sábado, 19 de fevereiro de 2011

João Paulo II e a derrubada do comunismo

Introdução
No dia 9 de Novembro de 2009, milhares de alemães juntaram-se na zona em redor das portas de Brandenburgo para celebrarem a “Festa da Liberdade”, que assinalou os 20 anos da queda do Muro de Berlim.
O evento contou com várias personalidades históricas de peso como Mikhail Gorbachov, mas foi a Lech Walesa que coube a honra de dar o primeiro empurrão ao dominó gigante que simbolizava a queda do Muro.
Lech Walesa, fundador do sindicato “Solidarnosc” e Prémio Nobel da Paz em 1983, realizou a acção simbólica como representante do país onde começou a desmembrar-se a “Cortina de Ferro” e do qual foi presidente.
Este acto acabou por constituir um reconhecimento da Comunidade Internacional ao contributo do “Solidariedade” e da Polónia para o desmembramento do comunismo no Leste Europeu.
A História do “Solidariedade"
Em Fevereiro de 1945, com os acordos de Ialta, uma “Cortina de Ferro” fechou-se sobre a Polónia. Depois de libertada da ocupação nazi pelos Soviéticos em 1944, a URSS instituiu um novo governo comunista na Polónia, oficialmente proclamada em 1952 como República Popular da Polónia. Apesar de ser um país independente, a Polónia sofria de uma forte influência soviética, num regime não democrático de partido único que limitava significativamente as liberdades individuais dos polacos.
A diferença em relação aos demais países da “Cortina de Ferro”, era que a Polónia, como afirma o jornalista italiano de origem polaca Gian Franco Svidercoshi, era “um «caso» bastante atípico na galáxia comunista.” Enquanto na RDA, como na Checoslováquia, na Bulgária, na Hungria ou na Rússia, “a divergência era constituída por elites minoritárias, circunscritas em ambientes intelectuais, por círculos políticos de ascendência revisionista ou ainda por pequenos grupos religiosos”, a sociedade polaca era unânime na rejeição do sistema comunista, contrário à alma da nação polaca, profundamente marcada pelo catolicismo que se identificava completamente com a sua História.
A resistência sempre se fez sentir de todos os sectores. Não raras vezes, operários, intelectuais, artistas, estudantes, camponeses e bispos uniram-se e saíram à rua para protestar contra o regime.
As revoltas sucederam-se com o passar dos anos, embora os efeitos práticos fossem sempre diminutos.
Até que no dia 1 de Julho de 1980, no seguimento de mais um aumento dos preços, alguns serviços das fábricas Ursus em Varsóvia suspenderam o trabalho. As greves propagaram-se rapidamente, sendo que a contestação enraizou-se e assumiu pela primeira vez um carácter permanente.
Algumas semanas depois, desencadeou-se uma outra greve nos estaleiros Lenine de Gdansk, cidade onde se situa o principal porto da Polónia. Desta vez a causa da greve foi o despedimento de Anna Walentynowicz, uma manobradora de grua com vinte anos de serviço e militante de um movimento operário anticomunista.
Esta greve foi organizada por Lech Walesa, nessa altura um simples electricista desempregado, depois de em Dezembro de 1970 ter liderado os protestos dos operários nos estaleiros numa altura de crescente tensão entre trabalhadores e Governo e que levaram ao seu despedimento e prisão pelas actividades de cariz sindicalista.
O movimento operário cresceu e os trabalhadores apresentaram as suas reivindicações ao governo. Segundo Gian Franco Svidercoshi “as autoridades de Varsóvia receberam então uma ordem de Moscovo: «Assinem! Assinem! Mas acabem com esta agitação!» ”.
O receio de que o “vírus” polaco se propagasse fez com que a 31 de Agosto fosse assinado um acordo que previa a “aceitação de sindicatos independentes autónomos” e a garantia do direito à greve.
Nascia oficialmente o “Solidarnosc”, o primeiro sindicato livre do Leste europeu, que chegou a contar com cerca de dez milhões de membros, não só operários, mas também camponeses e estudantes.
