A Igreja deve receber a ciência como realidade necessária ao bem da humanidade
Paulo Fernando Carneiro de Andrade é doutor em
Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, professor do Depto. de
Teologia e vice-decano para pós-graduação e pesquisa do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio e vice-presidente do
International Network of Societies of Catholic Theology. Artigo
publicado no ‘Jornal do Brasil’:
A questão da relação entre a
ciência e a Igreja ou, em linguagem mais teológica, entre a fé e a
razão, ocupa hoje um lugar especial.
D. Cláudio Hummes, cardeal
arcebispo de SP, afirmou em entrevista, ao descrever o perfil esperado
do novo papa, que esse ''deverá continuar o diálogo com as ciências, com
as religiões, com a sociedade, com a biotecnologia, a bioética, enfim,
com todas as áreas que estão em uma ebulição muito grande e onde há
muitas coisas sendo discutidas, onde é necessário dialogar, procurando
sempre soluções que respeitem a ética, o ser humano''.
Por sua
vez, o cardeal arcebispo do RJ, D. Eusébio Oscar Scheid, entrevistado no
dia em que embarcava com destino a Roma para participar dos funerais do
papa João Paulo II e do conclave, destacou que o próximo pontífice
deverá ser um homem interessado nas questões da ciência: ''É uma
característica que o papa que for entrar precisa ter. Se não tiver esta
característica, ele necessitará de uma boa assessoria para supri-la''.
Nem
sempre as relações entre a ciência e a Igreja foram tranqüilas. Por
vezes, uma interpretação estreita ou mesmo equivocada da fé cristã levou
à rejeição de posições científicas que depois não só demonstraram-se
como absolutamente corretas, como fizeram a própria compreensão da fé
aprofundar-se a ponto de se descobrir que o reconhecimento dessa verdade
científica em nada abalava ou chocava-se com a Revelação Bíblica.
O caso mais paradigmático é o de Galileu Galilei e das dificuldades da aceitação da teoria heliocêntrica.
Do
mesmo modo, muitas vezes a razão extrapolou seus limites, seja buscando
subordinar a si a fé, seja até mesmo pretendendo negar, em nome da
ciência, ou de certa razão filosófica, qualquer possibilidade de
transcendência.
Coube nesses casos à fé salvar a ciência, reconduzindo-a a seu campo próprio.
No
profícuo pontificado de João Paulo II, destaca-se um grande esforço de
aprofundar o diálogo entre a Igreja e as novas questões suscitadas pelas
ciências.
Como parte desse esforço pode aqui ser recordado o
reexame do caso Galileu solicitado pelo papa em 10 de novembro de 1979
em um encontro com a Academia Pontifícia de Ciência.
Para o
pontífice esse era um passo importante e necessário para remover
obstáculos, que o caso ainda provocava, para uma ''frutuosa concórdia
entre ciência e fé, Igreja e mundo''.
Passados treze anos, ao
receber os resultados de uma comissão criada para esse propósito, João
Paulo II reconheceu os erros cometidos, não só como um dever de justiça,
mas para desse caso tirar ensinamentos ''que sejam atuais em relação a
análogas situações que se apresentem hoje e que possam se apresentar no
futuro''.
Entre esses ensinamentos encontra-se o de que ''as
diversas disciplinas do saber requerem uma diversidade de métodos'' e a
de que ''o erro dos teólogos do tempo ... foi aquele de pensar que a
estrutura do mundo físico fosse, em qualquer certo modo, imposta do
sentido literal da Sagrada Escritura'' (Palácio Apostólico, Encontro com
a Academia Pontifícia de Ciência, 31 de outubro de 1992).
A
Encíclica Fides et Ratio constitui outro ponto alto desse esforço. Nessa
encíclica, de 1998, foram colocadas por João Paulo II as balizas
fundamentais para o futuro do diálogo entre a ciência e a Igreja.
Nela
o papa afirma não existir nenhuma oposição de princípio entre a fé e a
razão, que são compreendidas como sendo ''as duas asas pelas quais o
espírito humano se eleva para a contemplação da verdade''.
Na
visão católica expressa na encíclica, tanto a razão quanto a fé são
necessárias para o conhecimento da verdade e se solicitam mutuamente,
guardando, entretanto, também o seu espaço próprio de realização.
Os
conflitos que surgem entre a razão e a fé são frutos, ou de uma
insuficiente interpretação da fé, ou de uma distorção da razão, ou de
ambas as coisas, em um dado contexto ou momento histórico.
Já em
1990, na Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae sobre as
Universidades Católicas, João Paulo II havia dedicado grande atenção ao
fato de ser a Universidade Católica um lugar por excelência onde deve se
dar o diálogo entre a fé e a razão.
De um lado, elas devem
consagrar-se sem reservas à pesquisa científica, ''examinando a fundo a
realidade com os métodos próprios de cada disciplina acadêmica'' e, de
outro, deve cultivar os estudos teológicos, promovendo o diálogo entre a
fé e a razão.
O papa afirma ''Numa Universidade Católica, a
investigação compreende necessariamente: a) perseguir uma integração do
conhecimento; b) o diálogo entre a fé e a razão; c) uma preocupação
ética; e d) uma perspectiva teológica.'' (n.15).
Nas diretrizes
dadas por João Paulo II nesses dois documentos, encontram-se as duas
dimensões em que hoje, e no futuro próximo, deve se dar o diálogo entre a
razão e a fé.
A primeira dimensão é a do reconhecimento do valor
da ciência. A Igreja deve receber a ciência como realidade positiva e
necessária ao bem da humanidade, estimulando o seu desenvolvimento.
A
ciência nos permite conhecer de um modo próprio a verdade sobre o
mundo, permite também transformar o mundo, humanizando-o. A própria
tarefa evangelizadora confiada por Cristo à Igreja pode ser mais bem
exercida na medida em que conhecemos melhor o mundo e a sociedade por
meio das ciências.
A ciência, entretanto, não é neutra. Cada vez
mais, no percurso de seu desenvolvimento, abolem-se as fronteiras entre
a produção do conhecimento e a invenção, entre ciência e tecnologia.
A ciência deve ser submetida à ética. Nem tudo o que podemos fazer, devemos fazer. Há coisas que podemos, mas não devemos fazer.
É
aqui que se encontra a segunda e fundamental dimensão do diálogo entre a
fé e a razão: a tarefa de discernir, tendo por base os valores éticos
fundamentais, entre os quais se encontra a afirmação da dignidade de
cada vida humana, o que é legítimo ou não no futuro desenvolvimento das
ciências, para que essa seja um serviço à vida e não um instrumento de
dominação e morte. (Jornal do Brasil, 10/4)
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