sábado, 19 de fevereiro de 2011

As costas largas da direita e a Irmandade Muçulmana, esse jardim de flores moderadas


Na Folha de hoje, o colunista Fernando de Barros e Silva escreve:
“A questão é saber se há espaço para uma terceira via no Egito (e no mundo árabe) - um regime que não seja nem uma ‘ditadura amiga’ dos EUA nem uma teocracia mais ou menos fundamentalista. O primeiro passo para construir esse caminho é não satanizar a Irmandade Muçulmana, principal organização religiosa do país, de maioria moderada, na ilegalidade desde os anos 50. Confundi-la com o extremismo, como querem Israel e a direita em geral, é uma tolice.”
Não vou aqui me ocupar de contestar Barros e Silva em particular. A tese é que me interessa, e ele a sintetiza muito bem. O autor é expressão de um pensamento que achará sempre “tolice o que querem Israel e a direita em geral”. Parece considerar legítimo que se faça com esses dois o que diz fazerem com a Irmandade. Não é que se oponha ao preconceito — ele combate é o “preconceito errado”. Vamos lá.
A Irmandade Muçulmana, para começo de conversa, não é, hoje, uma entidade nacional, egípcia. Nasceu naquele país e se espalhou por todo o mundo muçulmano. A moderna Jihad contra os “infiéis” é uma sua criação genuína. Basta pesquisar um pouquinho. O fato de a organização se opor ao jihadismo à moda Al Qaeda não faz dela um ente compatível com o regime democrático. Barros e Silva — ou melhor, o pensamento de que ele é expressão — deve saber que a proposta central da Irmandade Muçulmana é estabelecer governos regidos pelo Corão. O nome disso é “teocracia”, ainda que venha a ser conduzida por autoridades não religiosas. Tem sido, ao longo da história, uma incubadora de movimentos terroristas e de mão-de-obra para o terrorismo.
Não há menor evidência empírica — o pensamento que Barros e Silva representa jamais conseguiria apresentá-la — de que a Irmandade é composta por uma “maioria de moderados”. Um membro graduado da Irmandade no Egito concedeu uma entrevista a uma TV iraniana defendendo que o país interrompa já o fornecimento de gás a Israel, convocando ainda os egípcios para a guerra contra o vizinho. Cinco dias depois, o gasoduto sofreu um atentado. Foi a Irmandade? Que diferença faz?
Representantes da organização em todo o mundo — ela está presente em países europeus também — defenderam e defendem os ataques terroristas do Hamas e contra as forças americanas no Iraque e no Afeganistão. Eu estou lidando com fatos, não com hipóteses. Por enquanto, “preconceito” é declarar a “moderação” da Irmandade. Se, por moderado, se entende quem rejeita as teses da Al Qaeda, sou obrigado a responder que a Al Qaeda não me serve de régua para definir extremistas e moderados.
A síntese que Barros e Silva faz — e reitero que não contesto só o seu texto, mas o da legião — evidencia mais uma vez uma espécie de aliança intelectual entre as esquerdas, mesmo as mais ilustradas, e o islamismo. Essa parceria assume as mais variadas colorações mundo afora, mas o fato é que se conta com o “islamismo moderado” para construir “o outro mundo possível”.
Há dias, no jornal, um representante da Irmandade negava que ela pretenda impor um governo à moda Hamas no Egito. Ora, então que a organização torne pública a sua rejeição àquele movimento e a seus métodos. Mas isso não vai acontecer. Em seus estatutos, o Hamas cita sete vezes a Irmandade Muçulmana, da qual se considera a mais legítima expressão.
Essa coisa toda embute um aspecto que chega a ser surrealista. Durante uns quatro ou cinco dias, praticamente não se tocava na Irmandade Muçulmana — eu era dos pouquíssimos a fazê-lo. A tolice dominante chamada de “revolução do Facebook e do Twitter”. Até alguns figurões da academia americana entraram nessa. De súbito, esses “humanistas fraternais” passaram a ser “a solução”. Não é curioso? Se estavam ausentes do movimento em favor da deposição de Mubarak, por que são a principal força a negociar a transição?
A Irmandade quer um estado muçulmano. Não tentem renunciar a esse intento por ela para torná-la “moderada” quando ela própria jamais renunciou a esse horizonte. E um estado muçulmano, governado por Deus, se faz, no dia-a-dia, por meio da sharia. O que é relativamente recente na Irmandade é a certeza de que se pode realizar esse intento usando os meios que a democracia oferece. Não é preciso ser amigo de Israel para constatá-lo; não é preciso ser “de direita”. Basta reconhecer os fatos e indagar: “Mas o que quer a Irmandade Muçulmana”. E a resposta será dada por ela mesma.
Isso não torna Mubarak menos desprezível ou violento. Mas um Mubarak desprezível e violento não torna “moderada” a Irmandade Muçulmana. Às vezes, a gente precisa se conformar com o fato de que o inimigo do meu inimigo não é meu amigo. Não custa lembrar que a arquitetura do poder no Irã tem hoje uma aparência mais “democrática” do que a óbvia ditadura do xá Reza Pahlevi. E, no entanto, lá se tem uma das formas mais detestáveis de tirania, porque urdida também com o DNA da democracia. Regimes democráticos não caem do céu. São construídos e requerem forças que defendam seus princípios. A Irmandade certamente quer um sistema de voto direto no Egito. A questão é o que ela pretende fazer com ele.
Barros e Silva, ou o pensamento que ele representa, não tem de se preocupar com o que Israel e a direita pensam sobre a Irmandade. Basta que pesquise o que a Irmandade pensa sobre si mesma e qual é seu horizonte. Tolice é ignorar os seus fundamentos e querer preservá-la de si mesma só “porque a direita e Israel” dizem isso ou aquilo. São dois os pilares da Irmandade:
- Estado e sociedade devem ser regidos pela sharia, o código de leis de islamismo;
- unificação de todos os países muçulmanos, muito especialmente os árabes.
Nem a direita nem Israel inventaram esse ideário. Não têm nada com isso. Feio é querer esconder quais são as bases da organização.
Por Reinaldo Azevedo

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