Publicado 2011/02/04
Autor: Gaudium Press
Secção: Mundo
Autor: Gaudium Press
Secção: Mundo
Cidade do Vaticano (Sexta-feira, 04-02-2011, Gaudium Press)
O que distingue uma universidade católica das demais instituições de
ensino? Qual o papel do Magistério pontifício, na Igreja e na sociedade
civil? A moral cristã está em crise? O secretário da Congregação para a
Educação Católica, arcebispo Dom Jean-Louis Bruguès esclarece para os
leitores estas e outras questões da atualidade.
O cardeal Zenon Grocholewski
recordou recentemente a necessidade das universidades católicas
conservarem sua própria identidade. Poderia expor-nos as dificuldades
que elas enfrentam para manter suas características em um mundo
secularizado?
Dom Bruguès - Com frequência,
pergunto-me qual é atualmente o primeiro desafio, ou o desafio mais
importante, lançado ao ensino católico, tanto superior, nas
universidades, quanto nas demais escolas. E respondo: vivemos em
sociedades pluralistas. Pluralistas do ponto de vista cultural e
religioso, e quanto mais se manifesta esse pluralismo, mais cada um de
nós se volta para sua identidade: "Quem sou eu no meio de todos os
outros?". A questão da identidade é pois, mais premente, mais relevante
hoje do que há vinte ou mesmo quarenta anos.
Portanto, nossas instituições têm diante
de si uma escolha. Antes de tudo é necessário dizer que a maior parte
delas goza de boa reputação, por sua excelência em matéria de formação,
do acompanhamento pessoal, do nível científico atingido. As escolas e
universidades católicas são apreciadas, um pouco por toda parte, no
mundo inteiro, e isso é um motivo de ufania para nossa Congregação. Se
elas, entretanto não visam senão a excelência, surge logo a pergunta: "O
que diferencia uma escola ou universidade católica de outras escolas?".
Não se trata, portanto, de conservar a
identidade, mas de reencontrá-la nesse novo contexto. No fundo, a
identidade católica é essa mescla - magnífica, mas também difícil -
entre a abertura para o universal e a confissão de uma Fé particular,
que é a Fé Católica.
Segundo a Constituição
apostólica "Ex Corde Ecclesiæ", as atitudes e os princípios católicos
devem impregnar toda a vida das universidades católicas...
Dom Bruguès - Isso varia muito
de acordo com os países. Diria eu que há dois pontos nos quais a
identidade católica se manifesta com predileção.
O primeiro é o do ensino. Desejamos que
todas as universidades católicas - nas quais ninguém é obrigado a
matricular-se - deem de forma obrigatória a todos os seus alunos uma
formação em antropologia cristã, em ética cristã e uma pequena iniciação
à teologia. Não para forçá-los a se tornarem católicos - eles não se
deixariam forçar -, mas para dizer-lhes: "Temos uma tradição, uma visão
do mundo, da sociedade, da História, e a comunicamos a vocês. São livres
para a aproveitarem como lhes parecer melhor". Respeitamos, portanto, a
liberdade de consciência.
Há um segundo ponto, o qual eu
denominaria de "pastoral": uma universidade católica é um local onde se
deve poder rezar, deve-se poder celebrar o mistério cristão. Portanto, é
preciso haver nela uma capela de acesso fácil e constante ao público
que assinale o centro vital e simbólico ao mesmo tempo.
Eu acrescentaria que em toda
universidade católica é necessário encontrar uma faculdade de teologia. A
iniciação à cultura cristã e à visão cristã do mundo e da sociedade
compete de modo privilegiado à faculdade de teologia, que deveria
proporcionar ensinamentos a todas as outras faculdades da universidade.
A "Ex Corde Ecclesiæ" estimula
uma íntima relação entre as atividades de uma universidade católica e a
missão evangelizadora da Igreja. Não lhe parece haver ainda, sob este
aspecto, um longo caminho a percorrer?
Dom Bruguès - Mais uma vez,
isso depende dos lugares. Não sei se devo mencionar nações, mas, afinal,
há um ano e meio viajei ao Chile, visitei cinco universidades católicas
e fiquei fascinado pela qualidade daquilo que eu via. Ou seja,
instituições que, do ponto de vista da competência profissional,
figuravam entre as melhores do país, a tal ponto que, quando se
preparava uma reforma educacional, de bom grado os ministros se dirigiam
a elas para solicitar sua opinião.
Eram também instituições nas quais a
identidade cristã estava marcada de modo imediato e simples. Chegando de
improviso a uma delas, num dia de semana, quis presidir a celebração da
Missa, sem que os alunos tivessem sido avisados. Havia 800 deles na
capela... Portanto, há lugares onde nossas universidades católicas
atingiram efetivamente uma qualidade que eu chamaria de exemplar.
