E PONTIFÍCIO ATENEU REGINA APOSTOLORUM
27 de Janeiro de 2003
Em primeiro lugar, desejo felicitar o Pontifício Ateneu "Regina Apostolorum" por ter organizado esta Assembleia. A participação de autoridades políticas e de especialistas qualificados mostra o interesse desta inciativa. O processo em ordem à Constituição Europeia constitui um facto de importância histórica, que merece ser encorajado, mas também atentamente avaliado pelas consequências que terá para o futuro da Europa.
O trabalho da Convenção
A Convenção não teve um mandato fácil.
Ela deverá encontrar uma forma de consenso sobre os modelos, os princípios
inspiradores e as modalidades de realização. Trata-se de indicar se se prefere
uma forma aproximadamente confederativa, respeitadora das prerrogativas da
soberania dos Estados, ou então um verdadeiro salto qualitativo para uma forma
de tipo federal, com todos os possíveis matizes intermediários. É sintomático
o facto de que, no debate político destes meses, mesmo entre as pessoas que
falavam de federação de Estados, houve quem o fizesse realçando a federação
e quem o fizesse sublinhando o Estado e a salvaguarda da sua soberania.
Além disso, a Convenção deverá dar uma
resposta à questão insolúvel da inserção da Carta dos direitos fundamentais
na nova estrutura dos textos fundamentais sobre os quais se assentará a nova
União.
A futura "Constituição" não nasce
do nada. Os seus fundamentos já estão consolidados no património de conceitos
e de normas dos Estados membros da União e da própria União.
Liberdade, direitos humanos, democracia e
estado de direito estão esculpidos no património institucional da União
Europeia, e encontram garantias sólidas tanto nas instituições políticas
como, sobretudo, no controlo jurídico exercido, por um lado, pelo Tribunal de
Justiça das Comunidades Europeias e, por outro - no seu mais vasto contexto do
Conselho da Europa - pelo Tribunal Europeu dos direitos do homem.
A Europa de que estamos a falar constitui um
ambicioso projecto político. Hoje, mais do que nunca, estão em jogo os próprios
caracteres fundamentais do projecto e as conotações institucionais que ele terá
no futuro próximo e menos próximo. A decisão que poderá fazer evoluir a União
Europeia para soluções de tipo federal, ou então que a levará a preferir
soluções tradicionais, de cooperação diplomática entre Estados soberanos,
unidos por um ténue vínculo confederativo, é demasiado comprometedora.
Além disso, os trabalhos da Convenção estão
estritamente ligados à dinâmica do alargamento da União Europeia. O
alargamento aos países da Europa Central e Oriental tem sido objecto de uma
escolha política específica, e é destinado a verificar-se num espaço de
tempo bastante amplo, a partir de 2004. O primeiro efeito será a extensão das
instituições de integração a uma dimensão continental, pan-europeia. A
Comunidade nasceu de um pequeno grupo de democracias livres do Ocidente; a União
abre-se às novas democracias, que se libertaram do totalitarismo no final dos
anos 80, e forma com elas uma construção complexa, dotada de grandes ambições
e fundamentada sobre outros valores compartilhados, codificados nos seus actos
normativos institutivos e nas constituições dos Estados membros. Na primeira
fase, o problema relativo aos futuros novos membros é o da assimilação de
todo o enorme património normativo acumulado pela Comunidade em meio século, o
chamado acquis communautaire.
De qualquer forma, é importante ter sempre
presente o facto de que a Convenção constitui um organismo chamado a
apresentar um texto que, em seguida, será levado ao Conselho Europeu, o órgão
dos Chefes de Estado e de Governo. Ou seja, a Convenção não é uma assembleia
constituinte. Até agora, o processo de integração europeia tem progredido por
iniciativa dos governos, com negociações de conferências intergovernamentais
que apresentaram novos tratados, que os Estados membros se encarregam de
ratificar. Os trabalhos da Convenção não se afastam desta elaboração.
Não é por acaso que o esboço apresentado
pelo Presidente Giscard d'Estaing é intitulado como "Tratado
constitucional". Por conseguinte, não se trata de uma Constituição em
sentido próprio (a União não é um Estado), mas do resultado de um
persistente "pacto" entre Estados que, na origem, eram soberanos e que
quiseram compartilhar a sua soberania, dando vida a um modelo institucional
novo, de tipo "supernacional", encetando e procurando completar uma
progressiva transferência de poderes e competências particulares para a
Comunidade/União. Fala-se sempre de "constituição", mas na dialéctica
entre os Estados, ainda se continua a realçar sempre o "tratado",
fonte do direito internacional: o elemento constitucional é, por assim
dizer, desclassificado para uma posição auxiliar, secundária.
