Introdução
No dia 9 de Novembro de
2009, milhares de alemães juntaram-se na zona em redor das portas de
Brandenburgo para celebrarem a “Festa da Liberdade”, que assinalou os 20
anos da queda do Muro de Berlim.
O evento contou com várias
personalidades históricas de peso como Mikhail Gorbachov, mas foi a Lech
Walesa que coube a honra de dar o primeiro empurrão ao dominó gigante
que simbolizava a queda do Muro.
Lech Walesa, fundador do
sindicato “Solidarnosc” e Prémio Nobel da Paz em 1983, realizou a acção
simbólica como representante do país onde começou a desmembrar-se a
“Cortina de Ferro” e do qual foi presidente.
Este acto acabou por
constituir um reconhecimento da Comunidade Internacional ao contributo
do “Solidariedade” e da Polónia para o desmembramento do comunismo no
Leste Europeu.
A História do “Solidariedade"
Em Fevereiro de 1945, com
os acordos de Ialta, uma “Cortina de Ferro” fechou-se sobre a Polónia.
Depois de libertada da ocupação nazi pelos Soviéticos em 1944, a URSS
instituiu um novo governo comunista na Polónia, oficialmente proclamada
em 1952 como República Popular da Polónia. Apesar de ser um país
independente, a Polónia sofria de uma forte influência soviética, num
regime não democrático de partido único que limitava significativamente
as liberdades individuais dos polacos.
A diferença em relação aos
demais países da “Cortina de Ferro”, era que a Polónia, como afirma o
jornalista italiano de origem polaca Gian Franco Svidercoshi, era “um
«caso» bastante atípico na galáxia comunista.” Enquanto na RDA, como na
Checoslováquia, na Bulgária, na Hungria ou na Rússia, “a divergência era
constituída por elites minoritárias, circunscritas em ambientes
intelectuais, por círculos políticos de ascendência revisionista ou
ainda por pequenos grupos religiosos”, a sociedade polaca era unânime na
rejeição do sistema comunista, contrário à alma da nação polaca,
profundamente marcada pelo catolicismo que se identificava completamente
com a sua História.
A resistência sempre se
fez sentir de todos os sectores. Não raras vezes, operários,
intelectuais, artistas, estudantes, camponeses e bispos uniram-se e
saíram à rua para protestar contra o regime.
As revoltas sucederam-se
com o passar dos anos, embora os efeitos práticos fossem sempre
diminutos.
Até que no dia 1 de Julho
de 1980, no seguimento de mais um aumento dos preços, alguns serviços
das fábricas Ursus em Varsóvia suspenderam o trabalho. As greves
propagaram-se rapidamente, sendo que a contestação enraizou-se e assumiu
pela primeira vez um carácter permanente.
Algumas semanas depois,
desencadeou-se uma outra greve nos estaleiros Lenine de Gdansk, cidade
onde se situa o principal porto da Polónia. Desta vez a causa da greve
foi o despedimento de Anna Walentynowicz, uma manobradora de grua com
vinte anos de serviço e militante de um movimento operário
anticomunista.
Esta greve foi organizada
por Lech Walesa, nessa altura um simples electricista desempregado,
depois de em Dezembro de 1970 ter liderado os protestos dos operários
nos estaleiros numa altura de crescente tensão entre trabalhadores e
Governo e que levaram ao seu despedimento e prisão pelas actividades de
cariz sindicalista.
O movimento operário
cresceu e os trabalhadores apresentaram as suas reivindicações ao
governo. Segundo Gian Franco Svidercoshi “as autoridades de Varsóvia
receberam então uma ordem de Moscovo: «Assinem! Assinem! Mas acabem com
esta agitação!» ”.
O receio de que o “vírus”
polaco se propagasse fez com que a 31 de Agosto fosse assinado um acordo
que previa a “aceitação de sindicatos independentes autónomos” e a
garantia do direito à greve.
Nascia oficialmente o
“Solidarnosc”, o primeiro sindicato livre do Leste europeu, que chegou a
contar com cerca de dez milhões de membros, não só operários, mas também
camponeses e estudantes.
A sua força era tal que
logo a partir do final do Outono de 1980, Moscovo começou a considerar o
“Solidariedade” uma perigosa ameaça pelo risco da sua influência se
enraizar noutros países, dado que o mesmo representava um forte ataque
ao regime.