A sua força era tal que logo a partir do final do Outono de 1980, Moscovo começou a considerar o “Solidariedade” uma perigosa ameaça pelo risco da sua influência se enraizar noutros países, dado que o mesmo representava um forte ataque ao regime.
A tensão aumentou e a 13 de Dezembro de 1981 foi proclamado o estado de sítio na Polónia. A lei marcial, decretada pelo General Jaruzelski, que dirigia simultaneamente o Partido Comunista e o Governo, foi a solução encontrada pelas autoridades para tentar acabar com uma crise que se agravava de dia para dia. Milhares de sindicalistas e intelectuais foram deportados para os campos de detenção e Lech Walesa encontrava-se em local desconhecido. A actividade do sindicato foi suspensa, o direito à greve foi abolido e em Outubro de 1982 foi oficialmente declarada a dissolução do “Solidariedade”.
Porem, a acção do regime polaco tornou-o ainda mais isolado e mais fraco, uma vez que o Ocidente, através dos Estados e organismos internacionais entre outros, suspendeu as suas ajudas à Polónia e tomou partido pelo “Solidariedade”, o que levou a que Walesa fosse libertado da sua residência fixa em Arlamowo e quase todos os campos de detenção fossem encerrados. Porém, o clima de opressão mantinha-se.
Em 1983, após a visita de João Paulo II, Jaruzelski acaba com o estado de sito e começa a esvaziar as prisões perante a pressão da Comunidade Internacional. Nesse mesmo ano, Lech Walesa vence o Prémio Nobel da Paz “pela liderança do movimento não violento para alcançar o direito de livre associação dos trabalhadores polacos” e os U2 lançam o êxito “New Year’s Day”, inspirado na situação da Polónia e que se tornou num hino de apoio a Walesa e ao “Solidariedade”.
Fruto das sanções económicas e do falhanço da sua economia planificada, a Polónia enfrentava agora uma crescente deterioração da sua economia aliada a uma crise social já longa e bastante desgastante para o regime. Em 1989, os dirigentes comunistas vêm-se sem qualquer margem de manobra e são obrigados a sentar-se à mesa com os sindicalistas, dando início às “Conversações da Mesa Redonda”, que decorreram entre Fevereiro e Abril, debaixo de muita polémica. Por um lado muitos comunistas temiam, como se veio a verificar, que estas negociações seriam o princípio do fim. Por outro lado, ainda hoje na Polónia, há quem não perdoe a Lech Walesa, a “traição” de negociar com o regime, afastando-se do rumo inicial do “Solidariedade”.
Apesar disso, os acordos alcançados são históricos.
A 5 de Abril de 1989 são marcadas eleições semi-livres para o dia 4 de Junho a que a oposição podia concorrer a 35% dos lugares do Parlamento e à totalidade dos lugares do Senado. Acordou-se igualmente a legalização do Solidariedade, o reconhecimento da liberdade de imprensa e do pluralismo político, os princípios de uma reforma economia e de uma reorganização administrativa e judiciária. 
Os resultados das eleições inequívocos. O Solidariedade conquista 99 dos 100 lugares do Senado e elege a totalidade dos 35% dos lugares a que concorre no Parlamento, dando origem ao primeiro governo não comunista da Europa Central e de Leste, dirigido por Tadeuz Mazowiecki, intelectual católico e conselheiro de Lech Walesa.
Mazowiecki toma posse em Agosto. Os comunistas mantêm as pastas do Interior e da Defesa e o General Jaruzelski é eleito Presidente da República por ano, até que em 1990, nas primeiras eleições livres, o Solidariedade consegue a maioria absoluta e Lech Walesa é eleito Presidente da República.
“Pela primeira vez o poder escapava ao partido comunista numa democracia popular” afirma o historiador francês René Rémond.
O “Solidariedade” manteve-se unido durante mais algum tempo devido à ameaça comunista, mas quando a mesma desapareceu totalmente, o movimento dividiu-se em várias facções, com muitas das suas principais figuras a rumarem a outros caminhos, fruto das suas profundas divergências entre si.
