Especial
"Não disparem. Sou Che.
Valho mais vivo do que morto." Há quarenta anos, no
dia 8 de outubro de 1967, essa frase foi gritada por um guerrilheiro
maltrapilho e sujo metido em uma grota nos confins da Bolívia.
Nunca mais foi lembrada. Seu esquecimento deve-se ao fato
de que o pedido de misericórdia, o apelo desesperado
pela própria vida e o reconhecimento sem disfarce da
derrota não combinam com a aura mitológica criada
em torno de tudo o que se refere à vida e à
morte de Ernesto Guevara Lynch de la Serna, argentino de Rosário,
o Che, que antes, para os companheiros, era apenas "el chancho",
o porco, porque não gostava de banho e "tinha cheiro
de rim fervido".
Diogo Schelp e Duda Teixeira
Foto Antonio Nunez Jimenez/AFP |
ÀS
VÉSPERAS DO GOLPE Che em Caballete de Casas, em Cuba, em 1958: exceto na revolução cubana, sua vida foi uma seqüência de fracassos. Como guerrilheiro, foi derrotado no Congo e na Bolívia |
Por suas convicções ideológicas, Che tem seu lugar assegurado na mesma lata de lixo onde a história já arremessou há tempos outros teóricos e práticos do comunismo, como Lenin, Stalin, Trotsky, Mao e Fidel Castro. Entre a captura e a execução de Che na Bolívia, passaram-se 24 horas. Nesse período, o governo boliviano e os americanos da CIA que ajudaram na operação decidiram entre si o destino de Guevara. Execução sumária? Não para os padrões de Che. Centenas de homens que ele fuzilou em Cuba tiveram sua sorte selada em ritos sumários cujas deliberações muitas vezes não passavam de dez minutos.
VEJA conversou com historiadores, biógrafos, antigos companheiros de Che na guerrilha e no governo cubano na tentativa de entender como o rosto de um apologista da violência, voluntarioso e autoritário, foi parar no biquíni de Gisele Bündchen, no braço de Maradona, na barriga de Mike Tyson, em pôsteres e camisetas. Seu retrato clássico – feito pelo fotógrafo cubano Alberto Korda em 1960 – é a fotografia mais reproduzida de todos os tempos. O mito é particularmente enganoso por se sustentar no avesso do que o homem foi, pensou e realizou durante sua existência. Incapaz de compreender a vida em uma sociedade aberta e sempre disposto a eliminar a tiros os adversários – mesmo os que vestiam a mesma farda que ele –, Che é, paradoxalmente, visto como um símbolo da luta pela liberdade. Guevara é responsável direto pela morte de 49 jovens inexperientes recrutas que faziam o serviço militar obrigatório na Bolívia. Eles foram mobilizados para defender a soberania de sua pátria e expulsar os invasores cubanos, sob cujo fogo pereceram. Tendo ajudado a estabelecer um sistema de penúria em Cuba, Che agora é apresentado como um símbolo de justiça social. Politicamente dogmático, aferrado com unhas e dentes à rigidez do marxismo-leninismo em sua vertente mais totalitária, passa por livre-pensador.
O regime policialesco de Fidel Castro não permite que aqueles que conviveram com Che e permanecem em Cuba possam ir além da cinzenta ladainha oficial. Por isso, apesar do rancor que pode apimentar suas lembranças, os exilados cubanos são vozes de maior credibilidade. O movimento que derrubou o ditador Fulgencio Batista, em 1959, não foi uma ação de comunistas, como pretende Fidel Castro. Boa parte da liderança revolucionária e dos comandantes guerrilheiros tinha por objetivo a instauração da democracia em Cuba. Mas foi surpreendida por um golpe comunista dentro da revolução. Acabaram presos, fuzilados ou deportados. Desde o início, Che representou a linha dura pró-soviética, ao lado do irmão de Fidel, Raul Castro. Na versão mitológica, Che era dono de um talento militar excepcional. Seus ex-companheiros, no entanto, lembram-se dele como um comandante imprudente, irascível, rápido em ordenar execuções e mais rápido ainda em liderar seus camaradas para a morte, em guerras sem futuro no Congo e na Bolívia.
