26/05/2008 por Luiz Felipe Fustaino - Época
A
Época dessa semana tem mais de 200 páginas: edição dupla de
aniversário, lançamento do novo projeto gráfico, retrospectiva dos dez
anos que se passaram e uma série de artigos sobre os dez anos que
virão. Mas as duas páginas mais interessantes ficaram escondidas,
separadas por uma propaganda da Fast Shop.
Texto completo
A entrevista com o
historiador Marco Antonio Villa resume a sua cruzada contra a
vitimização das esquerdas armadas durante a ditadura militar no Brasil. A
leitura equivocada que os jovens fazem da esquerda daquele período, o
desinteresse das “vítimas” na abertura dos arquivos, tudo o que Villa
costuma escrever em artigos de jornal está reunido ali. Leia a
entrevista:
O historiador Marco Antonio Villa não gosta dos cuidados do politicamente correto. Em seu livro Jango, um Perfil, Villa deixa de lado teorias conspiratórias para mostrar como Jango foi um mau político e um administrador incompetente. Na semana passada, Villa comprou outra briga histórica. Num artigo, criticou a romantização dos grupos armados que teriam lutado pela liberdade e ajudado a derrubar a ditadura militar (1964-1985). Bateu também nas indenizações milionárias pagas a pessoas supostamente afetadas por perseguição política e tortura. Segundo Villa, há uma versão mistificada da luta contra os militares, difundida por ex-militantes e hoje predominante no ensino da História e na mídia. Nesta entrevista, ele diz por que essa mistificação e as reparações em dinheiro aos atingidos são sinais de atraso para o Brasil.
ÉPOCA – Por que o senhor afirma que a luta armada não derrubou a ditadura militar (1964-1985)?
Marco Antonio Villa – Porque não houve nenhum movimento de massa de apoio à luta armada. Não houve, no caso da luta armada urbana, nenhuma movimentação de apoio, passeata, nada. Nenhuma mostra de simpatia. Ao contrário: houve mostra de perplexidade. Em relação à questão no campo, fora a guerrilha do Araguaia (movimento de luta armada no norte do país promovido pelo PCdoB no início da década de 70), o resto foi piada: Caparaó (a guerrilha na Serra do Caparaó, na divisa entre Espírito Santo e Minas Gerais, promovida entre 1966 e 1967 por seguidores de Leonel Brizola), o Lamarca no Vale do Ribeira (a tentativa de montar um foco revolucionário no sul de São Paulo, organizada por Carlos Lamarca, capitão que desertou do Exército para juntar-se ao grupo armado Vanguarda Popular Revolucionária)…
ÉPOCA – O que derrubou a ditadura militar?
Villa – O que acabou com a ditadura foram os movimentos pela anistia, a Igreja Católica, a ação dos intelectuais, os movimentos sociais na periferia e a ação do MDB autêntico (grupo do MDB mais aguerrido na oposição ao regime militar). É incrível o esquecimento disto: pessoas como Lisâneas Maciel, Marcos Freire, Chico Pinto, Jarbas Vasconcelos (políticos integrantes do MDB). Pessoas que tiveram coragem, das quais ninguém fala. O Alencar Furtado (deputado federal pelo Paraná) foi cassado em 1977 porque, num programa do MDB, sob censura, fez uma referência às viúvas do “quem sabe” e do “talvez”, aquelas que buscavam maridos e filhos desaparecidos. Eles caíram no esquecimento e não tiveram lugar na Nova República. É um tipo de lembrança importante. Mas se construiu uma aura da luta armada. O ex-ministro José Dirceu, quando deixou a Casa Civil, mencionou os “companheiros de armas”. Ele não foi companheiro de arma de ninguém, não deu tiro nem de espoleta. Ele ficou treinando em Cuba, voltou clandestino… Não sei se a resistência dele deu-se no oeste do Paraná, dirigindo o Magazine do Homem (loja de roupas aberta por José Dirceu em Cruzeiro do Oeste, no Paraná, quando viveu clandestinamente com outra identidade no fim da década de 70). Cabe perguntar se a resistência foi aquela. Se foi, então a resistência foi uma farsa. Então, não pode se chamar de companheiro de armas. Foi um farsante. Ele e outros.
ÉPOCA – Como foram construídos esses mitos da luta armada?