A tensão aumentou e a 13
de Dezembro de 1981 foi proclamado o estado de sítio na Polónia. A lei
marcial, decretada pelo General Jaruzelski, que dirigia simultaneamente
o Partido Comunista e o Governo, foi a solução encontrada pelas
autoridades para tentar acabar com uma crise que se agravava de dia para
dia. Milhares de sindicalistas e intelectuais foram deportados para os
campos de detenção e Lech Walesa encontrava-se em local desconhecido. A
actividade do sindicato foi suspensa, o direito à greve foi abolido e em
Outubro de 1982 foi oficialmente declarada a dissolução do
“Solidariedade”.
Porem, a acção do regime
polaco tornou-o ainda mais isolado e mais fraco, uma vez que o Ocidente,
através dos Estados e organismos internacionais entre outros, suspendeu
as suas ajudas à Polónia e tomou partido pelo “Solidariedade”, o que
levou a que Walesa fosse libertado da sua residência fixa em Arlamowo e
quase todos os campos de detenção fossem encerrados. Porém, o clima de
opressão mantinha-se.
Em 1983, após a visita de
João Paulo II, Jaruzelski acaba com o estado de sito e começa a esvaziar
as prisões perante a pressão da Comunidade Internacional. Nesse mesmo
ano, Lech Walesa vence o Prémio Nobel da Paz “pela liderança do
movimento não violento para alcançar o direito de livre associação dos
trabalhadores polacos” e os U2 lançam o êxito “New Year’s Day”,
inspirado na situação da Polónia e que se tornou num hino de apoio a
Walesa e ao “Solidariedade”.
Fruto das sanções
económicas e do falhanço da sua economia planificada, a Polónia
enfrentava agora uma crescente deterioração da sua economia aliada a uma
crise social já longa e bastante desgastante para o regime. Em 1989, os
dirigentes comunistas vêm-se sem qualquer margem de manobra e são
obrigados a sentar-se à mesa com os sindicalistas, dando início às
“Conversações da Mesa Redonda”, que decorreram entre Fevereiro e Abril,
debaixo de muita polémica. Por um lado muitos comunistas temiam, como se
veio a verificar, que estas negociações seriam o princípio do fim. Por
outro lado, ainda hoje na Polónia, há quem não perdoe a Lech Walesa, a
“traição” de negociar com o regime, afastando-se do rumo inicial do
“Solidariedade”.
Apesar disso, os acordos
alcançados são históricos.
A 5 de Abril de 1989 são
marcadas eleições semi-livres para o dia 4 de Junho a que a oposição
podia concorrer a 35% dos lugares do Parlamento e à totalidade dos
lugares do Senado. Acordou-se igualmente a legalização do Solidariedade,
o reconhecimento da liberdade de imprensa e do pluralismo político, os
princípios de uma reforma economia e de uma reorganização administrativa
e judiciária.
Os resultados das eleições
inequívocos. O Solidariedade conquista 99 dos 100 lugares do Senado e
elege a totalidade dos 35% dos lugares a que concorre no Parlamento,
dando origem ao primeiro governo não comunista da Europa Central e de
Leste, dirigido por Tadeuz Mazowiecki, intelectual católico e
conselheiro de Lech Walesa.
Mazowiecki toma posse em
Agosto. Os comunistas mantêm as pastas do Interior e da Defesa e o
General Jaruzelski é eleito Presidente da República por ano, até que em
1990, nas primeiras eleições livres, o Solidariedade consegue a maioria
absoluta e Lech Walesa é eleito Presidente da República.
“Pela primeira vez o poder
escapava ao partido comunista numa democracia popular” afirma o
historiador francês René Rémond.
O “Solidariedade”
manteve-se unido durante mais algum tempo devido à ameaça comunista, mas
quando a mesma desapareceu totalmente, o movimento dividiu-se em várias
facções, com muitas das suas principais figuras a rumarem a outros
caminhos, fruto das suas profundas divergências entre si.
Devido a essa
fragmentação, o “Solidariedade” já não ocupa o lugar central que teve
durante o processo de democratização da Polónia, mas continua vivo, com
um grande valor simbólico para todos os polacos.