The New York Times |
A
"MALDIÇÃO DE SATURNO" Com Fidel em Havana, em 1959: "Que esta revolução não devore seus próprios filhos", dizia Fidel. Ele fez o contrário. As últimas transmissões de rádio de Che na Bolívia foram ignoradas em Havana |
Huber Matos, que lutou sob as ordens do argentino em Cuba, falou a VEJA sobre o fracasso de Che como comandante: "A luta foi difícil na primavera de 1958. A frente de comportamento mais desastroso foi a de Che. Mas isso não o afetou, porque era o favorito de Fidel, que nos impedia de discutir abertamente o trabalho pífio de seu protegido como guerrilheiro". Pouco depois do triunfo da guerrilha, ao perceber os primeiros sinais de tirania, Huber renunciou a seu posto no governo revolucionário e informou que voltaria a ser professor. Preso dois dias depois, passou vinte anos na cadeia. Vive hoje em Miami. À moda soviética, sua imagem foi removida das fotos feitas durante a entrada solene em Havana, em que aparecia ao lado de Fidel e Camilo Cienfuegos, outro comandante não comunista desaparecido em circunstâncias misteriosas nos primórdios da revolução.
Nomeado comandante da fortaleza La Cabaña, para onde eram levados presos políticos, Che Guevara a converteu em campo de extermínio. Nos seis meses sob seu comando, duas centenas de desafetos foram fuzilados, sendo que apenas uma minoria era formada por torturadores e outros agentes violentos do regime de Batista. A maioria era apenas gente incômoda.
Napoleon Vilaboa, membro do Movimento 26 de Julho e assessor de Che em La Cabaña, conta agora ter levado ao gabinete do chefe um detido chamado José Castaño, oficial de inteligência do Exército de Batista. Sobre Castaño não pesava nenhuma acusação que pudesse produzir uma sentença de morte. Fidel chegou a ligar para Che para depor a favor de Castaño. Tarde demais. Enquanto dava voltas em torno de sua mesa e da cadeira onde estava o militar, Che sacou a pistola 45 e o matou ali mesmo com balaços na cabeça. Em outra ocasião, Che foi procurado por uma mãe desesperada, que implorou pela soltura do filho, um menino de 15 anos preso por pichar muros com inscrições contra Fidel. Um soldado informou a Che que o jovem seria fuzilado dali a alguns dias. O comandante, então, ordenou que fosse executado imediatamente, "para que a senhora não passasse pela angústia de uma espera mais longa".
Em seu diário da campanha em Sierra Maestra, Che antecipa o seu comportamento em La Cabaña. Ele descreve com naturalidade como executou Eutímio Guerra, um rebelde acusado de colaborar com os soldados de Batista: "Acabei com o problema dando-lhe um tiro com uma pistola calibre 32 no lado direito do crânio, com o orifício de saída no lobo temporal direito. Ele arquejou um pouco e estava morto. Seus bens agora me pertenciam". Em outro momento, Che decidiu executar dois guerrilheiros acusados de ser informantes de Batista. Ele disse: "Essa gente, como é colaboradora da ditadura, tem de ser castigada com a morte". Como não havia provas contra a dupla, os outros rebeldes presentes se opuseram à decisão de Che. Sem lhes dar ouvidos, ele executou os dois com a própria pistola. Essa frieza e a crueldade sumiram atrás da moldura romântica que lhe emprestaram, construída pelos mesmos ideólogos que atribuíram a ele a frase famosa – "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás". Frase criada pela propaganda esquerdista.
Como o jovem aventureiro que excursionou de motocicleta pelas Américas se tornou um assassino cruel e maníaco? O jornalista americano Jon Lee Anderson, autor da mais completa biografia de Che, escreveu que ele era um fatalista – e esse fatalismo aguçou-se depois que se juntou aos guerrilheiros cubanos. "Para ele, a realidade era apenas uma questão de preto e branco. Despertava toda manhã com a perspectiva de matar ou morrer pela causa", afirma Anderson.
