Revista: "PERGUNTE E
RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 255 - Ano : 1981 - p.
116
Em síntese : O pastor Anibal
Pereira dos Reis publicou em 1980 mais um livro polêmico, em que desta vez
ataca o Papa e, de modo especial, a sucessão apostólica a partir de São Pedro.
Verifica-se, porém, que o
referido autor não foi às fontes da história dos Papas, mas consultou manuais
de história da Igreja editados nos últimos cem anos, guiado por preconceitos
passionais. É o que explica tenha visto
problemas sucessórios onde não os há ou tenha exagerado, dificuldades que não
são decisivas.
O presente artigo repassa os
casos da história dos Papas apontados pelo Pastor Anibal, mostrando o que neles
haja de vicissitudes humanas, vicissitudes, porém, que não impedem o
historiador de discernir a sucessão apostólica ininterrupta desde Pedro até
João Paulo II. É esta a importante
conclusão de todo este estudo. A palavra
de Jesus que prometeu a Pedro e aos Apóstolos e sua assistência indefectível
até a consumação dos séculos (cf. Mt 16, 16-19; 28,19s), continua válida:
aplica-se a João Paulo II e aos bispos de sua comunhão como legítimos
sucessores do colégio apostólico chefiado por Pedro.
Quem observa a história do
Papado e a da Igreja, tem motivos para corroborar a sua fé, pois o conhecimento
do passado evidencia que é o Senhor Deus quem sustenta a Igreja, e não a
virtude dos homens; mais convicta ainda se torna a consciência de que é o
próprio Jesus Cristo quem está presente em sua Igreja e a conserva
incólume Mestra da Verdade através das tormentas da história.
Comentário: Em 1980 foi editado mais um livro polêmico,
intitulado "Cartas ao Papa" João Paulo II, da lavra do pastor Anibal Pereira
dos Reis. Este opúsculo, redigido em
estilo sarcástico, impugna a legitimidade da autoridade papal. Para tanto, recorre a afirmações não
comprovadas, a fontes pouco abalizadas e a interpretações distorcidas dos
fatos. Um autor que cultive realmente a
ciência, não usa tal estilo nem tal método, pois são passionais e não se atêm à
objetividade do discurso autenticamente científico. Como quer que seja, o livro do pastor Anibal
pode impressionar leitores despreparados ... Eis por que lhe daremos atenção.
O autor contesta a
autoridade de Pedro e o seu sepultamento em Roma - o que já foi estudado em PR
252/1980, pp. 487-499; consequentemente, impugna a autoridade dos sucessores de
Pedro, tentando mostrar que a sucessão dos Papas através dos séculos é obscura
a ponto de haver contradições entre os próprios autores católicos. Nas páginas subseqüentes, voltar-nos-emos
para a história do Papado a fim de elucidar os pontos indicados pelo pastor
Anibal e evidenciar a continuidade das funções de Pedro por entre os altos e
baixos que a história dos homens não pode deixar de apresentar.
Os percalços da história
O pastor Anibal Pereira dos
Reis apresenta um quadro muito confuso da história do Papado. Cita autores de manuais da história da Igreja
como Capelli, Seppelt-Loeffler, Pastor, Lorenz, H. Bruck ..., todos autores dos
últimos cem anos ... Anibal Pereira dos Reis não pesquisou fontes antigas, para
poder penetrar melhor a matéria, de modo que a sua explanação não pode deixar
de ser superficial e pré-científica.
Procurando considerar com
objetividade serena o assunto, observamos que a história do Papado, como,
aliás, freqüentemente a história geral, não pode deixar de ter os seus pontos
obscuros. E isto, no caso do Papado, por quatro principais motivos:
Deficiência de fontes e
cronistas na antiguidade
As primeiras tentativas de
reconstituir a linha sucessória dos Papas datam do século II e devem-se
respectivamente aos escritores Hegesipo (151-166) e S. Ireneu (177-178). Ambos foram a Roma para consultar diretamente
as fontes da história1.
O trabalho de Hegesipo
chegou-nos em estado fragmentário (inserido na Historia Ecclesiastica de
Eusébio de Cesaréia V 22,3), ao passo que o de S. Ireneu foi conservado
integralmente (ib. V. 6,24-29; Adversus Haereses III 3), mas sem dados
cronológicos; a lista dos Papas confeccionada por S. Ireneu é o documento mais
abalizado que tenhamos no tocante aos primórdios do Papado; começa com Pedro,
Lino, Cleto e estende-se até S. Eleutério (175-189).
Acontece que, no decorrer
dos séculos, cronistas e historiadores tentaram estabelecer a lista dos Papas
da antigüidade, mas às vezes de maneira pouco científica, comparando a
cronologia dos Papas com as de Imperadores e cônsules. Numerosas são as tabelas daí oriundas. Os críticos têm procurado fazer a triagem de
tais documentos, de modo a oferecer ao estudioso contemporâneo a autêntica
imagem da história do Papado.