Villa – A ditadura militar criou tamanho asco que todos eram contrários a qualquer manifestação da ditadura. Isso abriu espaço para tudo. A partir de 1979, com o retorno dos anistiados, passou-se a louvá-los sem entrar no mérito da luta travada. Quem fizesse qualquer crítica estaria sendo um aliado do regime, e isso era politicamente incorreto. Isso foi muito eficaz, porque a crítica ficou represada no momento da abertura, durante o governo Figueiredo (1979-1985). E foi péssimo. Se a reflexão tivesse sido feita naquele momento, teria facilitado o processo de abertura e de transição para a democracia.
ÉPOCA – O senhor diz que a esquerda não combateu a ditadura militar em nome da democracia, mas porque defendia uma ditadura do proletariado. Por que, então, prevalece a visão mais romântica, da luta pela liberdade?
Villa – Isso é uma leitura da História que acabou dominante. As pessoas mais jovens, que não vivenciaram ou não estudaram o período, acabam assimilando essa leitura, que fica como verdade absoluta. Quando os jovens vão estudar, encontram só uma leitura. E ai de quem falar o contrário…
ÉPOCA – Há uma vitimização de quem foi da luta armada?
Villa – Sim. Esse processo de vitimização desqualifica o debate político. Passa a ser questão de ordem pessoal, sentimental. Alguns usam a vitimização em busca de indenizações, especialmente os mais bem situados na política nacional, que receberam indenizações fabulosas. É curioso que os marinheiros, que se rebelaram em 1964, tenham sido esquecidos. Foi feita uma limpeza nas Forças Armadas. Na Marinha, uns 2 mil militares foram colocados para fora. O pessoal da Aeronáutica queria trabalhar na aviação civil, e não conseguia, porque as portas se fechavam. Estragaram suas vidas para sempre. Não tiveram direito a indenização – os filhos de alguns correm atrás disso até hoje. Eram pessoas que recebiam salários muito baixos e foram abandonadas. Criou-se uma situação terrível. Esses, sim, mereciam indenização – não os jornalistas. Alguns jornalistas viveram, inclusive, dessa figura de perseguidos e usaram isso em termos mercadológicos. O caso do Carlos Heitor Cony é uma coisa escandalosa, por ter usado o salário de editor para buscar indenização. A piada foi feita: ele resistiu à ditadura dirigindo a revista (erótica) Ele & Ela. É um verdadeiro absurdo. Enquanto isso, os que sofreram – dos dois lados, é bom lembrar – e tantos que passavam e eram atingidos sem ter nada a ver com a história ficaram sem nada.
ÉPOCA – O Brasil errou ao fazer uma lei de anistia para perdoar os envolvidos e indenizar os atingidos?
Villa – Distribuir dinheiro foi um belo “cala-boca”. Muita gente que poderia ajudar a exigir a abertura dos arquivos acabou ficando com esse “cala-boca”. Isso é péssimo. Vai passando o tempo, aquela pessoa que teve vinculação com o regime passa para o novo governo, e aí, quando alguém fala na ditadura, é acusado de revanchista e inconveniente. Por outro lado, muitos partidos de esquerda não querem a abertura dos arquivos. Veja o caso do PCdoB na guerrilha do Araguaia. Hoje, sabemos muita coisa do Araguaia graças ao vazamento de documentos das Forças Armadas. Do lado do PCdoB, sabemos pouquíssima coisa. Os arquivos viraram uma espécie de bode na política nacional. A tática é empurrar para o futuro.
ÉPOCA – O que pode ser feito para corrigir essas distorções?
Villa – O primeiro passo é abrir os arquivos com os documentos secretos da ditadura militar. Isso permitiria uma análise desse período. Sem a abertura dos arquivos, mantém-se aquela idéia de que este foi agente do regime ou aquele resistiu. Não se sabe efetivamente o que fizeram ou não.
ÉPOCA – Por que isso não é feito?
Villa – Há muito temor porque, de um lado, vai esbarrar nesse pessoal que conseguiu não deixar marcas. De outro, pode afetar gente que milita politicamente, faz discursos supostamente avançados. Com a abertura dos arquivos, seria possível ver que a história dessas pessoas foi um pouco diferente. Não se avança no acerto de contas democrático sem a abertura dos arquivos. A abertura poderia tornar inviável as aposentadorias, porque muitas delas foram construídas em cima de uma oposição que jamais existiu. Os arquivos deveriam ter sido abertos na transição da ditadura para a democracia, nos anos 1980. Essa história de esperar a poeira baixar é muito ruim.