Nem todas chegaram a esse grau, mas, nos
meus quase três anos de trabalho na Congregação, constato que há um
movimento geral - mais ou menos rápido, mais ou menos profundo, conforme
o lugar - rumo à reafirmação da identidade cristã nas sociedades tais
como hoje elas evoluem.
Quais são as principais qualidades que deveriam ornar o professor universitário em nossos dias?
Dom Bruguès - Veja, os docentes
de uma universidade católica não são todos católicos. Então, devemos
pedir-lhes que, no mínimo, tenham boa vontade em face da tradição
católica e, por exemplo, não a critiquem. Mas, com relação aos
professores que se apresentam como católicos, somos sensíveis não
somente ao que dizem, mas também ao que fazem. O professor católico
precisa, pois, aliar a qualidade do ensinamento transmitido à qualidade
de vida, ao testemunho de vida e à confissão de sua fé pessoal.
O "Processo de Bolonha" tem
exigido bastante atenção da Congregação para a Educação Católica nestes
últimos anos. Em que consiste esse Processo?
Dom Bruguès - O Processo de
Bolonha começou há quase dez anos e chegamos ao fim da primeira etapa,
da primeira década. Em sua origem se restringia aos países da Europa, em
número de 27, mas ao longo dos anos outras nações se interessaram por
ele, de modo que hoje são 47 os países envolvidos.
Seus objetivos são simples de enunciar
(quanto a realizá-los, já é outro problema): a padronização dos
diplomas, de tal forma que em todos os países participantes do Processo
de Bolonha - sobretudo os que assinaram a Convenção de Lisboa - os
mesmos diplomas correspondam ao mesmo nível de estudo, e os estudantes
possam, caso desejem, passar de um estabelecimento para outro, de uma
universidade para outra ou de um país para outro. A primeira preocupação
é portanto, a padronização dos diplomas, para chegar à segunda
preocupação: a fluidez ou mobilidade, tanto dos estudantes quanto dos
professores.
Pode-se dizer que, ao fim de dez anos, é
notória a mobilidade dos estudantes, embora ela pudesse ser maior. A
dos professores é mais problemática.
O que está em jogo aí para a Igreja? Quais as esperanças da Congregação a esse respeito?
Dom Bruguès - A Igreja entrou
nesse Processo não como Igreja, pois ele envolve apenas países, mas como
Estado. Pois bem, o Estado da Santa Sé ingressou nele desde o início.
Evidentemente, o proveito que esperamos tirar daí é, em primeiro lugar,
que uma cultura de qualidade caracterize nossas universidades, como deve
caracterizar as universidades dos países abrangidos. Só isso já
representa uma vantagem e um estímulo para nós.
Esperamos também, evidentemente, que os
estudantes formados em nossas universidades possam ter seus diplomas
reconhecidos em outros países. Isto implica que o Processo de Bolonha
seja concretizado por acordos de país a país. Por exemplo, a Santa Sé e a
República Francesa assinaram em dezembro de 2008 um acordo de
reconhecimento dos diplomas e dos títulos.
Há desafios especialmente notórios a destacar, para tornar efetivo esse plano?
Dom Bruguès - Estamos criando
uma consciência em nível europeu, antes de chegar a uma consciência
universal. Os estudantes entram de bom grado nesse Processo, mas os
Estados são mais reticentes. Por quê? Porque possuíam mais ou menos, até
agora, um verdadeiro monopólio dos diplomas. Ora, entrar nesse Processo
é alienar uma parte de sua soberania em matéria educativa, e isso,
evidentemente, não é fácil em países que têm - digamos assim - tradições
jacobinas.
E os dirigentes de
universidades, como correspondem às oportunidades oferecidas pelo
"Processo de Bolonha"? Como acolhem as novas perspectivas?
Dom Bruguès - Nossas
universidades caracterizam-se pela liberdade de pensamento e de
expressão. Assim, perante o Processo de Bolonha, encontramos nelas um
leque extremamente amplo de reações, desde o entusiasmo até a reserva.
Julgo que hoje a situação está mudando.
Com efeito, nossos estabelecimentos começam a perceber o interesse dessa
padronização, dessa fluidez, pois, por exemplo, a teologia - que
aparecia anteriormente, digamos, como uma ciência de sacristia -
tornou-se hoje uma ciência de interesse geral, como a medicina ou a
engenharia. Percebe-se, pois, o mérito desse Processo. Mas, podem-se
medir também as dificuldades de aplicação. É preciso, por exemplo, que
os créditos sejam os mesmos por toda parte, com o mesmo número de horas,
e isso implica revisões talvez difíceis de fazer.
Considerando encíclicas como a
"Humanae vitae", de Paulo VI, e a "Veritatis splendor", de João Paulo
II, como V. Excia. descreveria o papel do Magistério na ética das
últimas décadas?
Dom Bruguès - Precisamos
distinguir entre o papel do Magistério na Igreja e nas sociedades civis.
