Para tanto, o século em questão terá uma versão mais enxuta, com quase quarenta anos a menos, iniciando-se em 1838, o ano da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Quanto a outra margem do século o recorte não é tão preciso, irá até o ano de 1900 sem muito rigor. Mais correto seria estudar-se até 1930, ponto de virada praticamente indiscutível do pensamento histórico brasileiro, no entanto, o presente trabalho tem como preocupação maior mostrar as origens, os primeiros anos deste pensar nacional, centrando olhares sobre a trajetória de Varnhagen e Capistrano de Abreu. Alguns nomes importantes não serão contemplados, como Joaquim Nabuco ou Barão de Rio Branco, o que não os diminui em absolutamente nada, apenas deixa-os para uma melhor ocasião. |
Joaquim Nabuco |
Apesar destas idéias pedagógicas, é a pesquisa que caracteriza o Instituto e o torna divisor de águas, pois passa-se a fazer o que nunca havia sido feito. O trabalho anteriormente realizado, desde o século XVII, era individual, episódico e sem continuidade. O IHGB foi responsável por reunir os que pensavam a história e estavam interessados em discuti-la, mas não em formá-los pois a entidade não possuía – e não possui, pois ainda existe – as características de uma universidade, sua função era de conduzir discussões e, por meio da sua Revista, publicar documentos pertinentes aos estudos históricos.
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Ou seja, o caráter autodidata dos pensadores brasileiros continuava: religiosos, militares, juristas e até médicos discutiam a História Pátria, como se usava dizer. Por um bom tempo, a preocupação do Instituto foi em periodizar a História do Brasil, algo simples e óbvio hoje em dia mas que na época era motivo de inúmeras discussões. Entre elas se encontra o desentendimento entre o General José Inácio de Abreu e Lima, que como periodização propôs a divisão da História do Brasil em oito épocas ou capítulos, e Francisco Adolfo de Varnhagen, encarregado em dar um parecer em nome do IHGB no ano de 1843. A periodização do General era de fácil crítica devido a sua excessiva e quase exclusiva história administrativa do país e ao fato de ter pensado primeiramente as categorias para depois inserir os acontecimentos. No entanto Abreu e Lima se mostrou muito mais hábil na arte do "bate-boca" que com o pensamento científico, terminando este embate em um texto de Varnhagen intitulado "Réplica apologética de um escritor caluniado e Juízo final de um plagiário difamador que se intitula General". |
Cumpre voltarmos um pouco na questão pertinente à periodização, pois consiste assunto vastíssimo. Quando surgiu a "polêmica" de Abreu e Lima uma periodização já era tida como oficial pelo Instituto desde 1839 e proposta por um de seus idealizadores, Brigadeiro Cunha Matos. A proposta do Brigadeiro, adotada post-mortem (ou in memorian?), dividia a História do Brasil em três épocas: "a primeira, relativa aos aborígenes ou autóctones, a segunda, compreendendo as eras do descobrimento pelos portugueses e a administração colonial, e a terceira, abrangendo todos os conhecimentos desde a Independência" (RODRIGUES: 1957, 153). Cunha Matos também propunha que diante da ignorância das Histórias das Províncias, primeiro se fizessem estudos regionais e posteriormente se debruçasse sobre o todo brasileiro.
No entanto, a razoável coerência da periodização apresentada não impediu o lançamento de um concurso que contemplaria com 200 mil réis aquele que apresentasse "um plano para se escrever a história antiga e moderna do Brasil, organizado de tal modo que nele se compreendessem as partes política, civil, eclesiástica e literária" (RODRIGUES: 1957, 160). Apresentaram trabalhos apenas dois estudiosos - o naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius e Júlio de Wallenstein.
Wallenstein, o "derrotado", apresentou um trabalho pouco inovador, no qual propunha o estudo da História do Brasil por décadas, nos moldes do romano Tito Lívio ou do cronista português João de Barros, e privilegiava a história política. A história civil, eclesiástica e literatura deveriam constar como observação no fim de cada capítulo. Logicamente o Instituto pedia algo mais ousado, mesmo que dentro do conservadorismo esperado de uma entidade que recebia o apoio intelectual e financeiro do Imperador.
Já von Martius apresentou seu "Como se deve escrever a História do Brasil", escrito em 1843, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1845 e, finalmente, dado como vencedor em 20 de maio de 1847. Trabalho que se situa entre a inovação e o característico de uma época, "Como se deve escrever..." é fruto de atenta observação do naturalista enquanto esteve expedicionando pelo interior do Brasil sob patrocínio do rei da Baviera. Na verdade, o estudioso alemão não apresentou uma periodização, mas sim um tratado contendo todos os pontos e problemas que deveriam ser elucidados para a compreensão geral e ampla do Brasil. Foi o primeiro a salientar a importância do índio e do negro, a necessidade de se conhecer mais a fundo os costumes, a língua e a mitologia indígena, a falta de elementos cotidianos do colono português e do escravo africano para a compreensão dos mecanismos coloniais. No entanto, é necessário destacar que a inclusão de outras raças como responsáveis pela construção do país não excluía, segundo von Martius, a responsabilidade do branco em mostrar os rumos da civilidade, posição eurocêntrica típica e esperada.
