Na Folha de hoje, o colunista Fernando de Barros e Silva escreve:
“A questão é saber se há espaço para uma terceira via no Egito (e no mundo árabe) - um regime que não seja nem uma ‘ditadura amiga’ dos EUA nem uma teocracia mais ou menos fundamentalista. O primeiro passo para construir esse caminho é não satanizar a Irmandade Muçulmana, principal organização religiosa do país, de maioria moderada, na ilegalidade desde os anos 50. Confundi-la com o extremismo, como querem Israel e a direita em geral, é uma tolice.”
“A questão é saber se há espaço para uma terceira via no Egito (e no mundo árabe) - um regime que não seja nem uma ‘ditadura amiga’ dos EUA nem uma teocracia mais ou menos fundamentalista. O primeiro passo para construir esse caminho é não satanizar a Irmandade Muçulmana, principal organização religiosa do país, de maioria moderada, na ilegalidade desde os anos 50. Confundi-la com o extremismo, como querem Israel e a direita em geral, é uma tolice.”
Não
vou aqui me ocupar de contestar Barros e Silva em particular. A tese é
que me interessa, e ele a sintetiza muito bem. O autor é expressão de um
pensamento que achará sempre “tolice o que querem Israel e a direita em
geral”. Parece considerar legítimo que se faça com esses dois o que diz
fazerem com a Irmandade. Não é que se oponha ao preconceito — ele
combate é o “preconceito errado”. Vamos lá.
A
Irmandade Muçulmana, para começo de conversa, não é, hoje, uma entidade
nacional, egípcia. Nasceu naquele país e se espalhou por todo o mundo
muçulmano. A moderna Jihad contra os “infiéis” é uma sua criação
genuína. Basta pesquisar um pouquinho. O fato de a organização se opor
ao jihadismo à moda Al Qaeda não faz dela um ente compatível com o
regime democrático. Barros e Silva — ou melhor, o pensamento de que ele é
expressão — deve saber que a proposta central da Irmandade Muçulmana é
estabelecer governos regidos pelo Corão. O nome disso é “teocracia”,
ainda que venha a ser conduzida por autoridades não religiosas. Tem
sido, ao longo da história, uma incubadora de movimentos terroristas e
de mão-de-obra para o terrorismo.
Não
há menor evidência empírica — o pensamento que Barros e Silva representa
jamais conseguiria apresentá-la — de que a Irmandade é composta por uma
“maioria de moderados”. Um membro graduado da Irmandade no Egito
concedeu uma entrevista a uma TV iraniana defendendo que o país
interrompa já o fornecimento de gás a Israel, convocando ainda os
egípcios para a guerra contra o vizinho. Cinco dias depois, o gasoduto
sofreu um atentado. Foi a Irmandade? Que diferença faz?
Representantes
da organização em todo o mundo — ela está presente em países europeus
também — defenderam e defendem os ataques terroristas do Hamas e contra
as forças americanas no Iraque e no Afeganistão. Eu estou lidando com
fatos, não com hipóteses. Por enquanto, “preconceito” é declarar a
“moderação” da Irmandade. Se, por moderado, se entende quem rejeita as
teses da Al Qaeda, sou obrigado a responder que a Al Qaeda não me serve
de régua para definir extremistas e moderados.
A
síntese que Barros e Silva faz — e reitero que não contesto só o seu
texto, mas o da legião — evidencia mais uma vez uma espécie de aliança
intelectual entre as esquerdas, mesmo as mais ilustradas, e o islamismo.
Essa parceria assume as mais variadas colorações mundo afora, mas o
fato é que se conta com o “islamismo moderado” para construir “o outro
mundo possível”.
Há dias, no jornal, um
representante da Irmandade negava que ela pretenda impor um governo à
moda Hamas no Egito. Ora, então que a organização torne pública a sua
rejeição àquele movimento e a seus métodos. Mas isso não vai acontecer.
Em seus estatutos, o Hamas cita sete vezes a Irmandade Muçulmana, da
qual se considera a mais legítima expressão.
Essa
coisa toda embute um aspecto que chega a ser surrealista. Durante uns
quatro ou cinco dias, praticamente não se tocava na Irmandade Muçulmana —
eu era dos pouquíssimos a fazê-lo. A tolice dominante chamada de
“revolução do Facebook e do Twitter”. Até alguns figurões da academia
americana entraram nessa. De súbito, esses “humanistas fraternais”
passaram a ser “a solução”. Não é curioso? Se estavam ausentes do
movimento em favor da deposição de Mubarak, por que são a principal
força a negociar a transição?
A
Irmandade quer um estado muçulmano. Não tentem renunciar a esse intento
por ela para torná-la “moderada” quando ela própria jamais renunciou a
esse horizonte. E um estado muçulmano, governado por Deus, se faz, no
dia-a-dia, por meio da sharia. O que é relativamente recente na
Irmandade é a certeza de que se pode realizar esse intento usando os
meios que a democracia oferece. Não é preciso ser amigo de Israel para
constatá-lo; não é preciso ser “de direita”. Basta reconhecer os fatos e
indagar: “Mas o que quer a Irmandade Muçulmana”. E a resposta será dada
por ela mesma.
Isso
não torna Mubarak menos desprezível ou violento. Mas um Mubarak
desprezível e violento não torna “moderada” a Irmandade Muçulmana. Às
vezes, a gente precisa se conformar com o fato de que o inimigo do meu
inimigo não é meu amigo. Não custa lembrar que a arquitetura do poder no
Irã tem hoje uma aparência mais “democrática” do que a óbvia ditadura
do xá Reza Pahlevi. E, no entanto, lá se tem uma das formas mais
detestáveis de tirania, porque urdida também com o DNA da democracia.
Regimes democráticos não caem do céu. São construídos e requerem forças
que defendam seus princípios. A Irmandade certamente quer um sistema de
voto direto no Egito. A questão é o que ela pretende fazer com ele.
Barros
e Silva, ou o pensamento que ele representa, não tem de se preocupar
com o que Israel e a direita pensam sobre a Irmandade. Basta que
pesquise o que a Irmandade pensa sobre si mesma e qual é seu horizonte.
Tolice é ignorar os seus fundamentos e querer preservá-la de si mesma só
“porque a direita e Israel” dizem isso ou aquilo. São dois os pilares
da Irmandade:
- Estado e sociedade devem ser regidos pela sharia, o código de leis de islamismo;
- unificação de todos os países muçulmanos, muito especialmente os árabes.
Nem a direita nem Israel inventaram esse ideário. Não têm nada com
isso. Feio é querer esconder quais são as bases da organização.- Estado e sociedade devem ser regidos pela sharia, o código de leis de islamismo;
- unificação de todos os países muçulmanos, muito especialmente os árabes.
Por Reinaldo Azevedo
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