Erros e incertezas da
crônica
Dentre as deficiências
cronográficas, merecem especial relevo as seguintes :
- por vezes, os cronistas
inseriram nos catálogos dos Papas nomes de pessoas que nunca existiram; assim
Dono II1, que teria governado em 972 ou
974; por sua vez, o Papista Joana nunca existiu, mas foi introduzida no
catálogo dos Papas em lugares diferentes (o que bem mostra que se trata de
ficção; cf. PR 141/1971, pp. 411-418);
- a numeração dos Papas nem
sempre procedeu exatamente. Assim o Papa
João XV (985-996) em algumas listas foi considerado João XVI, pois erroneamente
se colocou antes do mesmo um fictício João XV; em conseqüência, a numeração dos
Papas subseqüentes de nome João foi aumentada de uma unidade até João
XVIII. Nesta série, João XVI foi
antipapa, como se verá adiante; não obstante, foi João XVI computado, por erro,
entre os Papas legítimos ... Não houve Papa de nome João XX;
- a escrita de determinados
nomes oscilou, de modo que um Papa pode aparecer duas vezes num catálogo com
nomes semelhantes: tal é o caso de Cleto e Analeto2 e de Marcelo e Marcelino;
provavelmente trata-se apenas dos Papas S. Anacleto ou Cleto (76-88 ou 79-91) e
S. Marcelino (296-304);
- quando era escolhido Papa
um diácono nos primeiros séculos, este devia receber a ordenação episcopal; sem
esta o cleito não poderia ser considerado Papa.
Ora Estêvão II foi eleito entre 16 e 23/03/752; faleceu, porém, dois
dias após a eleição, sem ter sido ordenado bispo, de modo que juridicamente não
é Papa; não obstante, por alguns cronistas medievais foi considerado como Papa
Estêvão II: visto que fora eleito. O
seguinte Estêvão toma ora o número II, ora o número III (752-757), de mais a
mais que sucedeu sem intermediário a Estevão (II).
Ingerência de Imperadores e
famílias nobres
Desde que o Imperador
Constantino concedeu a paz aos cristãos (313), o poder imperial foi assumindo
funções de tutela em relação à Igreja até chegar ao exercício do Cesaropapismo
(cf. Justiniano I, 527-565). Além disto,
as famílias nobres de Roma e dos arredores também se imiscuíram na escolha dos
bispos de Roma, procurando favorecer seus interesses particulares e
políticos. Disto resultou que pessoas
não qualificadas foram colocadas sobre a sé de Pedro, às vezes em pontificados
breves e tumultuados; resultou também que os Imperadores promoveram a eleição
de seu Papa próprio (= antipapa) em oposição ao legítimo Pontífice. Assim, por exemplo, o Imperador Oto I, no
Sínodo de Roma de 4/12/1963, depôs o Papa João XII e ocasionou a eleição de
Leão VIII. Este foi antipapa, visto que
nenhum Imperador tem autoridade para depor um Papa; somente depois que faleceu
João XII (964), a sé papal tornou-se vacante, sendo então eleito como legítimo
Pontífice Bento V. Todavia há catálogos
antigos que erroneamente consignam João XII, Leão VIII e Bento V como Papas
legítimos!
Outro motivo de percalços na
história do Papado é
A fraqueza de clérigos
Houve, sem dúvida, clérigos
cobiçosos que disputaram a ascensão à cátedra de Pedro, provocando agitação e
quadros sombrios na linhagem dos Papas.
A verificação da fragilidade humana não surpreende o cristão; este sabe
que, desde Abraão, Isaque e Jacó, o Senhor
se dignou escolher os instrumentos humanamente mais fracos para realizar
o seu sábio plano de salvação. Ao
verificar isto, São Paulo diz: "É na fraqueza que a força manifesta todo o seu
poder ... Por isto eu me comprazo nas fraquezas ... nas necessidades ... pois,
quando sou fraco, então é que sou forte" (2Cor 12,9s).
Uma vez expostas as causas
de dificuldades que o historiador encontra para reconstituir a história do
Papado, compete-nos deter-nos mais atentamente sobre o que seja um antipapa.
Antipapa
Exporemos as maneiras como
se pode originar um Antipapa; a seguir, examinaremos alguns casos particulares.
Como (...)?
Como diz o nome, Antipapa é
alguém que se opõe ao Papa legítimo trazendo falsamente o título de Papa;
trata-se de um usurpador, eleito (às vezes de boa fé) em condições
ilegítimas. Atribuindo a si a autoridade
de Papa, cria um estado de cisma entre os fiéis. O primeiro Antipapa que se conheça, é
Hipólito Romano (217-235) e o último vem a ser Félix V (1439-1449); a respeito
de um e outro dir-se-á uma palavra oportunamente.