ÉPOCA – Por que é tão importante revelar documentos?
Villa – Fazer o acerto de contas é fundamental para a construção de um Estado democrático. Os problemas que temos até hoje, a reforma política, o tipo de Estado, o Poder Judiciário, parte deles vem do velho regime. As pessoas da época da ditadura ainda estão aí. Você não deu aquela sacudida para começar uma nova era.
O historiador Marco Antonio Villa não gosta dos cuidados do politicamente correto. Em seu livro Jango, um Perfil, Villa deixa de lado teorias conspiratórias para mostrar como Jango foi um mau político e um administrador incompetente. Na semana passada, Villa comprou outra briga histórica. Num artigo, criticou a romantização dos grupos armados que teriam lutado pela liberdade e ajudado a derrubar a ditadura militar (1964-1985). Bateu também nas indenizações milionárias pagas a pessoas supostamente afetadas por perseguição política e tortura. Segundo Villa, há uma versão mistificada da luta contra os militares, difundida por ex-militantes e hoje predominante no ensino da História e na mídia. Nesta entrevista, ele diz por que essa mistificação e as reparações em dinheiro aos atingidos são sinais de atraso para o Brasil.
ÉPOCA – Por que o senhor afirma que a luta armada não derrubou a ditadura militar (1964-1985)?
Marco Antonio Villa – Porque não houve nenhum movimento de massa de apoio à luta armada. Não houve, no caso da luta armada urbana, nenhuma movimentação de apoio, passeata, nada. Nenhuma mostra de simpatia. Ao contrário: houve mostra de perplexidade. Em relação à questão no campo, fora a guerrilha do Araguaia (movimento de luta armada no norte do país promovido pelo PCdoB no início da década de 70), o resto foi piada: Caparaó (a guerrilha na Serra do Caparaó, na divisa entre Espírito Santo e Minas Gerais, promovida entre 1966 e 1967 por seguidores de Leonel Brizola), o Lamarca no Vale do Ribeira (a tentativa de montar um foco revolucionário no sul de São Paulo, organizada por Carlos Lamarca, capitão que desertou do Exército para juntar-se ao grupo armado Vanguarda Popular Revolucionária)…
ÉPOCA – O que derrubou a ditadura militar?
Villa – O que acabou com a ditadura foram os movimentos pela anistia, a Igreja Católica, a ação dos intelectuais, os movimentos sociais na periferia e a ação do MDB autêntico (grupo do MDB mais aguerrido na oposição ao regime militar). É incrível o esquecimento disto: pessoas como Lisâneas Maciel, Marcos Freire, Chico Pinto, Jarbas Vasconcelos (políticos integrantes do MDB). Pessoas que tiveram coragem, das quais ninguém fala. O Alencar Furtado (deputado federal pelo Paraná) foi cassado em 1977 porque, num programa do MDB, sob censura, fez uma referência às viúvas do “quem sabe” e do “talvez”, aquelas que buscavam maridos e filhos desaparecidos. Eles caíram no esquecimento e não tiveram lugar na Nova República. É um tipo de lembrança importante. Mas se construiu uma aura da luta armada. O ex-ministro José Dirceu, quando deixou a Casa Civil, mencionou os “companheiros de armas”. Ele não foi companheiro de arma de ninguém, não deu tiro nem de espoleta. Ele ficou treinando em Cuba, voltou clandestino… Não sei se a resistência dele deu-se no oeste do Paraná, dirigindo o Magazine do Homem (loja de roupas aberta por José Dirceu em Cruzeiro do Oeste, no Paraná, quando viveu clandestinamente com outra identidade no fim da década de 70). Cabe perguntar se a resistência foi aquela. Se foi, então a resistência foi uma farsa. Então, não pode se chamar de companheiro de armas. Foi um farsante. Ele e outros.
ÉPOCA – Como foram construídos esses mitos da luta armada?
Villa – A ditadura militar criou tamanho asco que todos eram contrários a qualquer manifestação da ditadura. Isso abriu espaço para tudo. A partir de 1979, com o retorno dos anistiados, passou-se a louvá-los sem entrar no mérito da luta travada. Quem fizesse qualquer crítica estaria sendo um aliado do regime, e isso era politicamente incorreto. Isso foi muito eficaz, porque a crítica ficou represada no momento da abertura, durante o governo Figueiredo (1979-1985). E foi péssimo. Se a reflexão tivesse sido feita naquele momento, teria facilitado o processo de abertura e de transição para a democracia.