Devido a essa fragmentação, o “Solidariedade” já não ocupa o lugar central que teve durante o processo de democratização da Polónia, mas continua vivo, com um grande valor simbólico para todos os polacos.
O Papel da Igreja Católica na Resistência da Polónia
Conta Adriano Moreira, acerca da eleição do Papa João Paulo II “que o Primeiro Secretário do Partido Comunista Polaco, quando recebeu a notícia da eleição, exclamou: «Sagrada Mãe de Deus!». Também era polaco.”
Não há outro país europeu onde a Igreja Católica tenha tanta força como na Polónia, “numa definição nacional de 33 milhões de baptizados em 38 milhões de habitantes”, de acordo com o mesmo Adriano Moreira.
A implantação de um regime comunista totalmente contrário à alma da nação polaca, onde o catolicismo se identificava completamente com a sua história e os seus valores mais profundos, fez com a Igreja Católica assumisse um papel fulcral na resistência da Polónia dada a sua força e a sua importância junto da sociedade civil.
O regime comunista cedo se apercebeu dessa realidade e procurou desde logo reduzir ao máximo a expressão da Igreja Católica na Polónia, através de uma forte campanha ateísta que limitava significativamente a liberdade religiosa de forma repressiva.
Em Roma, o Papa Pio XII denúncia as condições daquela a que chama “Igreja do Silêncio”, e onde os bispos passam a ser obrigados a jurar fidelidade às autoridades, sob pena de serem presos.
A situação piora com a morte de Josef Estaline em 1953. Padres, freiras e bispos são detidos. Uma das figuras que protesta com mais veemência e será uma das maiores dores de cabeça para o regime comunista é o cardeal Stefan Wyszinsky, Primaz da Polónia, que na sequência dos seus fortes protestos é preso num convento em isolamento durante 37 meses, sendo libertado na sequência dos protestos dos operários de Poznam em Junho de 1956, numa altura em que o regime procurava dar alguns sinais de abertura ao mundo.
Apesar da libertação do cardeal Wyszinsky, a repressão continua. E continua porque, como afirma D. Stanislao Dziwisz, actual Arcebispo de Cracóvia e antigo secretário pessoal do Papa João Paulo II, “apesar das perseguições, apesar de um ateísmo agressivo, continuava a ser uma Igreja viva e dinâmica, com os seminários cheios, novas formas de empenhamento pastoral e uma presença cada vez mais sólida dos laicos na vida eclesiástica. Na Polónia, a Igreja era um sustentáculo para o homem oprimido, sem possibilidades de expressão. E, tendo em conta que os direitos das pessoas eram muito limitados, constituía o único espaço de liberdade.”
É durante o Concílio Vaticano II, que decorre entre 1962 e 1965 que os representantes polacos, Wojtyla e Wyszinsky, põem em cima da mesa a questão da liberdade religiosa e criam um clima de atenção para as condições da “Igreja do Silêncio”, não só na Polónia, como nos restantes países de Leste. “O direito à liberdade religiosa deve ser reconhecido em todas as nações. É necessário distinguir o ateísmo que resulta das convicções pessoais daquele que vem imposto do exterior com pressões físicas e morais” afirma o então Arcebispo de Cracóvia, Karol Wojtyla.
 Em 1966, um ano após a conclusão do Concílio Vaticano II, as autoridades polacas vetaram a celebração do milénio da conversão da Polónia ao cristianismo, o que levou a uma profunda ruptura das relações entre a Igreja e o regime comunista, já que as autoridades impediram inclusivamente a visita do Papa Paulo VI à Polónia para presidir às celebrações.
Os protestos que se repetiam ciclicamente contavam agora com um apoio ainda mais forte da Igreja Católica, que ao romper totalmente com a política de não confrontar abertamente o regime se tornou num ponto de referência para os diferentes grupos sociais. São as “pequenas revoluções” nos termos do cardeal Wyszinsky, que apesar de não terem qualquer consequência imediata vão desgastando o regime pouco a pouco. A Igreja “apoiava as reivindicações dos trabalhadores, protegia os jovens, os intelectuais, os professores (a quem tinha sido vedado o direito de frequentar a Igreja), o mundo da ciência (repetidamente atingido pela censura) e ainda os dissidentes, os perseguidos” conta D. Stanislao Dziwisz.
