“Os intelectuais radicais não querem compreender nem transformar o mundo, querem denunciá-lo”.
Raymond Aron.
Raymond
Aron nasceu em 14 de março de 1905, em Paris, e é natural que hoje os
liberais lembrem-se dele como o grande combatente das liberdades, um dos
mais atuantes na França do século passado, país dominado por Sartre,
Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, entre outros pensadores esquerdistas de
peso.
A vida de Aron, que completaria 100 anos se
estivesse vivo, foi um combate só. De início, homem de esquerda como
Sartre, ao lado de quem estudou na Escola Normal Superior, na Rue d´Ulm
(Paris), tornou-se, no seu tempo, para além de ativo professor
universitário e jornalista, intérprete privilegiado dos fenômenos
políticos e sociais à luz de vastos conhecimentos históricos, econômicos
e sociológicos. A descrença em relação ao socialismo e, em especial, ao
comunismo, levou-o a polêmicas ferozes com representação expressiva da
“intelligentzyia” francesa, que nunca o perdoou pelo fato de, entre o
culto à União Soviética de Stálin e a defesa dos Estados Unidos,
postar-se ao lado dos americanos, chegando mesmo a articular, na ordem
prática das coisas, a marcante Aliança Atlântica - uma barreira contra o
expansionismo comunista que no pós-guerra dominava metade da Europa e
ameaçava tomar o continente inteiro. Pensando em Aron, o amigo de quem
se tornou rival, Sartre escreveu: “Todos os anti-comunistas são cães”.
Mas
Aron conhecia o comunismo de sobra e, a despeito de justificativas
criadas nos salões da aristocracia esquerdista, não imputava os males do
regime totalitário apenas ao stalinismo. Melhor que ninguém, virou pelo
avesso a obra de Marx, a quem dedicou livro minucioso, “O Marxismo de
Marx” (Editora Arx, 2004) nela descortinando a sintomatologia do
universo concentracionário que acompanha o pensamento (totalizador) do
pai do “socialismo cientifico”. O próprio Aron confessa, no prefácio do
livro, que atravessou 32 anos de sua vida estudando os escritos de Marx,
para chegar a uma conclusão sobre o comunismo: “Creio não haver doutrina tão grandiosa no equívoco, e tão equívoca na grandeza. Foi por isso que a ela dediquei tantas horas...”
Ao
pensador que viveu precisos 78 anos, nunca faltou a energia e a
capacidade de expressar a avaliação do mundo que o cercava. Entre
milhares de artigos, depoimentos e entrevistas, escreveu livros
fundamentais para a compreensão crítica dos fenômenos sociais e
políticos. De fato, em obras como “Introdução à Filosofia da História”
(Gallimard, 1938), ensaio contundente sobre problemas teóricos do
conhecimento histórico; as “Dezoito Lições sobre a sociedade industrial”
(Gallimard, 1962), que traça o perfil positivo da sociedade industrial
no Ocidente; o percuciente “Paz e Guerra entre as nações”, estudo sobre a
raiz dos conflitos bélicos na democracia e nos sistemas totalitários; o
instigante “De uma sagrada família a outra” (Gallimard, 1969),
coletânea de ensaios sobre os marxismos imaginários e, sobretudo, em
“Plaidoyer pour l`Europe decadente” (Robert Laffont, 1977), livro nunca
editado no Brasil, mas que faz a lúcida defesa da civilização ocidental -
Raymond Aron justifica plenamente o porquê do antagonismo sartreano e a
extraordinária dimensão que atingiu na história do pensamento moderno.
No
contundente “O Ópio dos Intelectuais” (1955), publicado no Brasil em
1980 pela UnB, escrito antes do degelo do regime socialista, Aron
desmonta com precisão de relojoeiro os mitos da esquerda, da revolução e
do operariado, desarticulando, com argumentos substanciais, a impostura
do que chama “ideocracia” – o despotismo do preconceito ideológico – e,
por extensão, a conhecida figura do “ideocrata” – o burocrata possuído
por ideologias totalitárias. Neste particular, chega à perfeição
traçando o perfil do intelectual que assume o papel de “confidente da
providência”, o tipo que se vende como defensor dos dominados e entoa
(em nome da “moral histórica” que diz ser portador) loas em torno de um
mundo “mais justo e fraterno que virá no futuro” – e para o qual, na
prática, nada tece além da pura “festividade”.