Ernesto Guevara Lynch de la Serna nasceu em 14 de maio de 1928, em uma família de esquerdistas ricos na Argentina. Sofreu de asma a vida inteira. Antes de se formar em medicina, profissão que nunca exerceu de fato, viajou pela América do Sul durante oito meses. Depois de terminada a faculdade, saiu da Argentina para nunca mais voltar. Encontrou-se com Fidel Castro no México, em 1955, onde aprendeu técnicas de guerrilha. No ano seguinte, participou do desembarque em Cuba do pequeno contingente de revolucionários. Depois de dois anos de combates na Sierra Maestra, Fidel tomou o poder em Havana. Che ocupou-se primeiro dos fuzilamentos e, depois, da economia, assunto do qual nada entendia. José Illan, que foi vice-ministro de Finanças antes de fugir de Cuba, contou a VEJA que o argentino "desprezava os técnicos e tratava a nós, os jovens cubanos, com prepotência". No comando do Banco Central e depois do Ministério da Indústria, Che começou a nacionalizar a indústria e foi o principal defensor do controle estatal das fábricas. "Che era um utópico que acreditava que as coisas podiam ser feitas usando-se apenas a força de vontade", diz o historiador Pedro Corzo, do Instituto da Memória Histórica Cubana, em Miami. Como resultado de sua "força de vontade", a produção agrícola caiu pela metade e a indústria açucareira, o principal produto de exportação de Cuba, entrou em colapso. Em 1963, em estado de penúria, a ilha passou a viver da mesada enviada pela então União Soviética.
AFP |
CASADO
COM SI PRÓPRIO Che com sua segunda mulher, Aleida March, no dia de seu casamento, em Havana, em 1959. Elas não podiam competir com o "chamado da aventura" |
Não havia mais o que Che
pudesse fazer em Cuba. Era ministro da Indústria, mas
divergia de Fidel em questões relativas ao desenvolvimento
econômico. De maneira simplista, ele acreditava que
incentivos morais tinham maiores probabilidades de estimular
o trabalho. Che também se tornou crítico feroz
da União Soviética, da qual o regime cubano
dependia para sobreviver. Não por discordar do Kremlin,
mas porque julgava os soviéticos tímidos na
promoção da revolução armada no
Terceiro Mundo. Para se livrar dele, Fidel o mandou como delegado
à Assembléia-Geral das Nações
Unidas em 1964. No ano seguinte, Che foi secretamente combater
no Congo, à frente de soldados cubanos. Ali, paralisado
por incompreensíveis rivalidades tribais, derrotado
no campo de batalha e abatido pela diarréia, Che propôs
a seus comandados lutar até a morte. Mas foi demovido
do propósito pela soldadesca, que não aceitou
o sacrifício numa guerra sem sentido.
Daí em diante o argentino
tornou-se uma figura patética. Em Havana, Fidel divulgara
a carta em que ele renunciava à cidadania cubana e
anunciava sua disposição de levar a guerra revolucionária
a outras plagas. Pego de surpresa pela leitura prematura do
documento, Che ficou no limbo, sem ter para onde voltar. "Sua
vida foi uma seqüência de fracassos", disse a VEJA
o historiador cubano Jaime Suchlicki, da Universidade de Miami.
"Como médico, nunca exerceu a profissão. Como
ministro e embaixador, não conseguiu o que queria.
Como guerrilheiro, foi eficiente apenas em matar por causas
sem futuro." Na falta de opções, Che escolheu
a Bolívia para sua nova aventura guerrilheira. Ele
lutaria em território montanhoso e inóspito,
imerso na selva, sem falar o dialeto indígena dos camponeses
bolivianos. O plano original era adentrar, pela fronteira,
a província argentina de Salta. Mas um contigente exploratório
foi aniquilado rapidamente pelo exército daquele país.
A missão boliviana era, de todos os pontos de vista,
suicida. Ainda assim, Fidel a apoiou, a ponto de designar
alguns soldados de seu exército para o destacamento
guerrilheiro. O ditador cubano também equipou e financiou
a expedição, com a qual manteve contato até
que seu fracasso se tornou evidente.