A autoridade moral que a Igreja detinha fazia com que as “pequenas revoluções” tivessem um impacto maior junto das autoridades, sendo que, ao mesmo tempo, o apoio que a Igreja dava a estes protestos, granjeava-lhe cada vez mais credibilidade junto da classe operária, bem como nos meios culturais e intelectuais.
A posterior eleição do Arcebispo de Cracóvia, Karol Wojtyla como Papa em 1978, leva o Vaticano a actualizar a sua “Ostpolitik”, iniciada no pontificado do Papa João XXIII e consolidada no pontificado de Paulo VI. Até então, o Vaticano pautava a sua acção relativamente aos países da “Cortina de Ferro” com muita cautela e muita prudência. Era o chamado “martírio da paciência”, como uma vez definiu o Cardeal Agostino Casaroli, principal impulsionador desta tentativa de colaboração com os governos comunistas a fim de manter a Igreja viva nesses países.
Mas a partir do momento em que João Paulo II toma os destinos da Igreja, o papa polaco não nega que uma das suas prioridades é o combate aberto aos regimes da “Cortina de Ferro”. Afinal de contas, João Paulo II vinha do único país da Europa de Leste onde a Igreja tinha poder para ousar levantar a voz contra o regime comunista, dada a sua autoridade moral.
A Igreja era agora, mais do que nunca, a grande referência da resistência polaca. São célebres as imagens das greves de Agosto de 1980, que viriam a dar origem ao “Solidariedade”, de vários operários a confessarem-se antes de receberem a comunhão, naqueles momentos de grande agitação.   
Esta era uma revolta da sociedade civil que contava com a sua instituição mais forte e autónoma: a Igreja Católica que era não só uma instituição religiosa, mas também uma “instituição onde os sentimentos nacionais – incluindo as aspirações de independência – puderam ser expressos” afirma João Sobral, Membro da Direcção do Centro de Investigação e Análise em Relações Internacionais.
O Apoio de João Paulo II ao “Solidariedade”
Uma das figuras mais importantes de todo este processo é sem dúvida Karol Wojtyla. O combate aos regimes da “Cortina de Ferro” teve um enorme impulso quando a 16 de Outubro de 1978 se tornou no 265º Sumo Pontífice da Igreja Católica com o nome de João Paulo II.
A sua escolha não terá sido completamente casual. José Manuel Pureza, professor do curso de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e actual líder parlamentar do Bloco de Esquerda, afirma que “a sua filiação polaca torna-o patrocinador espiritual de algumas das transformações que se operavam em alguns países do Leste Europeu”.
Já o falecido jornalista Carlos Cáceres Monteiro afirma que “aquele evento modificaria o curso dos acontecimentos na Polónia e em todo o Leste europeu. Como era inevitável, a eleição de um Papa polaco, com as características de contrapoder que a Igreja tinha (e tem) naquele país, iria encorajar o movimento clandestino contra o regime, fortalecer o sindicato independente Solidariedade e toda a oposição ao comunismo”.
A notícia na Polónia foi dada de forma discreta, dado o embaraço evidente das autoridades. De acordo com Gian Franco Svidercoshi “a publicação da notícia fora atrasada porque no Comité Central do Partido não sabiam como a transmitir de forma a minimizar as suas repercussões. Não apenas na Polónia mas em todo o mundo comunista e principalmente no Kremlin a confusão era enorme. Durante dez dias, em todo o império, dominou o silêncio total! Nem uma declaração! Nem um comentário!” A preocupação é compreensível. O regime tinha a perfeita noção que, tal como afirma René Rémond, esta eleição conferia uma dimensão universal a tudo o que se viesse a passar na Polónia.
