terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Christopher Dawson e seu legado


Por francisco razzo, 3 de novembro de 2010 14:36
Entrevista com Jaime Antúnez Aldunate, autor do livro sobre o filósofo da história
SANTIAGO DO CHILE, terça-feira, 18 de setembro de 2007 (ZENIT.org).- Trinta e sete anos depois de sua morte, Christopher Dawson, o filósofo da história, continua deixando lições, em particular aos crentes, constata o Dr. Jaime Antúnez Aldunate, que publicou um livro.
O diretor de «Humanitas» aprofundou em seu livro «Filosofia da história em Christopher Dawson» (Editora Encontro) na herança intelectual e espiritual deste anglicano britânico, nascido em 1889, que se convertera ao catolicismo em sua juventude.
Ao destacar a influência que este autor tem, Antúnez, em uma entrevista concedida à Zenit, constata que «é indicativo que um «best seller» no debate contemporâneo, como Samuel Huntington, dê início ao mais divulgado de seus ensaios –«The Clash of Civilizations» –, citando, entre outros autores modernos, Christopher Dawson».
Três são as obras fundamentais de Dawson: «Progress and Religion» (concebida originalmente como introdução a um longo projeto titulado «The Life of Civilizations», que não chegou a realizar-se em sua integridade); «Religion and Culture»; e «The Dynamics of World History» («A Dinâmica da História Universal»).

–Dawson é um puro historiador? Estamos frente a um filósofo da cultura? Trata-se sua obra de uma filosofia da religião? Ou de uma filosofia da história?
–Jaime Antúnez: Uma resposta ajustada obriga a afirmar, em primeiro lugar, que uma preocupação dessa índole estaria longe de inquietar o próprio Dawson. Ele se sentiria certamente incomodado e dubitativo quanto a que responder. Quem tiver lido sua obra verificará, em segundo lugar, que poderá perfeitamente dar-se inclusive uma resposta afirmativa às quatro possibilidades que me formula, pois no historiador Christopher Dawson faz, com efeito, ao mesmo tempo uma filosofia da cultura, uma filosofia da religião e, por certo, também uma filosofia da história. É verdade que em alguma ocasião nosso autor parece relutante a que o considerem primordialmente um filósofo. Desta forma, para alguns conhecedores de sua obra, o seu maior valor radica na inteligência e enorme amplitude panorâmica de suas percepções, mais que na estruturação rigorosa de uma filosofia ou em um estudo filosófico da história, como pode ver-se por exemplo em seu contemporâneo, também britânico, Arnold Toynbee. Se isso é efetivamente assim, ninguém entretanto poderá negar o valor, a profundidade e a originalidade de uma importante quantidade de intuições filosóficas suas, nascidas da meditação da história, assim como a consistência que se desprende do conjunto delas, ainda quando às vezes adoeçam de certa falta de sistematicidade.
–Precisamente você dedica o segundo capítulo de seu livro a confrontar o pensamento de Dawson com o de Spengler e o de Toynbee.
–Jaime Antúnez: Isso me pareceu uma tarefa útil e até necessária, que visa a aprofundar no significado e valor da obra de Dawson, pois introduz o leitor em seu horizonte filosófico próprio e, o mais importante, situa-o de entrada como um autor distante e contraposto às escatologias imanentistas ou intramundanas, e às filosofias da história impregnadas de idealismo hegeliano manifesto ou difuso, que tanto proliferaram no século XX… Dawson dedica ainda, a cada um dos dois autores mencionados, um capítulo especial de «A Dinâmica da História Universal», além de numerosos comentários espalhados em seus livros e artigos.
–Parece ficar assim respondido que no estudo da obra de Dawson, ainda pode-se fazer um enfoque centrado no historiador que ele foi, ou no filósofo.
–Jaime Antúnez: Sim. Por isso também tive a preocupação de destacar aquelas investigações e reflexões suas que contribuem para iluminar o horizonte de sentido dos fatos humanos. Deve-se dizer – a propósito da filosofia da história – que Dawson é um decidido defensor do que chama «meta-história» – seu próprio e mais genuíno campo de pensamento – âmbito no qual coabitam e se complementam desde a história até a teologia, passando pela sociologia, a ciência política, a antropologia, a arte e a filosofia.
Particular relevância tem no conjunto desta «meta história» dawsoniana, a concepção da cultura. Ela atravessa e enriquece toda sua obra e resulta de uma equilibrada equação de elementos materiais – «biologismo moderado» poderíamos chamá-la, que compreende desde o contexto geográfico até a conformação das raças – e elementos espirituais, fórmula que supera com vantagem os desequilíbrios produzidos por diferentes determinismos filosóficos. Em tal equação prevalece sempre o fator espiritual – garantia última da liberdade humana – pois a síntese de uma cultura se obtém para Dawson no plano da inteligência, sendo a mais alta expressão desta, postula, a inteligência da religião.