Além da falta de apoio
do povo boliviano, que tratou os cubanos chefiados por Che
como um bando de salteadores, a expedição fracassou
também pela traição do Partido Comunista
Boliviano. VEJA perguntou a um de seus mais altos dirigentes
dos anos 60, Juan Coronel Quiroga: "O PCB traiu Che Guevara?".
Resposta de Quiroga: "Sim". A explicação? "Nosso
partido era afinado com Moscou, onde a estratégia de
abrir focos de guerrilha como a de Che estava há muito
desacreditada." Quiroga era amigo pessoal do então
ministro da Defesa da Bolívia e conseguiu que as mãos
do cadáver de Che Guevara fossem decepadas, mantidas
em formol e entregues a ele. "Por anos guardei as mãos
de Che debaixo da minha cama em um grande pote de vidro. Um
dia meu filho deparou com aquilo e quase entrou em pânico",
conta Quiroga. Anos mais tarde, coube a Quiroga a missão
de entregar o lúgubre pote com as mãos de Guevara
à Embaixada de Cuba em Moscou.
A morte de Che foi central para
a estabilização do regime cubano nos anos 60,
de acordo com o polonês naturalizado americano Tad Szulc,
na sua celebrada biografia de Fidel. O fim do guerrilheiro
argentino ajudou o ditador a pacificar suas relações
com Moscou e ainda lhe forneceu um ícone de aceitação
mais ampla que a própria revolução. O
esforço de construção do mito foi facilitado
por vários fatores. Quando morreu, Che era uma celebridade
internacional. Boa-pinta, saía ótimo nas fotografias.
A foto do pôster que enfeita quartos de milhões
de jovens foi tirada num funeral em Havana, ao qual compareceram
o filósofo francês Jean-Paul Sartre – que
exaltou Che como "o mais completo ser humano de nossa era"
– e sua mulher, a escritora Simone de Beauvoir. A foto
de 1960 só ganhou divulgação mundial
sete anos depois, nas páginas da revista Paris Match.
Dois meses mais tarde, Che foi morto na selva boliviana e
Fidel fez um comício à frente de uma enorme
reprodução da imagem, que preenchia toda a fachada
de um prédio público cubano. Nascia o pôster.
Três fatos ajudaram a
consolidar o mito. O primeiro foi a morte prematura de Che,
que eternizou sua imagem jovem. Aos 39 anos, ele estava longe
de ser um adolescente quando foi abatido, mas a pinta de galã
lhe garantia um aspecto juvenil. O fim precoce também
o salvou de ser associado à agonia do comunismo. A
decadência física e política de Fidel
Castro, desmoralizado pela responsabilidade no isolamento
e no atraso econômico que afligem o povo cubano, dá
uma idéia do que poderia ter acontecido com Che, que
era apenas dois anos mais jovem que o ditador.
Reuters |
PARA
IMPRESSIONAR "IKE" Guevara e Fidel em jogo-treino de golfe para disputar uma partida, que nunca houve, com Eisenhower em Washington: "Fidel ganhou, mas Che o deixou ganhar" |
O segundo fato foi a ajuda involuntária
de seus algozes. Preocupados em reunir provas convincentes
de que o guerrilheiro célebre estava morto, os militares
bolivianos mandaram lavar o corpo e aparar e pentear sua barba
e seu cabelo. Também resolveram trocar sua roupa imunda.
Tudo isso para poder tirar fotos em que ele fosse facilmente
identificado. O resultado é um retrato com espantosa
semelhança com as pinturas barrocas do Cristo morto
de expressão beatificada. A terceira contribuição
recebida pelos esquerdistas na construção do
mito veio do contexto histórico. Che morreu às
vésperas dos grandes protestos em defesa dos direitos
civis, da agitação dos movimentos estudantis
e da revolução de costumes da contracultura
– turbulências que marcaram o ano de 1968. Era
um personagem perfeito para ser símbolo da juventude
de então, que se definia pela "determinação
exacerbada e narcisista de conseguir tudo aqui e agora", como
escreveu o mexicano Jorge Castañeda, em sua biografia
de Che. A história, no entanto, mostra que o homem
era muito diferente do mito. Mas quem resiste? Neste mês,
nos Estados Unidos, o cubano Gustavo Villoldo, chefe da equipe
da CIA que participou da captura do guerrilheiro, vai leiloar
uma mecha de cabelo de Che.