Mas a preocupação das autoridades foi maior ainda quando em Junho de 1979, João Paulo II fez a primeira visita oficial à sua terra natal. “A exclusão de Cristo da história do homem é um acto contra o homem” afirma Karol Wojtyla em Varsóvia. Os aplausos impediram-no de continuar o seu discurso durante 20 minutos. Havia falado de Cristo, não de política, mas as suas palavras sacudiram a Polónia como um “terramoto” segundo os termos do cardeal König e chegariam inclusive até às muralhas do Kremlin, sendo que de acordo com Svidercoshi, “os chefes comunistas estavam duplamente angustiados porque começavam a entender que a situação lhes fugia das mãos.” 
Os esforços do regime centraram-se na comunicação e sobretudo na televisão. D. Stanislao Dziwisz, secretário pessoal do Papa conta que ”os enquadramentos eram sempre em grande plano para esconder a enorme participação popular”. Uma população à qual João Paulo II queria dar voz, procurando através do seu carisma chamar a atenção de todo o mundo. Antes de partir, disse aos jornalistas: “Congratulo-me por ter trazido todo o mundo à Polónia!”
Um ano depois nasceria o sindicato “Solidariedade”, fundado e liderado por Lech Walesa, que em Janeiro de 1981 se encontrou com João Paulo II.
Entretanto, a 13 de Maio de 1981 o Papa João Paulo II sofreu um atentado em Roma ao qual sobreviveu, numa altura em que o Primaz da Polónia, D. Stefan Wyszinsky, estava prestes a falecer. O cardeal Achille Silvestrini, Secretário do Conselho para os Assuntos Públicos da Igreja, não tem dúvidas: “Naquela situação com a perda do cardeal Wyszinsky, se o Papa fosse assassinado, tinha sido uma como uma pedra tumbal sobre a Polónia e sobre a resistência da Polónia.” De facto, hoje sabe-se que naquela praça estavam também agentes de outros países do Pacto de Varsóvia.
Ultrapassado este incidente, João Paulo II recebeu Ronald Reagan no Vaticano num encontro histórico e definitivo para a estratégia geopolítica do seu pontificado. Do estabelecimento de relações diplomáticas plenas entre o Vaticano e os EUA chegaram também financiamentos dos EUA para as actividades do “Solidarnosc”, entretanto ilegalizado,
É neste contexto que em Junho de 1983, Wojtyla volta à Polónia num ambiente tenso de lei marcial. O Papa apela a uma revolta pacífica mas forte contra o regime. No encontro com o General Jaruzelski, o Papa pediu expressamente a implementação dos acordos de Agosto de 1980 assinado pelos sindicatos e pelo governo. Svidercoshi conta ainda que “durante a entrevista privada, (João Paulo II) disse essencialmente ao general que eventualmente poderia compreender a decisão de impor o estado de sítio, mas não poderia compreender a abolição do Solidariedade que exprimia a alma polaca”. É a viagem mais difícil do seu pontificado, mas de acordo com o mesmo Svidercoshi “só assim foi possível salvar o Solidariedade e Lech Walesa”.
João Paulo II encontra-se também em segredo com Walesa. D. Stanislao Dziwisz conta que “naquele momento não eram os discursos que contavam, nem as palavras, mas só a circunstância em si própria, a acção.” E talvez seja por isso que o secretário particular do Papa afirme anos depois nas suas memórias que “o Santo Padre tinha encontrado a forma necessária para apoiar uma nação triste, desiludida e amargurada, bem como manter a vida do Solidariedade que, naquele momento, não existia oficialmente. E tudo isto sem provocar, nem mesmo involuntariamente, desordens nem situações de confronto.”
Wojtyla não pára: relações diplomáticas plenas entre a Santa Sé e os Estados Unidos da América abrem 1984; encontra-se com o Ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS em 1985 e com o General Jaruselski em 1987, ano em que volta à Polónia. Em Gdansk, João Paulo II reivindica a legitimidade dos direitos dos trabalhadores repetindo várias vezes a palavra “solidarnosc” no seu discurso perante um milhão de trabalhadores para depois se encontrar novamente com Lech Walesa.