O Papel da Igreja Católica na
Resistência da Polónia
Conta Adriano Moreira,
acerca da eleição do Papa João Paulo II “que o Primeiro Secretário do
Partido Comunista Polaco, quando recebeu a notícia da eleição, exclamou:
«Sagrada Mãe de Deus!». Também era polaco.”
Não há outro país europeu
onde a Igreja Católica tenha tanta força como na Polónia, “numa
definição nacional de 33 milhões de baptizados em 38 milhões de
habitantes”, de acordo com o mesmo Adriano Moreira.
A implantação de um regime
comunista totalmente contrário à alma da nação polaca, onde o
catolicismo se identificava completamente com a sua história e os seus
valores mais profundos, fez com a Igreja Católica assumisse um papel
fulcral na resistência da Polónia dada a sua força e a sua importância
junto da sociedade civil.
O regime comunista cedo se
apercebeu dessa realidade e procurou desde logo reduzir ao máximo a
expressão da Igreja Católica na Polónia, através de uma forte campanha
ateísta que limitava significativamente a liberdade religiosa de forma
repressiva.
Em Roma, o Papa Pio XII
denúncia as condições daquela a que chama “Igreja do Silêncio”, e onde
os bispos passam a ser obrigados a jurar fidelidade às autoridades, sob
pena de serem presos.
A situação piora com a
morte de Josef Estaline em 1953. Padres, freiras e bispos são detidos.
Uma das figuras que protesta com mais veemência e será uma das maiores
dores de cabeça para o regime comunista é o cardeal Stefan Wyszinsky,
Primaz da Polónia, que na sequência dos seus fortes protestos é preso
num convento em isolamento durante 37 meses, sendo libertado na
sequência dos protestos dos operários de Poznam em Junho de 1956, numa
altura em que o regime procurava dar alguns sinais de abertura ao mundo.
Apesar da libertação do
cardeal Wyszinsky, a repressão continua. E continua porque, como afirma
D. Stanislao Dziwisz, actual Arcebispo de Cracóvia e antigo secretário
pessoal do Papa João Paulo II, “apesar das perseguições, apesar de um
ateísmo agressivo, continuava a ser uma Igreja viva e dinâmica, com os
seminários cheios, novas formas de empenhamento pastoral e uma presença
cada vez mais sólida dos laicos na vida eclesiástica. Na Polónia, a
Igreja era um sustentáculo para o homem oprimido, sem possibilidades de
expressão. E, tendo em conta que os direitos das pessoas eram muito
limitados, constituía o único espaço de liberdade.”
É durante o Concílio
Vaticano II, que decorre entre 1962 e 1965 que os representantes
polacos, Wojtyla e Wyszinsky, põem em cima da mesa a questão da
liberdade religiosa e criam um clima de atenção para as condições da
“Igreja do Silêncio”, não só na Polónia, como nos restantes países de
Leste. “O direito à liberdade religiosa deve ser reconhecido em todas as
nações. É necessário distinguir o ateísmo que resulta das convicções
pessoais daquele que vem imposto do exterior com pressões físicas e
morais” afirma o então Arcebispo de Cracóvia, Karol Wojtyla.
Em 1966, um ano após a
conclusão do Concílio Vaticano II, as autoridades polacas vetaram a
celebração do milénio da conversão da Polónia ao cristianismo, o que
levou a uma profunda ruptura das relações entre a Igreja e o regime
comunista, já que as autoridades impediram inclusivamente a visita do
Papa Paulo VI à Polónia para presidir às celebrações.
Os protestos que se
repetiam ciclicamente contavam agora com um apoio ainda mais forte da
Igreja Católica, que ao romper totalmente com a política de não
confrontar abertamente o regime se tornou num ponto de referência para
os diferentes grupos sociais. São as “pequenas revoluções” nos termos do
cardeal Wyszinsky, que apesar de não terem qualquer consequência
imediata vão desgastando o regime pouco a pouco. A Igreja “apoiava as
reivindicações dos trabalhadores, protegia os jovens, os intelectuais,
os professores (a quem tinha sido vedado o direito de frequentar a
Igreja), o mundo da ciência (repetidamente atingido pela censura) e
ainda os dissidentes, os perseguidos” conta D. Stanislao Dziwisz.