O que se denomina doutrina social da Igreja é, na realidade, uma
doutrina moral sobre a família, a vida econômica, política, social, e
também a cultura. A Veritatis Splendor traz uma novidade considerável,
pois é uma encíclica na qual, pela primeira vez na história da Igreja,
são tratados os fundamentos da moral.
O papel do Magistério no interior da
Igreja - apoiando-se evidentemente na palavra de Deus, mas também na lei
natural - é de propor ao Povo de Deus, bem como a todos os homens de
boa vontade, princípios gerais de conduta de vida, além de normas
concretas e particulares. Este segundo aspecto é que havia dado matéria
ao "dissentimento", ao "dissensões dos teólogos", nos anos 70-80, e a
Encíclica procura precisamente dar resposta a esse dissensus. Nas
sociedades civis - amplamente secularizadas e amiúde multiculturais,
pluralistas, do ponto de vista religioso -, eu diria que o Magistério é
quase sistematicamente criticado e questionado. Uma sociedade
secularizada é aquela que não consegue admitir Magistério algum,
sobretudo se ele é de natureza religiosa, pretendendo exprimir
princípios e normas em nome de uma referência superior ao século,
fazendo - digamos - apelo a uma transcendência, quer seja religiosa,
quer seja metafísica. Portanto, ela não criticará o Magistério apenas
por afirmar tal ou qual proposição que não lhe agrada, mas por se
pronunciar como Magistério. Isto é o aspecto crítico e inevitável.
Evidentemente, os órgãos da mídia, muitos dos quais se consideram o novo
magistério das sociedades secularizadas, serão os mais críticos em face
de qualquer magistério, em especial o religioso.
Ao mesmo tempo, porém, constato ser a
Igreja hoje muito mais interrogada do que no passado, como se ela
permanecesse uma referência nas gerações que se questionam sobre o
sentido da vida; talvez mesmo a referência, que se pronuncia a respeito
das questões fundamentais do sentido da vida.
Que relações podemos encontrar
entre o "Catecismo da Igreja Católica" e a "Veritatis splendor", na via
teológica e pastoral da Igreja?
Dom Bruguès - Uma encíclica
procura dar resposta a problemáticas limitadas. Limitadas no tempo e por
vezes no espaço. É este o caso da Veritatis splendor, dirigida,
sobretudo às opiniões correntes no meio católico anglo-saxônico.
Portanto, uma encíclica - exceto se tiver uma importância de primeiro
plano - não durará por vários séculos. Seu objetivo é de fato a
atualidade.
O catecismo é totalmente diferente: ele
visa pôr à disposição do povo de Deus, e de todos os homens interessados
na cultura cristã, o patrimônio moral acumulado ao longo dos séculos, e
mesmo dos milênios, e que engloba também o patrimônio de sabedoria da
humanidade. No fundo, o catecismo é um compendium - é este o termo que
tinha sido escolhido -, um compendium de sabedoria, não somente para os
cristãos, mas também para os não cristãos. Um catecismo deve durar muito
tempo, como foi o caso do catecismo anterior. Logo, se nele forem
introduzidas noções muito atuais, em pouco tempo ele estará
ultrapassado.
Como deveria ser abordado hoje o ensino da Teologia Moral, nos seminários e em nível pastoral?
Dom Bruguès - Penso que estamos
passando de um modelo para outro. Diz-se por vezes que a moral cristã
está em crise. Não creio tratar-se de uma crise, pois a crise assinala
um paroxismo após o qual as coisas se restabelecem. Ora, o que aqui se
denomina "crise" é na realidade um fenômeno já muito longo, de vários
decênios... Prefiro falar de ruptura.
No fim do século XVI e início do século
XVII instalou-se - primeiro na Igreja, depois nas outras confissões
cristãs, mas também mais tarde, com Kant, nas sociedades - um modelo,
denominado o modelo das morais de obrigação: "Por que proceder de tal ou
tal maneira?". "Porque isso é necessário em nome do Bem". Parece-me que
esse modelo - o qual, repito, reinou tanto na Igreja quanto nas
sociedades modernas - está desaparecendo, e andamos à procura de um
novo. Se eu retomasse expressões de Michel Foucault, diria que estamos
passando de uma ética do código para uma ética da construção de si. No
fundo, a moral é aquilo que permite ao homem aceitar-se a si mesmo,
construir-se, depois dar-se, numa sociedade mais justa e fraterna. E
creio que vivemos um período difícil e apaixonante ao mesmo tempo, pois
mudamos de modelo e, evidentemente, é preciso tempo e tato para
apreender esse novo modelo.
Portanto, eu desejaria que nos
seminários se apresentasse a moral não apenas sob o ângulo das
obrigações, mas também sob o da arte de viver, de uma estética da
existência, digamos, de uma sabedoria.
Pe. Louis Goyard, EP
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