Para Gian Franco Svidercoshi não restam dúvidas: “É precisamente a partir daqui que vai arrancar o processo irreversível que dois anos mais tarde iria conduzir à liberdade, o regresso do Solidariedade à legalidade, o primeiro governo não comunista do pós-guerra na Europa Central e de Leste (dirigido pelo católico Tadeuz Mazowiecki) e, para concluir, a eleição do antigo electricista dos estaleiros Lenine de Gdansk à Presidência da República.”
Em Junho de 1999, naquela mesma praça, Wojtyla recorda esse momento e afirma: “Então eu falava a vós, mas também de certa forma em vosso nome.” “«Solidarnosc» abriu as portas à liberdade nos países tornados escravos pelo sistema totalitário, derrubou o muro de Berlim e contribuiu para a unidade da Europa dividida em dois blocos desde o tempo da segunda guerra mundial. Jamais devemos cancelar isto da nossa memória” concluiu, reivindicando o papel central da Polónia e do sindicato de Lech Walesa na derrota do comunismo.
“A Polónia estava, enfim, na linha da frente da grande revolta que iria assinalar o fim do comunismo” diz Svidercoshi nas suas conversas com D. Stanislao Dziwisz.
Um fim que ganha contornos mais nítidos no incrível ano de 1989.
Com a queda do Muro de Berlim em Novembro de 1989, chegamos a um “ponto de não retorno”. Uma mudança que se deve também em muito aos méritos da acção de Mikhail Gorbachov que a 1 de Dezembro desse mesmo ano visita João Paulo II, naquela que foi a primeira vez que um Chefe do Estado Soviético visitou o Vaticano depois da Revolução de Outubro. E sem querer retirar qualquer valor à sua acção, muitos perguntam ainda hoje se teriam a Perestroika de Mikhail Gorbachov e a queda da URSS podido verificar-se se não tivesse existido um papa polaco.
O próprio Mikhail Gorbachov afirma: “Tudo o que se passou na Europa de Leste durante estes últimos anos, não teria sido possível sem a presença deste Papa, sem o grande papel, também político, que ele soube desempenhar na cena mundial.”
Dez anos de pontificado acabaram por ser suficientes para que João Paulo II vencesse a sua luta para libertar os países da “Cortina de Ferro” do totalitarismo soviético. “O que resulta daí é, em certa medida, uma contribuição deste Papa para uma hegemonia político-económica da democracia liberal e das necessárias transformações de algumas economias planificadas” afirma José Manuel Pureza.
Repercussões nos Restantes Países da Cortina de Ferro
Ninguém pode negar a importância central que os acontecimentos na Polónia tiveram no desmantelamento da “Cortina de Ferro”, embora a queda do Muro de Berlim seja indubitavelmente o principal símbolo da queda do comunismo. Mas a verdade é que, tal como afirma Jacek Stawiski, comentador do canal de informação polaco TVN 24, “as fotos dos destruidores do muro e do seu desmantelamento representam de facto melhor o triunfo da liberdade do que as fotos das eleições de 4 de Junho”.
Embora a situação da Polónia fosse bastante particular, com a presença de uma Igreja Católica muito influente e de uma sociedade civil também ela muito activa, o facto de pela primeira vez, o regime comunista ter sido obrigado a entregar o poder à oposição haveria de ferir de morte o Bloco Soviético.
Nesse sentido, o sucesso do caso polaco, é como que um incentivo à resistência nos restantes países do Leste Europeu onde, como explica René Rémond, a simpatia pelo papel da URSS na sua libertação do nazismo tinha sido substituída pelo “ressentimento”.
Naquele momento, a imagem da URSS no mundo estava gravemente manchada, quer pela repressão imposta às resistências nacionais, quer pela recente humilhação que constituía a vitória do “Solidariedade” na Polónia.
Com uma fragilidade tão evidente, qualquer manifestação de libertação tinha grandes hipóteses de ter sucesso. Sobretudo, porque no comando da URSS estava agora Mikhail Gorbachov, que de acordo com René Rémond “abriu um novo capítulo na história da União e, por conseguinte, dos povos cujo destino dele dependia e mesmo do conjunto das relações internacionais”.
