que, depois de quinze séculos, não
se encerrou; Agostinho é a inquietação do espírito no próprio seio do porto
encontrado” (Saint Augustin. L’homme occidental, Paris, 2002, pp. 8-9).
Não acabaríamos de citar expressões que
põem em evidência a influência sem igual do pensamento e da obra de Agostinho
sobre o Ocidente latino. “Nenhuma obra de um autor cristão em língua latina
suscitaria admiração e inquietude tão grandes e conheceria uma glória
semelhante” (Dominique de Courcelles, Augustin ou le génie de l’Europe, Paris, 1994, p. 295). A ponto de o autor
desse trecho, mesmo sabendo que está falando, como ele diz, “de um bárbaro
cristão”, dar a sua obra o título Agostinho ou o gênio da Europa. E esse gênio era um númida do Império
Romano. Que transfusão de sabedoria do sul para o norte do Mediterrâneo!
(Extraído da conferência promovida
pelo Instituto de Estudos Agostinianos; Paris, 13 de março de 2003)
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