A autoridade moral que a
Igreja detinha fazia com que as “pequenas revoluções” tivessem um
impacto maior junto das autoridades, sendo que, ao mesmo tempo, o apoio
que a Igreja dava a estes protestos, granjeava-lhe cada vez mais
credibilidade junto da classe operária, bem como nos meios culturais e
intelectuais.
A posterior eleição do
Arcebispo de Cracóvia, Karol Wojtyla como Papa em 1978, leva o Vaticano
a actualizar a sua “Ostpolitik”, iniciada no pontificado do Papa João
XXIII e consolidada no pontificado de Paulo VI. Até então, o Vaticano
pautava a sua acção relativamente aos países da “Cortina de Ferro” com
muita cautela e muita prudência. Era o chamado “martírio da paciência”,
como uma vez definiu o Cardeal Agostino Casaroli, principal
impulsionador desta tentativa de colaboração com os governos comunistas
a fim de manter a Igreja viva nesses países.
Mas a partir do momento em
que João Paulo II toma os destinos da Igreja, o papa polaco não nega que
uma das suas prioridades é o combate aberto aos regimes da “Cortina de
Ferro”. Afinal de contas, João Paulo II vinha do único país da Europa de
Leste onde a Igreja tinha poder para ousar levantar a voz contra o
regime comunista, dada a sua autoridade moral.
A Igreja era agora, mais
do que nunca, a grande referência da resistência polaca. São célebres as
imagens das greves de Agosto de 1980, que viriam a dar origem ao
“Solidariedade”, de vários operários a confessarem-se antes de receberem
a comunhão, naqueles momentos de grande agitação.
Esta era uma revolta da
sociedade civil que contava com a sua instituição mais forte e autónoma:
a Igreja Católica que era não só uma instituição religiosa, mas também
uma “instituição onde os sentimentos nacionais – incluindo as aspirações
de independência – puderam ser expressos” afirma João Sobral, Membro da
Direcção do Centro de Investigação e Análise em Relações Internacionais.
O Apoio de João Paulo II ao
“Solidariedade”
Uma das figuras mais
importantes de todo este processo é sem dúvida Karol Wojtyla. O combate
aos regimes da “Cortina de Ferro” teve um enorme impulso quando a 16 de
Outubro de 1978 se tornou no 265º Sumo Pontífice da Igreja Católica com
o nome de João Paulo II.
A sua escolha não terá
sido completamente casual. José Manuel Pureza, professor do curso de
Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra e actual líder parlamentar do Bloco de Esquerda, afirma que “a
sua filiação polaca torna-o patrocinador espiritual de algumas das
transformações que se operavam em alguns países do Leste Europeu”.
Já o falecido jornalista
Carlos Cáceres Monteiro afirma que “aquele evento modificaria o curso
dos acontecimentos na Polónia e em todo o Leste europeu. Como era
inevitável, a eleição de um Papa polaco, com as características de
contrapoder que a Igreja tinha (e tem) naquele país, iria encorajar o
movimento clandestino contra o regime, fortalecer o sindicato
independente Solidariedade e toda a oposição ao comunismo”.
A notícia na Polónia foi
dada de forma discreta, dado o embaraço evidente das autoridades. De
acordo com Gian Franco Svidercoshi “a publicação da notícia fora
atrasada porque no Comité Central do Partido não sabiam como a
transmitir de forma a minimizar as suas repercussões. Não apenas na
Polónia mas em todo o mundo comunista e principalmente no Kremlin a
confusão era enorme. Durante dez dias, em todo o império, dominou o
silêncio total! Nem uma declaração! Nem um comentário!” A preocupação é
compreensível. O regime tinha a perfeita noção que, tal como afirma René
Rémond, esta eleição conferia uma dimensão universal a tudo o que se
viesse a passar na Polónia.