O número de antipapas
oscila, pois os estudiosos seguem critérios diferentes para definir se tal ou
tal figura foi ou não antipapa. Os
historiadores protestantes, por exemplo, julgam vacante a sede papal se o
respectivo titular é deposto por motivos políticos; ao contrário, os católicos
afirmam que não há poder imperial nem eclesial habilitado a destituir um
Pontífice1 e estipulam os seguintes critérios para distinguir um Papa legítimo
de um antipapa:
1) esteja a sede papal vacante
por ocasião da eleição ou da ascensão do Pontífice à mesma; ora a vacância só ocorre por morte ou por
renúncia do legítimo titular; fora destes casos, a sede papal não pode ser
ocupada por quem quer que seja;
2) os legítimos eleitores do
futuro Papa desempenhem as suas funções com plena liberdade. No caso de terem efetuado uma eleição de
validade dúbia ou nula, requer-se um ato público que sane os vícios da eleição
realizada. Foi o que se deu no caso do
Papa Vigílio. O Papa S. Silvério
(536-537) fora indevidamente deposto pelo general Belisário; a facção deste
procedeu então à escolha do diácono Vigílio para ser o "Papa", mas
invalidamente. Morto Silvério, Vigílio
foi reconhecido publicamente como Papa legítimo (11/11/537); não foi Papa senão
após a morte de Silvério;
3) Cumpram-se exatamente as
prescrições canônicas vigentes para a eleição de um Papa. Tais normas têm variado de época para época,
tendendo a se tornar cada vez mais rígidas, a fim de se evitar a intrusão de
facções políticas.
Os antipapas tiveram origem
freqüentemente pelo fato de os Imperadores e famílias nobres intervirem na
escolha do Pontífice.
A primeira intervenção
imperial em favor de um antipapa foi a de Constâncio (337-361) em prol de Félix
II; o monarca, tendo-se imiscuído na controvérsia ariana1, exilou o Papa Libério (351-366), que defendia
a reta doutrina (o Credo de Nicéia); em conseqüência, no ano de 355 o diácono
de Roma Félix aceitou ser ordenado bispo, como se lhe fosse lícito substituir
Libério, o bispo de Roma; voltaremos ao assunto à p. 123. - Por causa da
confusão dos cronistas, o seguinte Papa Félix (483-492) foi tido como o
terceiro, e não o segundo, deste nome2.
As intervenções na Idade Média desde Oto I (936-973) a Frederico I
Barba-roxa (1152-1190).
A partir de antipapa
Constantino (767-768) até Anacleto II (1130-1138) a ascensão de antipapas foi
promovida freqüentemente também pelas famílias romanas interessadas em colocar
parentes sobre a cátedra de Pedro.
Examinaremos alguns casos de
antipapas mencionados especialmente pelo pastor Aníbal dos Reis.
Casos especiais
Hipólito de Roma
Hipólito aparece em Roma no
fim do século II como personagem erudito e, ao mesmo tempo, polemista; combatia
as heresias que sob o pontificado do Papa Vitor (189-199) perturbavam a
comunidade de Roma.
O Papa Zeferino (199-217)
parecia a Hipólito demasiado indulgente para com os cristãos
indisciplinados. Quando a este sucedeu Calisto (217-222), Hipólito se
separou da comunhão da Igreja, dando origem a uma facção cismática, da qual ele
era o bispo. Tornou-se assim o primeiro
antipapa, persistindo nesta atitude ainda sob os pontificados de Urbano I
(222-230) e Ponciano )230-235). Tal
situação acabou quando o Imperador Maximino Trace publicou um edito de
perseguição que atingia principalmente os pastores da Igreja: então Ponciano e
Hipólito foram deportados para a ilha "nociva", a Sardenha; Hipólito
reconciliou-se com o Papa Ponciano e a Igreja no exílio; ambos sofreram o
martírio pela fé.
Assim se explica que
Hipólito tenha sido antipapa e seja tido como santo. Ele só foi santo por ter deixado de ser
antipapa e haver aderido a Cristo na única Igreja, cujo pastor supremo é o
bispo de Roma. Os santos podem ter
atravessado fases de vida censuráveis.
Os "Félix"
Há três Papas legítimos de
nome Félix e dois ilegítimos ou antipapas.
A numeração é contínua de I a V, não porque se devam equiparar entre si
os autênticos e os falsos Pontífices, mas porque as circunstâncias da época em
que viveu Félix II não permitiram aos cristãos discernir entre verdadeiro e
falso sucessor de São Pedro. Hoje, ao
ler tal numeração, o cristão reconhece o significado relativo da mesma, sabendo
que não é o título nem a numeração que faz de um antipapa um autêntico
Pontífice. Percorramos sumariamente a
seqüência dos cinco Félix:
1) Félix I, Papa, governou de 269 a 274. Deixou uma carta ao clero de Alexandria, na
qual afirma a unicidade da pessoa de Jesus Cristo, tema debatido no século III.
2) Félix II, antipapa. Era arquidiácono em Roma.
O arianismo (heresia que negava a divindade de Cristo)
era então favorecido pelo Imperador Constâncio (337-361), que em conseqüência
exilou o Papa Libério. Então Félix,
embora tivesse prometido fidelidade ao Pontífice, permitiu que o ordenassem
bispo de Roma. A cerimônia realizou-se
no palácio imperial, em presença de poucos funcionários. O povo de Roma não quis reconhecer o antipapa
nem freqüentava as igrejas em que pontificava.
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