A arquitectura institucional europeia
A peculiar natureza da Europa comunitária faz
com que à União não sejam aplicáveis os modelos constitucionais dos Estados.
A União é uma realidade institucional original, que parte dos Estados mas não
parece destinada a chegar a um Estado ou superestado. A progressiva integração
entre os Estados membros faz da Comunidade/União uma entidade em contínuo
processo de formação.
Não é por acaso que à construção europeia
se aplica, tradicionalmente, a metáfora da arquitectura, com a sua linguagem. A
Europa económica, monetária e depois política é uma espécie de campo de
trabalho permanente. As suas instituições transformam a sua fisionomia de
maneira gradual, evoluindo de modo contínuo. Originariamente, o Parlamento
Europeu era dotado do mero poder de exprimir pareceres (obrigatórios, mas não
vinculativos) sobre actos de alcance económico. Hoje, afirma-se como um órgão
mais propriamente político, em numerosas e relevantes matérias, e é chamado a
adoptar actos normativos vinculativos em decisão conjunta com o Conselho da União,
órgão de Estados, representativo dos interesses de cada um destes mesmos
Estados. Paralelamente ao crescimento do perfil do Parlamento Europeu, a evolução
das instituições viu os Estados decidirem elevar o seu nível de representação,
ou seja, de governos.
Daqui, a instituição do Conselho Europeu,
que levou à "verticalização" do processo decisório, investindo
directamente as máximas responsabilidades de governo nas passagens cruciais da
integração: eleição por sufrágio universal e directo do Parlamento
Europeu, adopção da moeda única, extensão dos tratados à política exterior
e de segurança comum à cooperação policial e judicial. Por fim, no esquema
institucional, a Comissão permanece central, como um verdadeiro e próprio
motor da integração e garantia da salvaguarda do interesse comunitário.
A União deverá alargar o alcance do princípio
de subsidiariedade, para evitar conflitos, procurar verdadeiramente os
interesses dos povos dos Estados membros e atenuar os ricos de degenerações
centralistas e burocráticas, como o mais amplo reconhecimento da iniciativa autónoma
dos cidadãos e das suas associações.
O desafio central consiste na procura de equilíbrios
interinstitucionais eficazes e válidos. Com efeito, as instituições reflectem
a coexistência, na União, de diversas almas e de diferentes modelos
inspiradores. Até agora, o processo de integração foi o resultado dos
impulsos e dos contra-impulsos entre os modelos federalista, intergovernativo e
comunitário (com todas as relativas variantes e matizes intermediários, que
periodicamente vêm à superfície). A Convenção é chamada a dar respostas
clarividentes acerca do novo paradigma a que se deseja dar vida. Deve adoptar-se
um "Tratado constitucional", mas de que coisa? O que é que querem os
"constituintes"?
Um superestado, ou então uma federação
segundo o modelo dos Estados Unidos da América, ou ainda uma federação de
"Estados soberanos", ou por fim uma confederação branda, em que os
Estados conservem amplas conotações das suas próprias soberanias?
Evidentemente, tudo depende do significado que se deseja atribuir à noção de
soberania e à latitude do conceito de "federação", ou ao
significado de "união".
Somente uma solução equilibrada destes
problemas de modelos permitirá definir os elementos institucionais da
"forma de governo" da futura União. De resto, tudo exige a consciência
de que uma grande Europa, de pelo menos 25 Estados membros, tem necessidade de
mecanismos decisórios e operativos mais rápidos, eficazes e transparentes.
Em última análise, o fulcro do desafio
representado pela necessidade de voltar a definir os equilíbrios institucionais
reside na capacidade de reflectir de maneira adequada uma Europa dos Estados e
dos povos. E, em conjunto, trata-se de construir uma clara identidade política
da União, que exteriormente se apresente como um gigante económico, e não
como um anão político.
Os valores da Europa
Sobre os trabalhos da Convenção paira o
grande tema dos fundamentos, dos valores em que a Europa quer inspirar-se. A
democracia, a liberdade e os direitos do homem fazem parte do património genético
de uma Comunidade/União, que nasceu para oferecer
respostas a um continente duramente provado pelos totalitarismos nazista e
comunista.
A Igreja, justamente, realçou que a herança
cristã era considerada essencial e imprescindível por alguns dos grandes pais
fundadores, como Robert Schuman, Konrad Adenauer e Alcide De Gasperi. Na sua carta
aos Bispos italianos, no dia 6 de Janeiro de 1984, o Santo Padre afirmou:
"Não é significativo que entre os principais promotores da unificação
do continente, haja homens animados por uma profunda fé cristã? Não foi,
porventura, nos valores evangélicos da liberdade e da solidariedade que eles
encontraram a inspiração para o seu corajoso projecto? De resto, um projecto
que justamente lhes parecia realista, apesar das dificuldades previsíveis, pela
clara consciência que eles tinham do papel desempenhado pelo cristianismo na
formação e no desenvolvimento das culturas presentes nos vários países do
continente". E, em seguida, no discurso à Assembleia pré-sinodal,
de 31 de Outubro de 1991, o Papa João Paulo II recordava: "A Europa,
afirma Goethe, nasceu em peregrinação, e o cristianismo é a sua língua
materna".