Mas a preocupação das
autoridades foi maior ainda quando em Junho de 1979, João Paulo II fez a
primeira visita oficial à sua terra natal. “A exclusão de Cristo da
história do homem é um acto contra o homem” afirma Karol Wojtyla em
Varsóvia. Os aplausos impediram-no de continuar o seu discurso durante
20 minutos. Havia falado de Cristo, não de política, mas as suas
palavras sacudiram a Polónia como um “terramoto” segundo os termos do
cardeal König e chegariam inclusive até às muralhas do Kremlin, sendo
que de acordo com Svidercoshi, “os chefes comunistas estavam duplamente
angustiados porque começavam a entender que a situação lhes fugia das
mãos.”
Os esforços do regime
centraram-se na comunicação e sobretudo na televisão. D. Stanislao
Dziwisz, secretário pessoal do Papa conta que ”os enquadramentos eram
sempre em grande plano para esconder a enorme participação popular”. Uma
população à qual João Paulo II queria dar voz, procurando através do seu
carisma chamar a atenção de todo o mundo. Antes de partir, disse aos
jornalistas: “Congratulo-me por ter trazido todo o mundo à Polónia!”
Um ano depois nasceria o
sindicato “Solidariedade”, fundado e liderado por Lech Walesa, que em
Janeiro de 1981 se encontrou com João Paulo II.
Entretanto, a 13 de Maio
de 1981 o Papa João Paulo II sofreu um atentado em Roma ao qual
sobreviveu, numa altura em que o Primaz da Polónia, D. Stefan Wyszinsky,
estava prestes a falecer. O cardeal Achille Silvestrini, Secretário do
Conselho para os Assuntos Públicos da Igreja, não tem dúvidas: “Naquela
situação com a perda do cardeal Wyszinsky, se o Papa fosse assassinado,
tinha sido uma como uma pedra tumbal sobre a Polónia e sobre a
resistência da Polónia.” De facto, hoje sabe-se que naquela praça
estavam também agentes de outros países do Pacto de Varsóvia.
Ultrapassado este
incidente, João Paulo II recebeu Ronald Reagan no Vaticano num encontro
histórico e definitivo para a estratégia geopolítica do seu pontificado.
Do estabelecimento de relações diplomáticas plenas entre o Vaticano e os
EUA chegaram também financiamentos dos EUA para as actividades do
“Solidarnosc”, entretanto ilegalizado,
É neste contexto que em
Junho de 1983, Wojtyla volta à Polónia num ambiente tenso de lei
marcial. O Papa apela a uma revolta pacífica mas forte contra o regime.
No encontro com o General Jaruzelski, o Papa pediu expressamente a
implementação dos acordos de Agosto de 1980 assinado pelos sindicatos e
pelo governo. Svidercoshi conta ainda que “durante a entrevista privada,
(João Paulo II) disse essencialmente ao general que eventualmente
poderia compreender a decisão de impor o estado de sítio, mas não
poderia compreender a abolição do Solidariedade que exprimia a alma
polaca”. É a viagem mais difícil do seu pontificado, mas de acordo com o
mesmo Svidercoshi “só assim foi possível salvar o Solidariedade e Lech
Walesa”.
João Paulo II encontra-se
também em segredo com Walesa. D. Stanislao Dziwisz conta que “naquele
momento não eram os discursos que contavam, nem as palavras, mas só a
circunstância em si própria, a acção.” E talvez seja por isso que o
secretário particular do Papa afirme anos depois nas suas memórias que
“o Santo Padre tinha encontrado a forma necessária para apoiar uma nação
triste, desiludida e amargurada, bem como manter a vida do Solidariedade
que, naquele momento, não existia oficialmente. E tudo isto sem
provocar, nem mesmo involuntariamente, desordens nem situações de
confronto.”
Wojtyla não pára: relações
diplomáticas plenas entre a Santa Sé e os Estados Unidos da América
abrem 1984; encontra-se com o Ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS
em 1985 e com o General Jaruselski em 1987, ano em que volta à Polónia.
Em Gdansk, João Paulo II reivindica a legitimidade dos direitos dos
trabalhadores repetindo várias vezes a palavra “solidarnosc” no seu
discurso perante um milhão de trabalhadores para depois se encontrar
novamente com Lech Walesa.
Para Gian Franco
Svidercoshi não restam dúvidas: “É precisamente a partir daqui que vai
arrancar o processo irreversível que dois anos mais tarde iria conduzir
à liberdade, o regresso do Solidariedade à legalidade, o primeiro
governo não comunista do pós-guerra na Europa Central e de Leste
(dirigido pelo católico Tadeuz Mazowiecki) e, para concluir, a eleição
do antigo electricista dos estaleiros Lenine de Gdansk à Presidência da
República.”
