São Luís, que
em vida foi
Luís IX da França,
ganha biografia de luxo
Luís IX da França,
ganha biografia de luxo
Roberto Pompeu de Toledo
São Luís, coroa e auréola sobrepondo-se
na cabeça,
lava o pé de um pobre |
O rei parte para a cruzada (miniaturas do século XIV ilustram
esta reportagem) |
Catedrais – São Luís é neto de um grande rei, Filipe Augusto, e avô de outro, Filipe, o Belo. O pai, Luís VIII, foi rei de reinado curto. A mãe, a espanhola Branca de Castela, muito mais influente em sua vida, dizia que preferia vê-lo morto a cometer adultério. Para se ter idéia do tempo em que viveu, São Luís é contemporâneo do apogeu da arquitetura gótica, a fase em que ainda se construíam, ou tinham sido recentemente construídas, as grandes catedrais francesas – Notre-Dame de Paris, Chartres, Reims, Saint-Denis. Na política européia, contracenavam com ele o rei da Inglaterra, o imperador do Sacro Império Romano-Germânico, nome pomposo para domínios que só iam um pouco além da Alemanha, e o papa. Mundo afora, a cristandade era confrontada por um lado pelo avanço mongol e por outro pelo islamismo, dono do Oriente Médio, inclusive a Terra Santa, do norte da África e boa parte da Espanha.
Calcula-se que a França contava 10 milhões de habitantes. Era o mais populoso país de uma Europa de 60 milhões. Paris, com população de 200.000, era a metrópole da época. São Luís foi contemporâneo de outros gigantes da cristandade. São Francisco de Assis morreu em 1226, mesmo ano em que ascendeu ao trono. São Domingos, em 1221. Ambos introduziram na Igreja as ordens mendicantes, que, nascidas para ser pobres e próximas do povo, são expressões daquele tipo de movimento, tão encontradiço na História, que surge contestatário e acaba servindo de reforço à ordem vigente. A ideologia mendicante exerceu enorme influência sobre Luís. Santo Tomás de Aquino, nascido em 1226 e autor, ali mesmo, na Universidade de Paris, de uma formulação teológica que atravessaria os séculos, exerceu menos.
O rei aprende a ler, sob supervisão da mãe, Branca de Castela |
São Luís era chefe de algo – um reino – que, como o casamento por amor e a economia, ainda não se consolidara nas estruturas mentais da época. Compreendia-se o que era o Sacro Império, o herdeiro, ainda que pálido, do Império Romano, o que era feudo e o que era a Igreja, mas reino, isso que desembocaria nos Estados nacionais que temos hoje, era uma categoria mental – ou, pelo menos, jurídica – contestável. "Alguns julgam que a França goza de isenção em relação ao Sacro Império; isso é impossível em direito", sentenciava o jurista Jacques de Révigny.
Relíquias – Na obra de edificação do Estado nacional em que, menos consciente do que inconscientemente, São Luís se empenhava, foi crucial, segundo Le Goff, a iniciativa de erguer na Catedral de Saint-Denis, nos arredores de Paris, um conjunto de dezesseis grandiosas estátuas para enfeitar os túmulos dos antigos reis e rainhas, seus ascendentes, ali enterrados. As estátuas representavam os antigos monarcas em solenes e tocantes posições jacentes. "Os reis mortos vão de agora em diante mostrar a perenidade do ofício monárquico", escreve Le Goff. "São convocados para a eternidade na propaganda da monarquia e da nação, uma nação que por enquanto só sabe se afirmar através do regnum, o reino." Até o fim da monarquia, no século passado, os reis e rainhas da França continuarão sendo enterrados em Saint-Denis, sob estátuas que ora os apresentam jacentes, como nas primeiras versões, ora em outras posições. O conjunto oferece ainda hoje, na catedral que é ao mesmo tempo a necrópole dos reis da França, bem perto do moderno estádio onde o Brasil perdeu a última Copa do Mundo, um espetáculo impressionante de monumentalidade e convite à reverência.
Algo curioso ocorre quando se observa São Luís de nossa perspectiva de pessoas do século XX: é mais fácil aceitá-lo como político, ou seja, como elo importante na construção da nação francesa, do que como santo. Claro, ele entregou-se à devoção com afinco de campeão da fé. Jejuava, autoflagelava-se. Praticou o sexo para assegurar, como exigia sua condição, uma sólida descendência – teve onze filhos –, mas lutava contra o desejo como eremita no deserto. Abstinha-se de olhar para a mulher para não cair em tentação. Quando a ardência, na presença dela, apertava, ficava a andar pelo quarto até esfriar. Também se abstinha desse inimigo da penitência que é o riso. Não ria às sextas-feiras. Mas a contrapartida da devoção, em São Luís, é o fanatismo. Tinha horror à blasfêmia, o "pecado da língua". Uma vez, mandou marcar com ferro os lábios de um blasfemador. Mandava executar os hereges condenados pela Inquisição. Perseguiu sistematicamente os judeus, aos quais, numa pré-estréia da política nazista, ordenou que usassem uma rodela escarlate no peito e nas costas. Não são procedimentos que hoje imaginamos num santo.
O rei morre, no acampamento em Túnis, durante sua segunda cruzada |
Tempos incertos"Na época de Luís, a medida do tempo continuava vaga porque a duração vivida era múltipla, fragmentada. Foi só no fim do século XIII que apareceram os primeiros relógios mecânicos. Em muitos casos, ignoram-se as datas de nascimento mesmo de grandes personagens, e portanto suas idades exatas. A numeração dos reis, dos príncipes, dos membros das grandes linhagens ainda é pouco usada e as incertezas são numerosas. São Luís, enquanto viveu, não foi chamado de Luís IX. (...) Os dias continuam mais bem designados pelo santos que se festejam do que pela seqüência do mês. São Luís vivia numa multiplicidade de tempos incertos."
Jacques Le Goff
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Que resta de São Luís, hoje? Muito. Quem já esteve na Sainte-Chapelle, em Paris, dificilmente escapou incólume ao delírio de seus vitrais, ou ao milagre de suas formas. É uma das maiores emoções que se pode ter, ao entrar num prédio, na vida. Pois a Sainte-Chapelle é São Luís. É a santa capela que mandou erguer para abrigar a mais preciosa das relíquias que ele, um obcecado pelas relíquias, conseguiu obter – a peça tida como a coroa de espinhos de Jesus, comprada ao governo de Bizâncio. A Sainte-Chapelle é também, no plano simbólico, um resumo do que São Luís significou: a política como religião, a religião como política, e as duas a serviço da busca da eternidade.
O santo rei, tão atraído pelas relíquias em vida, atomizou-se ele próprio em relíquias depois da morte. O corpo foi fervido, em Túnis, para que se separassem as entranhas e os ossos. As entranhas foram para a Sicília, onde reinava o irmão e companheiro de cruzada Carlos de Anjou. Os ossos foram para a França, onde começou a grande distribuição – o crânio para a Sainte-Chapelle, os maxilares para Saint-Denis, outro osso para Notre-Dame, outro ainda para Reims. No decorrer dos séculos, pedaços do rei continuaram a ser presenteados. Ainda em 1926 – ontem, em termos históricos –, o arcebispo de Paris ofereceu uma costela à igreja Saint-Louis-de-France de Montreal. Quanto à coroa de espinhos comprada pelo bom rei, hoje guardada em Notre-Dame, encabeçou uma procissão, da qual o governo participou em peso, em maio de 1940, para proteger a França do avanço alemão. São Luís ainda diz muito desse país que, por sua vez, diz muito para o mundo, que é a França.
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