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Capistrano de Abreu foi talvez o primeiro historiador a dar importância a elementos populares ou menos elitistas, escrevendo uma história sócio-econômica do Brasil, sendo capaz de desprezar a Inconfidência Mineira pois para ele não passou de um movimento de uma minoria intelectual, não chegando ao status de ação. Entretanto, antes de alcançar o espírito crítico que lhe fez conhecido, o historiador cearense passou por diferentes "momentos". Logo que chegou ao Rio de Janeiro com 21 anos de idade carregava em sua bagagem a escola positivista e o plano de escrever uma História que mostrasse as influências permanentes da natureza sobre a civilização, tudo fundamentado sobre as leituras de Taine, Buckle e Agassiz. Sua formação teórica tomou corpo a partir de 1881 através da amizade com Teixeira Mendes e Miguel Lemos, os pais do positivismo no Brasil e da Igreja Positivista. Porém as mudanças em seu discurso historiográfico já são perceptíveis a partir de 1882 – se é que podemos estabelecer uma data com tanta precisão. Desde 1879 Capistrano de Abreu já fazia parte da Biblioteca Nacional onde vinha tendo contato com documentação inédita e com obras de novos historiadores, não ligados às teorias de Comte, como Niebuhr, Ranke e Humbolt, filhos do realismo histórico alemão. |
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O historiador cearense caminhava rapidamente para o posto de intelectual. Como complemento aos seus estudos lia obras de geografia, economia, sociologia (então, em estado nascente) e psicologia, dominava o francês, o inglês, o latim e agora o alemão. Tal crescimento se tornava incompatível com o positivismo. Sua visão crítica exigia mais, pois ele não tinha como permanecer ao lado de uma escola filosófica que não pesa o valor do testemunho, ou pesquisa as fontes, sua autenticidade e credibilidade. "O historiador sabe que não pode reduzir as ações humanas a regras naturais, porque assim não veremos a vida real, o drama da História. Os fatos reconstruídos, percebem-no todos que exercitam a história, não se enquadram nas causas amplas e gerais com que o positivismo quis explicar o curso da humanidade." (RODRIGUES: 1965, 39-40) |
Rapidamente a História virou "febre intelectual" resultando no surgimento de inúmeros institutos e sociedades especializadas, tendência que o Brasil acompanhou de perto seguindo o modelo dado pelo Instituto Histórico de Paris para a criação de seu Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No entanto, não apenas de influências se fez a produção intelectual brasileira. As idéias francesas e alemãs, logicamente, fizeram parte das rodas de discussões dos estudiosos deste lado do Atlântico. Mas seria ingenuidade pensar que nada de original surgiu na América e que tudo foi importado – pensamento existente até hoje. Se grande parte da história intelectual brasileira é importada, é importante lembrar que as idéias e doutrinas aqui se "deformaram ou conformaram às condições de um novo meio" (COSTA: 1987, 324).
Sendo assim, o IHGB foi o responsável por agremiar os historiadores ou apaixonados por história, para que mais tarde estes autodidatas ou "filosofantes brasileiros", segundo as palavras de João Cruz Costa, pudessem influenciar as gerações seguintes, disputando a atenção dos mais novos com as idéias estrangeiras. É interessante pensar também que a "importação" de idéias e doutrinas se faz mais forte quando não se possui meios com os quais rebate-las ou rechaça-las, e que grandes revoluções – e aqui se incluem as intelectuais – só ocorrem quando há idéias trabalhadas e adequadas aos revolucionários.
Este ensaio não pretende, de forma alguma, discutir ainda se a historiografia "pós-anos 30" sofreu uma revolução ou evolução, mas espera-se que tenha ficado demonstrado que apesar de possíveis erros, incongruências ou inconseqüências uma futura renovação só pode se realizar sobre algo pré-existente, ou seja, Francisco Adolfo de Varnhagen, João Capistrano de Abreu, Joaquim Nabuco, Barão de Rio Branco, João Pandiá Calógeras, entre outros, foram o início para que depois viessem Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, e sucessivamente até os tempos atuais.
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Bibliografia:
- ABRÃO, Bernadette Siqueira – História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
- COSTA, João Cruz – O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de – História Geral da Civilização Brasileira. T. II, vol.3. 6.ed. Rio de Janeiro: Bertrand-DIFEL, 1987.
- IGLÉSIAS, Francisco – Os historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. 1.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: UFMG- IPEA, 2000.
- RODRIGUES, José Honório – Teoria da História do Brasil: Introdução Metodológica. Vol.1. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
- RODRIGUES, José Honório – História e Historiadores do Brasil. 1.ed. São Paulo: Fulgor, 1965.
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