Em Junho de 1999, naquela
mesma praça, Wojtyla recorda esse momento e afirma: “Então eu falava a
vós, mas também de certa forma em vosso nome.” “«Solidarnosc» abriu as
portas à liberdade nos países tornados escravos pelo sistema
totalitário, derrubou o muro de Berlim e contribuiu para a unidade da
Europa dividida em dois blocos desde o tempo da segunda guerra mundial.
Jamais devemos cancelar isto da nossa memória” concluiu, reivindicando o
papel central da Polónia e do sindicato de Lech Walesa na derrota do
comunismo.
“A Polónia estava, enfim,
na linha da frente da grande revolta que iria assinalar o fim do
comunismo” diz Svidercoshi nas suas conversas com D. Stanislao Dziwisz.
Um fim que ganha contornos
mais nítidos no incrível ano de 1989.
Com a queda do Muro de
Berlim em Novembro de 1989, chegamos a um “ponto de não retorno”. Uma
mudança que se deve também em muito aos méritos da acção de Mikhail
Gorbachov que a 1 de Dezembro desse mesmo ano visita João Paulo II,
naquela que foi a primeira vez que um Chefe do Estado Soviético visitou
o Vaticano depois da Revolução de Outubro. E sem querer retirar qualquer
valor à sua acção, muitos perguntam ainda hoje se teriam a Perestroika
de Mikhail Gorbachov e a queda da URSS podido verificar-se se não
tivesse existido um papa polaco.
O próprio Mikhail
Gorbachov afirma: “Tudo o que se passou na Europa de Leste durante estes
últimos anos, não teria sido possível sem a presença deste Papa, sem o
grande papel, também político, que ele soube desempenhar na cena
mundial.”
Dez anos de pontificado
acabaram por ser suficientes para que João Paulo II vencesse a sua luta
para libertar os países da “Cortina de Ferro” do totalitarismo
soviético. “O que resulta daí é, em certa medida, uma contribuição deste
Papa para uma hegemonia político-económica da democracia liberal e das
necessárias transformações de algumas economias planificadas” afirma
José Manuel Pureza.
Repercussões nos Restantes
Países da Cortina de Ferro
Ninguém pode negar a
importância central que os acontecimentos na Polónia tiveram no
desmantelamento da “Cortina de Ferro”, embora a queda do Muro de Berlim
seja indubitavelmente o principal símbolo da queda do comunismo. Mas a
verdade é que, tal como afirma Jacek Stawiski, comentador do canal de
informação polaco TVN 24, “as fotos dos destruidores do muro e do seu
desmantelamento representam de facto melhor o triunfo da liberdade do
que as fotos das eleições de 4 de Junho”.
Embora a situação da
Polónia fosse bastante particular, com a presença de uma Igreja Católica
muito influente e de uma sociedade civil também ela muito activa, o
facto de pela primeira vez, o regime comunista ter sido obrigado a
entregar o poder à oposição haveria de ferir de morte o Bloco Soviético.
Nesse sentido, o sucesso
do caso polaco, é como que um incentivo à resistência nos restantes
países do Leste Europeu onde, como explica René Rémond, a simpatia pelo
papel da URSS na sua libertação do nazismo tinha sido substituída pelo
“ressentimento”.
Naquele momento, a imagem
da URSS no mundo estava gravemente manchada, quer pela repressão imposta
às resistências nacionais, quer pela recente humilhação que constituía a
vitória do “Solidariedade” na Polónia.
Com uma fragilidade tão
evidente, qualquer manifestação de libertação tinha grandes hipóteses de
ter sucesso. Sobretudo, porque no comando da URSS estava agora Mikhail
Gorbachov, que de acordo com René Rémond “abriu um novo capítulo na
história da União e, por conseguinte, dos povos cujo destino dele
dependia e mesmo do conjunto das relações internacionais”.