ÉPOCA – O senhor diz que a esquerda não combateu a ditadura militar em nome da democracia, mas porque defendia uma ditadura do proletariado. Por que, então, prevalece a visão mais romântica, da luta pela liberdade?
Villa – Isso é uma leitura da História que acabou dominante. As pessoas mais jovens, que não vivenciaram ou não estudaram o período, acabam assimilando essa leitura, que fica como verdade absoluta. Quando os jovens vão estudar, encontram só uma leitura. E ai de quem falar o contrário…
ÉPOCA – Há uma vitimização de quem foi da luta armada?
Villa – Sim. Esse processo de vitimização desqualifica o debate político. Passa a ser questão de ordem pessoal, sentimental. Alguns usam a vitimização em busca de indenizações, especialmente os mais bem situados na política nacional, que receberam indenizações fabulosas. É curioso que os marinheiros, que se rebelaram em 1964, tenham sido esquecidos. Foi feita uma limpeza nas Forças Armadas. Na Marinha, uns 2 mil militares foram colocados para fora. O pessoal da Aeronáutica queria trabalhar na aviação civil, e não conseguia, porque as portas se fechavam. Estragaram suas vidas para sempre. Não tiveram direito a indenização – os filhos de alguns correm atrás disso até hoje. Eram pessoas que recebiam salários muito baixos e foram abandonadas. Criou-se uma situação terrível. Esses, sim, mereciam indenização – não os jornalistas. Alguns jornalistas viveram, inclusive, dessa figura de perseguidos e usaram isso em termos mercadológicos. O caso do Carlos Heitor Cony é uma coisa escandalosa, por ter usado o salário de editor para buscar indenização. A piada foi feita: ele resistiu à ditadura dirigindo a revista (erótica) Ele & Ela. É um verdadeiro absurdo. Enquanto isso, os que sofreram – dos dois lados, é bom lembrar – e tantos que passavam e eram atingidos sem ter nada a ver com a história ficaram sem nada.
ÉPOCA – O Brasil errou ao fazer uma lei de anistia para perdoar os envolvidos e indenizar os atingidos?
Villa – Distribuir dinheiro foi um belo “cala-boca”. Muita gente que poderia ajudar a exigir a abertura dos arquivos acabou ficando com esse “cala-boca”. Isso é péssimo. Vai passando o tempo, aquela pessoa que teve vinculação com o regime passa para o novo governo, e aí, quando alguém fala na ditadura, é acusado de revanchista e inconveniente. Por outro lado, muitos partidos de esquerda não querem a abertura dos arquivos. Veja o caso do PCdoB na guerrilha do Araguaia. Hoje, sabemos muita coisa do Araguaia graças ao vazamento de documentos das Forças Armadas. Do lado do PCdoB, sabemos pouquíssima coisa. Os arquivos viraram uma espécie de bode na política nacional. A tática é empurrar para o futuro.
ÉPOCA – O que pode ser feito para corrigir essas distorções?
Villa – O primeiro passo é abrir os arquivos com os documentos secretos da ditadura militar. Isso permitiria uma análise desse período. Sem a abertura dos arquivos, mantém-se aquela idéia de que este foi agente do regime ou aquele resistiu. Não se sabe efetivamente o que fizeram ou não.
ÉPOCA – Por que isso não é feito?
Villa – Há muito temor porque, de um lado, vai esbarrar nesse pessoal que conseguiu não deixar marcas. De outro, pode afetar gente que milita politicamente, faz discursos supostamente avançados. Com a abertura dos arquivos, seria possível ver que a história dessas pessoas foi um pouco diferente. Não se avança no acerto de contas democrático sem a abertura dos arquivos. A abertura poderia tornar inviável as aposentadorias, porque muitas delas foram construídas em cima de uma oposição que jamais existiu. Os arquivos deveriam ter sido abertos na transição da ditadura para a democracia, nos anos 1980. Essa história de esperar a poeira baixar é muito ruim.
ÉPOCA – Por que é tão importante revelar documentos?
Villa – Fazer o acerto de contas é fundamental para a construção de um Estado democrático. Os problemas que temos até hoje, a reforma política, o tipo de Estado, o Poder Judiciário, parte deles vem do velho regime. As pessoas da época da ditadura ainda estão aí. Você não deu aquela sacudida para começar uma nova era.
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