–Mas isso vai mais longe em Dawson, apontando para uma visão da história «sob a espécie do eterno»…
–Jaime Antúnez: Há efetivamente em tudo isso, como já se pode intuir, infinitamente mais. Pois em último termo, a luz aportada pelo judeu-cristianismo à intelecção da história, que Dawson assume, encontra sua natural culminação na própria presença do divino na história: Deus se revelou primeiro ao homem e mais tarde se fez homem pela encarnação da segunda Pessoa da Trindade. Encarnação e Trindade constituem assim o eixo da «meta-história» desenvolvida por Dawson. Fica posta assim ante nossos olhos, efetivamente, a história «sub specie aeternitatis», como ele o expressa.
–Você destaca que aquilo que definitivamente marca o caráter de uma cultura e de uma civilização e sua diferença com outra será, na perspectiva de Dawson, uma determinada visão do mundo, um certo conceito da realidade.
–Jaime Antúnez: Nem a região, nem a raça, nem sequer a língua – resultado de uma tradição racional – guardam para ele comparação em seus efeitos sobre a cultura, com aquele que tem o mundo interior próprio, que é o que a define. Poderá tal visão ser o resultado de gerações de pensamento e ação comum ou brotar da repentina inspiração de um espírito iluminado. Entretanto, praticamente sempre, seu efeito sobre a «materialidade» da cultura será infinitamente mais apreciável que o que tal «materialidade» pudesse em alguma circunstância chegar a ter sobre o espírito da cultura. Esta preeminência da inteligência na concepção da cultura não implica, como é fácil advertir, que Dawson esteja de algum modo comprometido com o ponto de vista intelectualista dos filósofos dos séculos XVIII e XIX. Enquanto estes negam à religião sua influência vital no plano do progresso humano – não seriam as religiões mais que estados no paulatino autodesenvolvimento do Espírito puro, afirmam – nosso autor amplia o conceito de mente humana, considerando nele todo o profundo espaço da consciência. Analisa o desenvolvimento das mais diversas sociedades, desde as primitivas até as de nosso tempo, indagando as características das grandes crises da história e na reação que têm ante elas as diferentes forças vitais que dão suporte às sociedades, e conclui que, no curso dos séculos, pode comprovar-se que a religião é a maior «força coesiva» da cultura e que constitui um «pilar» de toda a grande civilização, isso até o ponto que quando uma sociedade perde sua religião, cedo ou tarde perde sua cultura.
–A história da cultura se desenha assim aos olhos de Dawson como esses manuscritos antigos que conservam sempre as marcas de escrituras anteriores, nunca inteiramente apagadas, e que se conhecem com o nome de «palimpsestos», você recorda.
–Jaime Antúnez: Nestes, nos traços deixados pelas culturas primitivas e também pelas mais desenvolvidas, figura um mundo que jaz profundamente sob a superfície da consciência, explica Dawson. Flui também desta concepção da cultura o caráter eminentemente conetivo do conhecimento histórico, da história como memória, tradição e conhecimento interior, sobretudo.
–Nesta mesma linha de considerações, pode explicar por que a distância que separa o religioso do não-religioso para Dawson, mais que em «níveis de cultura», estriba em níveis de consciência?
–Jaime Antúnez: Nosso autor demonstra, por exemplo, que quando o mistério manifestado na natureza é adorado por si mesmo, se está ainda no estágio do paganismo. Ao contrário, que quando as forças que governam a natureza permitem entrever o Deus da alma, ainda que seja ainda nas profundas escuridões da consciência, estão já outorgadas as bases para uma evolução religiosa, tal como ela se aprecia nas religiões históricas. Como se percebe, o mundo da cultura chega a existir pela cooperação entre a psique e a razão e foi, afirma Dawson, função histórica das religiões conseguir essa união. Daí suas formulações tão substanciosas: «As religiões mundiais foram os pilares das culturas do mundo, de forma que, se as eliminamos, os arcos caem e o edifício se derruba». Torna-se, por conseguinte, necessário olhar para este âmbito superior da realidade, nos dirá, para alcançar uma verdadeira compreensão das formas internas de uma sociedade e de sua cultura.
–Contudo, o próprio Dawson precisa que essa relação entre religião e cultura é também tensa e ambígua, que sua influência é recíproca e que opera em diferentes direções…
–Jaime Antúnez: Isso se observa de modo muito evidente, por exemplo, em circunstâncias de grandes mudanças culturais, pois, ainda que de modo geral a religião exerça uma influência como força unificadora na criação de uma síntese cultural e no suporte das tradições, oferece também fatores que facilitam ou impulsionam o dinamismo transformador das sociedades, podendo inclusive chegar a operar – o sentimento religioso – como força desintegradora em momentos de auge revolucionário. É bem visível que esta ambigüidade nas relações entre religião e cultura gerou fortes tensões ao longo da história.