A sua ascensão à direcção
suprema do PCUS e consequentemente da União Soviética já no ano de 1985,
num momento em que o “Solidariedade” ainda se encontrava ilegalizado,
fez com que a URSS não tivesse qualquer intromissão nas “Conversações da
Mesa Redonda” em 1989. Citando João Sobral: ”Na perspectiva da União
Soviética era apenas uma democratização limitada e gradual que se estava
a negociar.”
Este dado absolutamente
novo nas relações entre Moscovo e os países satélites, conduziu a uma
reacção em cadeia nos restantes países da “Cortina de Ferro” logo após a
realização das eleições semi-livres de 4 de Junho que retiraram o
Partido Comunista da Chefia do Governo.
Durante o fim do Verão e o
Outono de 1989, sucederam-se as manifestações, desta vez pacíficas e sem
qualquer tipo de repressão por partes das autoridades. Na Hungria, na
República Democrática da Alemanha e na Checoslováquia as multidões
saíram à rua para exigir a sua liberdade e a realização de eleições
livres ou semi-livres, tal como havia sucedido meses antes na Polónia.
Voltando a citar o
historiador francês René Rémond: “o curso das coisas arrasta os
governos, constantemente ultrapassados pelo movimento da história, pelas
aspirações dos povos, pelos constrangimentos da economia.” “A União
Soviética não está em situação de se opor” conclui.
A 9 de Novembro de 1989, a
decisão do governo da República Democrática da Alemanha de abrir o Muro
de Berlim inaugura nas palavras do mesmo Rémond “uma nova era”. Uma era
que se tinha começado a formar na vizinha Polónia.
Conclusão
O fim da Guerra Fria e o
consequente fim da divisão da Europa em dois blocos deveu-se sobretudo à
queda dos regimes comunistas, economicamente frágeis e politicamente
autoritários e totalitários e que estavam destinados a cair mais cedo ou
mais tarde.
Dos países satélites de
Moscovo, que componham a dita “Cortina de Ferro”, como designou Winston
Churchill em 1946, a catolicíssima e intrinsecamente anticomunista
Polónia, foi indubitavelmente a nação onde a contestação e a resistência
foram mais fortes, numa sociedade civil activa que nunca se identificou
com aquele regime que lhes havia prometido o paraíso na Terra.
Uma sociedade civil que
tinha na Igreja Católica a sua principal fonte de força e inspiração na
luta contra um regime que procurou ao máximo limitar a liberdade
religiosa num país onde o cristianismo fazia parte da alma da própria
nação.
A eleição do Arcebispo de
Cracóvia Karol Wojtyla para o trono de São Pedro em 1978 acabou por
constituir um momento marcante na resistência da Polónia. Além de
conferir à luta polaca uma dimensão universal que de outra forma
dificilmente teria, a sociedade civil polaca ganhou um novo ânimo com a
actualização da “Ostpolitik” do Vaticano, organizando-se e congregando
todas as suas forças e sectores de oposição ao regime no sindicato
independente “Solidariedade” liderado pelo electricista de Gdansk, Lech
Walesa.
A sua luta pacífica mas
determinada, contou com o apoio de uma comunidade internacional que na
sequência da imposição da Lei Marcial em 1981, havia de aplicar várias
sanções económicas que haveriam de ferir de morte o governo do General
Jaruselski, obrigado anos depois a negociar com os sindicatos, numa
situação enfraquecida com uma economia falhada e uma contestação que
aumentava de dia para dia e tornava a situação insustentável. As
eleições semi-livres de 4 de Junho de 1989 levaram o Partido Comunista a
ceder pela primeira vez a Chefia do Governo à oposição numa República
Popular e abriram um grave precedente relativamente aos restantes países
da Europa de Leste, que incentivados pela experiência polaca exigiam
agora igual oportunidade.
O Bloco Soviético que
outrora reprimira com sucesso várias tentativas de revolução como a
“Primavera de Praga” em 1968, já não tinha força para se opor. Os
acontecimentos na Polónia, aliados a uma economia em colapso não davam
qualquer espaço de manobra e haviam causado uma profunda mancha na
credibilidade da União Soviética.
Desse modo, a experiência
polaca acabou por constituir como que o acender do rastilho de pólvora
que a 9 de Novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim, haveria de
explodir definitivamente com todo o império soviético.
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Documentário
“Juan Pablo II – El Papa que há cambiado el mundo”, de Alberto
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