Se houve um ganhador da Guerra
Fria, foi Che Guevara. Ele morreu e foi santificado antes
que seu narcisismo suicida e os crimes que decorreram dele
pudessem ser julgados com distanciamento, sob uma luz mais
civilizada, que faria aflorar sua brutalidade com nitidez.
Pobre Fidel Castro. Enquanto Che foi cristalizado na foto
hipnótica de Alberto Korda, ele próprio, o supremo
comandante, aparece cada dia mais roto, macilento, caduco,
enquanto se desmancha lentamente dentro de um ridículo
agasalho esportivo diante das lentes das câmeras da
televisão estatal cubana. O método de luta política
que Guevara adotou já era errado em seu tempo. No rastro
de suas concepções de revolução
pela revolução, a América Latina foi
lançada em um banho de sangue e uma onda de destruição
ainda não inteiramente avaliada e, pior, não
totalmente assentada. O mito em torno de Che constitui-se
numa muralha que impediu até agora a correta observação
de alguns dos mais desastrosos eventos da história
contemporânea das Américas. Está passando
da hora de essa muralha cair.
A
FRASE MAIS FAMOSA ATRIBUÍDA A GUEVARA É...
...OUTRAS
MENOS CONHECIDAS REVELAM SUA REAL PERSONALIDADE: "Há que endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura."
Discurso na Assembléia-Geral da ONU, em 11 de dezembro de 1964 Revista cubana Tricontinental, em maio de 1967 |
O mundo tomou outro rumo
A ideologia de Mao Tsé-tung, que Guevara citava como modelo de comunismo, foi sepultada pelos chineses. COMUNISMO Depois da queda do Muro de Berlim, a ideologia será lembrada sobretudo como a responsável pela morte de 100 milhões de pessoas. VIETNÃ Na frase famosa, Guevara propôs criar "dois, três, muitos Vietnãs". Acertou. A globalização da economia está criando Vietnãs pelo mundo – países adeptos da economia de mercado, com rápido crescimento econômico e aliados dos Estados Unidos. |
"A ordem de execução
veio pelo rádio"
Felix Rodríguez
foi uma das últimas pessoas a conversar com Che
Guevara. Mais do que isso, foi ele quem recebeu e transmitiu
a ordem para que o guerrilheiro
fosse executado. Cubano exilado nos Estados Unidos,
ele era o operador de rádio enviado à
Bolívia pela CIA para auxiliar na caçada
e, também, para ajudar a identificar
Guevara. Veterano da fracassada invasão da Baía
dos Porcos, em 1961, Rodríguez vive hoje em Miami,
aos 66 anos. Ele falou ao repórter Duda Teixeira.
COMO CHEGOU
A ORDEM PARA MATAR CHE?
As instruções que recebi nos Estados Unidos eram para poupar sua vida. A CIA sabia da divergência de idéias entre Che e Fidel e acreditava que, a longo prazo, ele poderia cooperar com a agência. A ordem para sua execução veio por rádio, de uma alta autoridade boliviana. Era uma mensagem em código: "500, 600". O primeiro número, 500, significava Guevara. O segundo, que ele deveria ser morto. Tentei em vão convencer os militares bolivianos a permitir que ele fosse levado para ser interrogado no Panamá. Eles negaram meu pedido e me deram um prazo. Eu deveria entregar o corpo de Guevara até as 2 horas da tarde. Perto das 11h30, uma senhora aproximou-se de mim e perguntou quando iríamos matá-lo, pois ouvira no rádio que Che havia morrido em combate. Naquele momento compreendi que a decisão de executá-lo era irrevogável.
