Em
janeiro [de 2003] entrou em vigor no Brasil o novo código de Direito
Civil, que busca fortalecer a participação da família: pai e mãe na
responsabilidade conjunta de educar os filhos, quando a unidade
garantida pelo casamento se desfez. Neste momento, em que a sociedade
brasileira é convidada a refletir sobre os avanços ou retrocessos do
novo código, é conveniente conhecer o longo percurso histórico trilhado
por sucessivas gerações no contínuo esforço por garantir à família a
estabilidade inerente à união monogâmica. Esse cume de justiça – em que
mulher e filhos são considerados pessoas e, portanto, merecedores de
condições que lhes assegurem as várias faces do desenvolvimento humano –
foi arduamente conquistado, ao longo dos séculos, graças à progressiva
implantação do casamento monogâmico, que teve ainda o mérito de
instaurar a efetiva e crescente dignificação da mulher, introduzida na
Idade Média.
Mais
do que nunca é oportuno lembrar à sociedade brasileira que esse legado
em favor dos mais frágeis: a mulher e os filhos, teve como preço o
sangue e as lágrimas das gerações que nos precederam. As conquistas do
presente só podem ser avaliadas como vitórias, se não dispensarmos o
discernimento que a dimensão histórica é capaz de nos oferecer. Só então
estaremos aptos a identificar o que é avanço ou retrocesso, podendo, de
peito aberto, festejar e saborear como vitória o que representou um
autêntico benefício à sociedade. Do contrário, corremos o risco de levar
gato por lebre, e comemorar ingenuamente, como êxito, a nossa própria
derrota. Para alcançarmos esse sentido de justiça, é necessário
surpreender, com o próprio olhar, a lenta gestação da dignidade da
mulher e da família no decurso do processo histórico.
Os
primeiros passos da humanidade rumo a dignificação da mulher foram
registrados, com maior nitidez, a partir do século IX, em grande parte, à
medida que a sociedade medieval adotava a prática do casamento
monogâmico, que conferiu à mulher um novo estatuto no plano das relações
sociais: ela passou a ser o módulo essencial para a constituição da
família 1, garantindo-lhe unidade e solidez. Jorge Borges Macedo, em artigo publicado pela revista Oceanos,
estuda as causas da participação política e do crescente prestígio
social que a mulher conquistou no decorrer da Idade Média. Ele aponta o
casamento monogâmico como um dos fatores decisivos para a progressiva
intervenção feminina na Corte e nos domínios senhoriais, a partir do
século XII, em Portugal. Nas palavras do autor: “Para o mundo medieval,
os casamentos reais e senhoriais são atos políticos providos de eficácia
pública. Nesse aspecto, a mulher tornou-se, assim, a garantia de
funcionamento dos sistema político ou social, assim como a condição
básica da sua estabilidade” 2.
Para
melhor avaliarmos o salto de qualidade que representou a participação
feminina no campo político, diligentemente preservado como o espaço por
excelência do homem, basta ter em conta a condição da mulher nos séculos
em que vigorou o Império Romano. Mediante o patris potestas,
cabia ao pai decidir sobre a vida dos filhos que gostaria de alimentar.
Tal como ocorre atualmente na China, os meninos eram preferidos em
detrimento das meninas, que só gozavam de maior apreço na condição de
primeira filha.
De
acordo com Régine Pernoud, entre os celtas, germânicos e nórdicos
vigorava uma maior igualdade entre homem e mulher no interior da
família: “O regime familiar inclinava [os cônjuges] a reconhecer o
caráter indissolúvel da união entre o homem e a mulher, e, no caso dos
francos, por exemplo, constata-se que o wehrgeld, o preço do sangue, é o mesmo para a mulher e para o homem, o que implica um certo sentido de igualdade” 3.
Acrescenta que a concepção cristã do casamento, implantada ao longo da
Idade Média, em virtude da conversão das tribos bárbaras, propiciou e
fortaleceu a igualdade e a reciprocidade entre os esposos.
Instaurava-se, por assim dizer, uma simetria no relacionamento entre
homem e mulher: “A mulher não pode dispor de seu corpo: ele pertence ao
seu marido. E da mesma forma, o marido não pode dispor de seu corpo: ele
pertence à sua esposa” (1 Cor 7, 4) 4. Esta concepção
radical e renovadora da relação: homem mulher, em confronto com a
cultura antiga e pagã de cunho machista, implicou a introdução de uma
nova mentalidade e de um novo olhar relativamente à imagem e identidade
femininas. E ela só se instaurou pouco a pouco, com forte e inevitável
dificuldade, nas regiões que sofreram o domínio romano. Nas palavras do
jurista Robert Villers: “Em Roma, a mulher, sem exagero ou paradoxo, não
era sujeito de direito... Sua condição pessoal, as relações da mulher
com seus pais ou com seu marido são da competência da domus da qual o pai, o sogro ou o marido são os chefes todo-poderosos... A mulher é unicamente um objeto” 5.
Para o Direito Romano, a mulher era uma perpétua menor, que passava da
tutela do pai à do marido. Régine Pernoud atribui ainda à reimplantação
do Direito Romano, em vários países da Europa, no século XVI, a
responsabilidade pelo retrocesso da atuação feminina no âmbito familiar,
social e político. A mulher que vinha conquistando espaço, do século X
ao XIII, no âmbito familiar, na sociedade e na arte, sofre um eclipse no
período subseqüente, resgatando o prestígio que conquistara na
sociedade medieval somente no século XX 6.