–Hoje «caíram as barreiras das culturas-religiões e pela primeira vez na história, todo o mundo físico chega a ser um só», escreve Dawson em 1945, prevendo um fenômeno que considera anômalo e exclusivo desta época, e que a seu juízo ameaça a sobrevivência da religião e também da cultura.
–Jaime Antúnez: Essa inclinação da cultura observada por ele, originada na Europa e inspirada, ainda que não em forma exclusiva, na filosofia do Iluminismo, navega hoje mais que na força de estruturas ideológicas, «nas técnicas científicas ocidentais que proporcionam a estrutura comum da existência humana e a base sobre a qual se está formando uma nova civilização científica universal», expressa nosso autor. Que desafio adverte, no fundo, neste contexto – «unificado, organizado e controlado pelo conhecimento e as técnicas científicas» – para a religião, e em particular para as grandes religiões universais? Todas elas (as religiões) sobrevivem e continuam influindo na vida humana, mas todas elas perderam relação orgânica com a sociedade que se expressava na síntese tradicional da religião e da cultura, tanto no Oriente como no Ocidente, explica Dawson. A que temos ante nossos olhos é assim a secularização mais completa, intensa e ampla que o mundo tenha conhecido. Disso conclui que «uma cultura dessa classe não é de nenhum modo uma cultura no sentido tradicional, ou seja, não é uma ordem que reúne todos os aspectos da vida humana em uma comunidade espiritual viva».
–Como Dawson aborda o tema da «filosofia do progresso»?
–Jaime Antúnez: Já no prólogo de sua primeira obra publicada em 1928, «The Age of Gods», Dawson manifesta uma preocupação precoce pelo tema do progresso das culturas. Estabelece então que ao invés de uma lei uniforme capaz de dar conta do progresso, é necessário distinguir o que deve ser apreciado como «tipos principais de evolução social», matéria na qual sublinha a importância de fatores como o meio geográfico e a mestiçagem cultural. Não é este, contudo, o horizonte em que analisa o tema em sua obra capital, «Progresso e Religião». Ele faz aqui relação com a perspectiva ideológica que o conceito «progresso» assume na cultura moderna, principalmente a partir do Iluminismo, e suas conseqüências no campo da filosofia da história. Em coincidência com outros autores que se ocupam da análise deste período na história do pensamento – Berdiaev e Jean Guitton, por exemplo –, nosso autor observa que no século XVIII, por obra dos filósofos iluministas, se produz um tipo de suplantação do sentimento religioso de forma tal que, conservando-se uma fé em um Criador benfeitor e providente e a aceitação dos principais preceitos da moral cristã, estes conceitos são «despojados de sua dimensão sobrenatural e adaptados ao esquema utilitário racional da filosofia contemporânea». Deste modo, a lei moral é privada dos elementos ascéticos e espirituais e equiparada a uma filantropia prática, e a ordem providencial é transformada em uma lei natural mecanicista. Isso sucede, muito particularmente, com a idéia do progresso, conclui, em conseqüência do qual «a crença na perfectibilidade moral e no progresso indefinido da raça humana tomou o lugar da fé cristã na vida futura, como o fim último do esforço humano».
–Diríamos que a presença destas concepções chega até o nosso tempo…
–Jaime Antúnez: Diversos acontecimentos ao longo do século XIX e, sobretudo, as circunstâncias catastróficas que acompanharam o começo do século XX, comoveram muito profundamente a estabilidade do credo do progresso. Não resta a ele, contudo, atualidade e projeção ao problema aqui abordado. Pois ainda que seja verdade que hoje não se aceitaria essa fé no progresso nos termos formulados pelos filósofos do Iluminismo, ela permanece ainda como uma atmosfera de fundo, impregnando em boa medida a problemática de nosso tempo, «que se encontra como a meio caminho no dilema entre irracionalidade milenarista e racionalista positivista sem esperança», segundo observava o cardeal Joseph Ratzinger nos anos oitenta. Isso coincide admiravelmente com a prévia previsão de Dawson, expressa já em 1927, no sentido de que estava por nascer uma nova cultura que não reconheceria hierarquia de valores e se abandonaria ao caos das sensações, permitindo que «a mais assombrosa perfeição da técnica científica esteja dedicada a fins puramente efêmeros».
–De tudo isso flui, constata-se, uma profunda visão crítica da modernidade como cultura.