Agrada-me recordar as palavras que o Presidente da República Italiana, Sua Ex.cia o Senhor Carlo Azeglio Ciampi pronunciou, por ocasião do encontro com o Presidente da República Eslovaca, Sua Ex.cia o Senhor Rudolf Schuster, em Bratislava, no dia 9 de Julho de 2001: "Nós derivamos de uma única herança humanista e cristã".
Agrada-me recordar as palavras que o Presidente da República Italiana, Sua Ex.cia o Senhor Carlo Azeglio Ciampi pronunciou, por ocasião do encontro com o Presidente da República Eslovaca, Sua Ex.cia o Senhor Rudolf Schuster, em Bratislava, no dia 9 de Julho de 2001: "Nós derivamos de uma única herança humanista e cristã".
Toda a história europeia e a progressiva
tomada de consciência de uma identidade comum trazem consigo a marca do
cristianismo, realçando a estreita correlação entre a Igreja e a Europa.
Tanto no Ocidente como no Leste, que se prepara para enriquecer a União, a
Igreja sente que tem uma responsabilidade na definição do futuro da Europa e
julga que pode oferecer uma contribuição significativa para a elaboração das
novas formas institucionais que estão a ser preparadas.
A cultura europeia mergulha as suas raízes na
civilização greco-romana, beneficiou dos contributos do judaísmo e do islão,
mas foi assinalada principalmente pelo selo do cristianismo durante dois milénios,
um selo que representa a especificidade da Europa. Hoje, esta herança não pode
ser negada. Reconhecê-la não significa contradizer o princípio da laicidade,
mas interpretá-la de modo correcto. Sem dúvida, as tarefas da Igreja são
diferentes das funções do Estado, mas a Igreja não pode ser separada da
sociedade. Hoje o princípio da distinção entre espiritual e temporal,
desligado dos contextos ideológicos, assume uma conotação totalmente nova e
deve ser aplicado ao serviço do bem comum dos povos europeus. Não é aceitável
que, numa época de abertura e de respeito por todas as convicções humanas, se
manifeste uma tendência discriminatória em relação à religião. Uma vez que
a União Europeia dialoga com os partidos políticos, os sindicatos e os
representantes das várias religiões, seria incompreensível se a mesma atitude
não fosse adoptada em relação à religião. Sobretudo, não se pode ignorar a
dimensão transcendental que penetra o coração de cada ser humano, antes e
para além de toda a sua consciência. A indiferença em relação a esta dimensão
só pode provocar efeitos trágicos, como a história do continente europeu
experimentou dolorosamente.
Considerando a especificidade do campo
religioso e a contribuição que, durante dois milénios, o cristianismo
ofereceu de maneira constante aos povos, formulo votos a fim de que a União
Europeia reconheça a identidade e a organização das Igrejas, favorecendo
assim a procura das suas finalidades religiosas, segundo a disposição que elas
livremente se propõem. Em conformidade com as decisões já tomadas pelos
Estados membros da União, com a Declaração n. 11, anexa ao Tratado de Amsterdão,
no texto de natureza constitucional actualmente em preparação, dever-se-á
mencionar de forma clarividente o facto de que a União Europeia respeita e não
prejudica o estatuto de que, em virtude do direito nacional, beneficiam as
Igrejas e Comunidades religiosas no interior dos Estados membros, no respeito
dos direitos humanos fundamentais. Além disso, a União Europeia dará
testemunho da qualidade da sua cultura milenária, sobretudo se souber
reconhecer ao direito que consagra a liberdade de religião a sua verdadeira
dimensão, que é individual e, ao mesmo tempo, colectiva e institucional.
Somente na solidariedade e na colaboração eficaz entre todas os componentes da
sociedade poderá progredir uma Europa cada vez mais hospitaleira, uma Europa
que sabe respeitar cada pessoa, independentemente do seu lugar de proveniência,
tornando-se a casa onde cada um pode crescer.
As Igrejas devem poder desenvolver-se no campo
que lhes é próprio, enquanto acompanham um progresso social autêntico.
Valorizando a contribuição das Igrejas para o bem comum, a União Europeia
poderá estabelecer com elas um diálogo estruturado, que certamente favorecerá
e consolidará o progresso da própria União.
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