Os
benefícios do casamento monogâmico não se restringiram à possibilidade
de o espaço social e político contar com a intervenção feminina. A
mudança mais significativa relativamente à dignidade da mulher deu-se no
plano da relação: feminino masculino. Em que condições de segurança
viviam as mulheres nas tribos bárbaras, ainda não cristianizadas? Relata
Georges Duby que nos primeiros séculos da Idade Média e, em algumas
regiões, mesmo nos séculos XI e XII, as mulheres estavam expostas a
contínuos riscos quanto à integridade física e emocional 7. Tal como retratam alguns filmes atuais: Coração Valente ou Joana d’Arc,
as donzelas eram freqüentemente violentadas. Duby menciona o fato de
que bandos de jovens rebeldes eram estimulados a se “divertir” longe das
fronteiras da região natal. Por isso invadiam condados vizinhos com o
intuito de violentar coletivamente suas mulheres e donzelas. Foram
necessários séculos para evoluir da barbárie à civilização no que
concerne à relação entre homem e mulher.
Porém,
o avanço representado pela união monogâmica, como lembra o historiador
português Jorge Macedo, atingiria níveis muito mais altos no
relacionamento entre homem e mulher. O casamento no mundo ocidental e
cristão pressupunha uma troca de informações sobre o outro, base da
relação de pessoa a pessoa, que se instaurava no âmbito familiar, à
medida que a mulher deixava de ser um mero objeto de fecundação
substituível e descartável, para ser uma presença permanente, capaz de
contribuir para a unidade e humanização da família. E a arte passaria,
ao longo da Idade Média, a exercer um papel social de relevo, ao
propiciar o conhecimento da alteridade, na revelação desse mundo
interior do outro, cuja contemplação está, muitas vezes, velada nas
relações quotidianas, mas que a poesia, o romance, a pintura ou a
crônica põem diante dos olhos do leitor, instigando-o a levar em conta
as nuanças de sensibilidade, de comportamento ou de valores inerentes ao
outro.
Como
conseqüência da relação pessoal, necessária à prática do casamento
monogâmico, fez-se mais claro tanto no quotidiano do ambiente familiar,
quanto no universo político e social, que a relação de pessoa a pessoa
não podia ser somente um ato voluntário ou de razão 8, mas
impregnado de afetividade. Ora, as decisões que se enriqueciam com o
ingrediente afetivo, ganhavam em qualidade na constante renovação da
responsabilidade que igualmente implicavam. Afirma Borges que o estudo e
a análise das relações de afeto no casamento monogâmico, tornou-se
“(...) uma característica essencial de todas as sociedades européias: o
universo afetivo de escolha e a consciência íntima que a ela preside
tornaram-se, em pouco tempo, essenciais ao quotidiano, assim como o
cerne da focagem literária e artística do ideal da convivência e um
campo necessário de expressão moral e antropológica” 9.
Em
síntese, no casamento monogâmico está pressuposto um conceito muito
alto do ser humano, que não merece menos do que a fidelidade recíproca
entre homem e mulher. O mesmo se dá em relação aos filhos, que não
merecem menos do que a presença acolhedora, afetiva e exigente dos pais,
cujos esforços convergem para a humanização da família e, de modo
especial, dos filhos. Nada substitui o cume em humanidade representado
pela união monogâmica, incluído o novo código civil, no esforço por
minimizar a perda imposta às vítimas de um casamento que se desfez ou
que não houve. Mas, nesse momento, em pleno século XXI, impõe-se a
pergunta: não seria um retrocesso apontar os benefícios do casamento
monogâmico, quando a mídia e alguns segmentos da sociedade aplaudem o
namoro e o casamento descartáveis? Não. Em hipótese alguma. O casamento
ou o namoro à dinamarquesa, inerentes à barbárie, é que constituem um
retrocesso relativamente à união monogâmica, e só se instauram – tal
como assinala o percurso histórico –, mediante o rebaixamento do cônjuge
à condição de ser descartável, diminuído por um amor (seria amor?) tão
desumano quanto a maionese ou a margarina: com prazo de validade
vencido. Em suma, a poligamia, oficiosa ou garantida por lei, reduz
homem e mulher à categoria de ingênua marionete no jogo machista ou
feminista do prazer a qualquer preço. E, neste caso, o preço é alto,
muito alto: a angústia de se sentir usado, a dor e o sabor amargos de
quem negou a si mesmo o direito de amar e ser amado como pessoa, e
consentiu em desprezar-se, vivendo dos despojos de sua própria
humanidade.
NOTAS:
(1) Cf. Jorge Borges Macedo, “Mulheres e Política no século XV português”. In: Oceanos: Mulheres no mar salgado, n.21, jan-mar 1995, pág.19.
(2) Ibidem.
(3) La femme au temps des cathédrales, Stock, Paris, 1980, pág. 172.
(4) cf. Idem, págs.173-174.
(5) Idem, págs.19-20.
(6) A esse respeito, leia-se o prefácio da historiadora francesa que serve de apresentação à obra acima citada.
(7) Sobre esse assunto, consulte-se, do mencionado autor, a obra: Damas do século XII: a lembrança das ancestrais (tradução de Maria Lúcia Machado), Companhia das Letras, São Paulo, 1997.
(8) Jorge Borges Macedo, op. cit., pág.19.
(9) Idem.
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