–Jaime Antúnez: Sim, porque à luz da análise que Dawson faz, é o homem e sua construção no universo o que, como conseqüência do fenômeno antes descrito, vem sendo alterado. Ainda que a nova síntese – diz em seu livro «Progresso e Religião» – é superior no relativo ao mundo físico, comparada com aquela do século XIII, no fundo é inferior, já que não abarca a realidade como uma totalidade. O homem não só perdeu seu lugar central no universo como o elo entre a realidade superior do espírito e a realidade inferior da matéria, mas «ficou em perigo de ser expulso da ordem inteligível, pois se o universo é concebido como uma ordem mecânica fechada e governada por leis matemáticas, já não há lugar nele para os valores espirituais e morais que anteriormente haviam sido considerados como a realidade suprema», observa. A conseqüência no âmbito da consciência moral e da epistemologia – considerado o homem assim como um subproduto da vasta ordem mecânica revelada pela nova ciência – seria, como o temos ante nossa vista, a ditadura do subjetivismo e do relativismo.
–Como você se lembra, no livro «Para a compreensão da Europa», Dawson dedica o capítulo X a explicar o «tour de force» que Hegel provoca na cultura ocidental com sua filosofia, cuja dinâmica parte precisamente de uma «filosofia da história». Que importância tem isso na perspectiva de seu estabelecimento «meta-histórico»?
–Jaime Antúnez: Estamos aqui frente ao intento mais nítido de subjugar a realidade, diz Dawson, «com o vigor do pensamento e incorpora-la com todas suas contradições na totalidade de uma síntese absoluta», equivalente, neste caso, ao reino definitivo do progresso. Para Maritain, Guitton e Joseph Ratzinger, como se recorda em meu livro, se está frente ao paradigma da gnose moderna. «Em última análise, a metafísica hegeliana e a filosofia hegeliana da história são o gnosticismo moderno: são puro gnosticismo» dirá sem titubeios Maritain. Esta mesma «idolização gnóstica», coincidem estes autores, será a que encontraremos em Marx, e ao mesmo tempo, em circunstâncias distintas, é a que inclusive acompanhará – explica Dawson em «A Dinâmica da História Universal» – o próprio processo contemporâneo de «ocidentalização» do mundo, com as características que ele observou. Trata-se, em definitivo, da secularização radical do estabelecimento trinitário iniciado por Joaquim de Fiore, e que por exemplo lemos hoje como intento de explicação, mais literário que metafísico, em um autor como Gianni Vattimo.
–Segundo a teoria do tempo originada em Santo Agostinho – e assumida por Dawson – se explica, você diz, uma concepção da história na qual o passado não morre, mas se incorpora à vida da humanidade, a qual possui assim uma continuidade e é dona de uma capacidade de progresso pessoal e social.
–Jaime Antúnez: Nesta perspectiva, o homem não é fruto do tempo, mas assume ante ele a função de amo e, em sentido mais amplo, de criador. Não há meta mais libertadora da história, sublinhará Dawson, que aquela que mostra em seu horizonte a escatologia cristã e a meta-história. A hipótese imanentista de uma plenitude intra-histórica é reflexo, pelo contrário, de uma compreensão reduzida ou reducionista do ser humano, que necessariamente acarretará um sacrifício da liberdade. Nas antípodas dessa perspectiva, que parte de uma visão gnóstica da história, nós nos encontramos no caso de Dawson frente a uma harmônica compenetração das noções de tempo e eternidade, apoiada em uma firme consciência humana da mortalidade e do fim.
–A atual situação que se observa no campo da cultura – não comparável com outros períodos de civilização – mais que anti-religiosa, «sub-religiosa», marginalizando a grande força dinâmica da história que é a religião, implicará como conseqüência, opina Dawson, uma desvitalização radical da sociedade. Nisso coincide com vários outros autores.
–Jaime Antúnez: Convém, em todo caso, dizer que este destaque crítico da cultura contemporânea iluminado pela obra de Dawson, não supõe um processo irreversível nem predeterminado. Como tudo o que discorre no plano do humano, sua persistência ou superação está em dependência da vontade amorosa do homem, pedra de toque na direção que a cultura adotar. Tampouco supõe, certamente, uma regressão no campo dos avanços científicos e técnicos, mas pelo contrário: assumindo-os como frutos positivos da civilização em que nascem, são estes, em sua perspectiva, outros elementos a reintegrar em um esforço de unidade espiritual da cultura. Em definitivo, no marco geral de uma cultura que vive o desafio consistente no trânsito desde visões ideologicamente fechadas, ao desvanecimento de seus fundamentos na renúncia a qualquer sentido último, a filosofia e o estudo da história realizado por Dawson adquirem um destaque muito singular. É justo inclusive dizer que se há um nome que no século XX deva ser destacado por suas contribuições à filosofia da história – e particularmente à filosofia cristã da história –, compartilhando méritos com outros como, por exemplo, Maritan e Guitton, esse é Christopher Dawson.

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