O
solitário Aron - que repudiou o marxismo existencialista/irracional de
Sartre e o “sintomalismo” de Althusser (o homem da “teoria lacunar”, que
lia os “silêncios” de Marx) -, a despeito de admitir o contrário,
representou muito mais do que mero “espectador engajado” (como chegou a
auto-definir-se numa série de entrevistas que fez para a televisão e
ensejou livro com o mesmo título de Jean-Louis Missika e Dominique
Wolton, publicado pela Nova Fronteira, em 1982). Na realidade, além de
bom combatente liberal, ele ajudou a entender como nenhum outro pensador
europeu o problemático século 20 – com destaque, em retrospecto, para
temas como a França dos anos 30, a segunda grande guerra, a guerra fria,
a descolonização, o degelo soviético, a era da “coexistência pacífica”,
a guerra do Vietnã, o maio de 68 – aprofundando a reflexão sobre a
contradição existente entre liberdade e igualdade – sem jamais deixar de
assinalar, sempre com ironia, que o império soviético, ambicionando as
duas coisas, excluiu a liberdade sem ao menos “sintonizar” a igualdade.
De fato, mais do que testemunha, Aron atuou firmemente no campo da
discussão das idéias, na análise da evolução do pensamento contemporâneo
e na reflexão dos grandes acontecimentos do seu tempo.
Como
arauto da liberdade, o autor de “Histoire et dialetique de la Violence”
encontrou na filosofia liberal “o sistema de valores que podia
estruturar um modelo de ação”. Para ele, o liberalismo, respeitando o
pluralismo das idéias e privilegiando o empirismo na análise e na ação,
representa ainda o sistema “menos mau” para orientar o exercício da
política. De resto, o pensador de origem judaica considerava que a
atividade política não representa obrigatoriamente a luta entre o bem e o
mal mas, sim, a escolha entre o “preferível e o detestável”.
Pessoalmente, como liberal convicto, procurou mobilizar a crença na
força da iniciativa individual, na livre concorrência e na importância
da sociedade industrial - esta, como se sabe, permanentemente satanizada
pelos fetichistas da “alienação”, a idéia proposta por Marx,
exaustivamente explorada pela Escola de Frankfurt.
No
seu livro mais cativante, “Memó
;rias” (Nova Fronteira, 1986) , publicado pouco antes de morrer, de
leitura obrigatória para quem deseje vislumbrar com objetividade os
principais acontecimentos do século XX, Aron confessa a grande
influência que recebeu do pensamento alemão, em especial do historicismo
de Max Weber, o sociólogo para quem o cientista social deve distinguir
com rigor “aquilo que é do que deveria ser”, afirmando, como corolário,
que nenhuma compreensão histórica e social está completa se não incluir a
dimensão religiosa, política e moral dos agentes humanos.
Neste
particular, embora “movido” pelo conceito da neutralidade que Weber
considera preponderante para o alcance da objetividade do conhecimento
nas ciências políticas e sociais, Aron, discordando do mestre, entendia
que a “objetividade” da descrição não é garantida nem pela neutralidade,
que considerava impossível, nem mesmo pela verdade dos fatos pois,
segundo ele, “pode-se muito bem compor um retrato falso com fatos
verdadeiros”.
Os pensadores mais afinados com a
ortodoxia do liberalismo econômico encaram como “excentricidade” um
certo distanciamento de Aron ao “individualismo metodológico” (adotado,
na sua inteireza, por outro liberal convicto, o prêmio Nobel Friedrich
von Hayek), que compreende os fatos sociais e suas explicações como
estritamente decorrentes da conduta dos indivíduos - em contraposição,
por exemplo, ao “holismo” de Karl Popper, com a visão sistêmica dos
“conjuntos sociais”, em que a sociedade funciona por si mesma.
Aron
não se inquietava com a questão. Ele admitia a linha da ambigüidade
como resposta à supremacia das metodologias “holísticas” ou
“individualistas”. No caso, essa postura parece explicar-se pelo fato do
pensador, antes de se dedicar aos estudos isolados das questões
econômicas, ter sido uma mente exercitada na análise da sociologia e da
história, o que, no entanto, não excluía a crítica aberta ao
planejamento econômico dos estados totalitários, de certo modo
preconizada na concepção marxista de que “a natureza real do homem é a
totalidade das relações sociais”.
Depois de mais
de vinte anos de sua morte, ocorrida em 1983, a vasta e eclética obra de
Aron continua a cada dia mais viva e atual. É difícil apontar, hoje,
qual seria o seu substituto como interprete (e contendor) liberal
sensível e polivalente. Outro importante pensador francês, Jean-François
Revel, ensaísta liberal dos mais férteis e autor de obras analíticas do
porte de “A Tentação Totalitária” e “Nem Marx nem Cristo”, e ainda o
inglês Paul Johnson, historiador dos mais completos e ambiciosos do
século, são dois nomes consideráveis para enfrentar os desafios das
análises dos fenômenos econômicos, políticos e sociais que se avolumam
diante dos nossos olhos. Mas terão eles, isoladamente, a argúcia, a
abrangência e a originalidade de Aron?
A resposta pertence ao leitor.
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