A sua ascensão à direcção suprema do PCUS e consequentemente da União Soviética já no ano de 1985, num momento em que o “Solidariedade” ainda se encontrava ilegalizado, fez com que a URSS não tivesse qualquer intromissão nas “Conversações da Mesa Redonda” em 1989. Citando João Sobral: ”Na perspectiva da União Soviética era apenas uma democratização limitada e gradual que se estava a negociar.”
Este dado absolutamente novo nas relações entre Moscovo e os países satélites, conduziu a uma reacção em cadeia nos restantes países da “Cortina de Ferro” logo após a realização das eleições semi-livres de 4 de Junho que retiraram o Partido Comunista da Chefia do Governo.
Durante o fim do Verão e o Outono de 1989, sucederam-se as manifestações, desta vez pacíficas e sem qualquer tipo de repressão por partes das autoridades. Na Hungria, na República Democrática da Alemanha e na Checoslováquia as multidões saíram à rua para exigir a sua liberdade e a realização de eleições livres ou semi-livres, tal como havia sucedido meses antes na Polónia.
Voltando a citar o historiador francês René Rémond: “o curso das coisas arrasta os governos, constantemente ultrapassados pelo movimento da história, pelas aspirações dos povos, pelos constrangimentos da economia.” “A União Soviética não está em situação de se opor” conclui.   
A 9 de Novembro de 1989, a decisão do governo da República Democrática da Alemanha de abrir o Muro de Berlim inaugura nas palavras do mesmo Rémond “uma nova era”. Uma era que se tinha começado a formar na vizinha Polónia. 
Conclusão
O fim da Guerra Fria e o consequente fim da divisão da Europa em dois blocos deveu-se sobretudo à queda dos regimes comunistas, economicamente frágeis e politicamente autoritários e totalitários e que estavam destinados a cair mais cedo ou mais tarde.
Dos países satélites de Moscovo, que componham a dita “Cortina de Ferro”, como designou Winston Churchill em 1946, a catolicíssima e intrinsecamente anticomunista Polónia, foi indubitavelmente a nação onde a contestação e a resistência foram mais fortes, numa sociedade civil activa que nunca se identificou com aquele regime que lhes havia prometido o paraíso na Terra.
Uma sociedade civil que tinha na Igreja Católica a sua principal fonte de força e inspiração na luta contra um regime que procurou ao máximo limitar a liberdade religiosa num país onde o cristianismo fazia parte da alma da própria nação.
A eleição do Arcebispo de Cracóvia Karol Wojtyla para o trono de São Pedro em 1978 acabou por constituir um momento marcante na resistência da Polónia. Além de conferir à luta polaca uma dimensão universal que de outra forma dificilmente teria, a sociedade civil polaca ganhou um novo ânimo com a actualização da “Ostpolitik” do Vaticano, organizando-se e congregando todas as suas forças e sectores de oposição ao regime no sindicato independente “Solidariedade” liderado pelo electricista de Gdansk, Lech Walesa.
A sua luta pacífica mas determinada, contou com o apoio de uma comunidade internacional que na sequência da imposição da Lei Marcial em 1981, havia de aplicar várias sanções económicas que haveriam de ferir de morte o governo do General Jaruselski, obrigado anos depois a negociar com os sindicatos, numa situação enfraquecida com uma economia falhada e uma contestação que aumentava de dia para dia e tornava a situação insustentável. As eleições semi-livres de 4 de Junho de 1989 levaram o Partido Comunista a ceder pela primeira vez a Chefia do Governo à oposição numa República Popular e abriram um grave precedente relativamente aos restantes países da Europa de Leste, que incentivados pela experiência polaca exigiam agora igual oportunidade.
O Bloco Soviético que outrora reprimira com sucesso várias tentativas de revolução como a “Primavera de Praga” em 1968, já não tinha força para se opor. Os acontecimentos na Polónia, aliados a uma economia em colapso não davam qualquer espaço de manobra e haviam causado uma profunda mancha na credibilidade da União Soviética.
Desse modo, a experiência polaca acabou por constituir como que o acender do rastilho de pólvora que a 9 de Novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim, haveria de explodir definitivamente com todo o império soviético.
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