COMO FOI
SUA ÚLTIMA CONVERSA COM ELE?
Fui até o local de seu cativeiro e disse a ele que lamentava, mas eram ordens superiores. Che ficou branco como um papel. "É melhor assim. Eu nunca deveria ter sido capturado vivo", falou. Tirou o cachimbo da boca e me pediu para que o desse a um dos soldados. Ofereci-me para transmitir mensagens à sua família. "Diga a Fidel que esse fracasso não significa o fim da revolução, que logo ela triunfará em alguma parte da América Latina", ele falou em tom sarcástico. Aí lembrou da esposa. "Diga a minha senhora que se case outra vez e trate de ser feliz." Foram suas últimas palavras. Apertou a minha mão e me deu um abraço, como se pensasse que eu seria o carrasco. Saí dali e avisei a um tenente armado com uma carabina M2, automática, que a ordem já tinha sido dada. Recomendei a ele que atirasse da barba para baixo, porque se supunha que Che havia morrido em combate. Eram 13h10 quando escutei o barulho de tiros. Che Guevara tinha sido morto.
COMO FOI
O SEU PRIMEIRO CONTATO COM CHE GUEVARA?
Cheguei a La Higuera de helicóptero em 9 de outubro, um dia depois da captura de Che Guevara. Eu o encontrei com os pés e as mãos amarrados, ao lado dos corpos de dois cubanos. Sangrava de uma ferida na perna. Era um homem totalmente arrasado. Parecia um mendigo.
COMO FORAM
SUAS CONVERSAS COM CHE?
Nós nos tratamos com respeito. Eu o chamava de comandante. Falamos de Cuba e de outras coisas, mas ele permanecia calado quando as perguntas eram de interesse estratégico. Houve momentos em que não consegui prestar atenção ao que ele dizia. Ao olhar aquele homem derrotado, vinha-me à mente sua imagem no passado, sempre altiva e arrogante.
COMO FORAM
AS RELAÇÕES DE CHE COM A POPULAÇÃO
NA BOLÍVIA?
Para sobreviver, é essencial que uma força guerrilheira conte com o apoio da população local. A aventura de Che na Bolívia foi um caso único em que uma guerrilha não conseguiu recrutar um único morador da área onde atuou. Só um agricultor ganhou a confiança dos guerrilheiros, e mesmo esse acabou por passar informações que permitiram ao Exército armar uma emboscada. Os poucos bolivianos que participaram da guerrilha eram dissidentes do Partido Comunista. Nenhum camponês.
POR QUE
O SENHOR FOI ENVIADO À BOLÍVIA?
O Exército boliviano estava totalmente despreparado para enfrentar uma guerrilha. A maior parte dos soldados trabalhava na construção de estradas e provavelmente jamais dera um tiro de fuzil. Nos primeiros embates, os guerrilheiros aprisionavam os soldados, tiravam suas roupas e os soltavam. Foi então que o governo boliviano pediu ajuda aos Estados Unidos. |
Limparam Che para a foto
No dia de sua morte, amarrado
ao esqui de um helicóptero militar, Che Guevara
foi levado do local da execução para um
vilarejo chamado Vallegrande. A brasileira Helle Alves,
repórter, e o fotógrafo Antonio Moura,
então trabalhando para o Diário da
Noite, de São Paulo, viram a chegada do corpo,
que foi levado para a lavanderia do hospital local (acima).
Ali, Moura foi o único jornalista a fotografar
o corpo de Guevara ainda sujo, vestido de trapos e calçado
com o que sobrou de uma botina artesanal de couro (abaixo).
Moura conseguiu fotografar o corpo antes da limpeza
e da arrumação. "Che usava um calço
em um dos calcanhares, provavelmente para corrigir uma
diferença de tamanho entre uma perna e outra",
lembra Helle. Ela contou pelo menos dez marcas de tiro
no corpo do argentino. "Os moradores tinham raiva dele
e invadiram a lavanderia, mas, quando viram o corpo,
passaram a dizer que ele parecia Jesus Cristo." Começara
o mito.
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