Texto extraído da Obra de Le Goff "O Apogeu da Cidade Medieval"
Os
documentos que nos informam sobre a vida cotidiana do citadino desse
período são raros e fragmentários. Apesar dos fabliaux e dos ditos, os
burgueses, e principalmente os "miúdos", ainda não se impuseram o
suficiente, como no fim da Idade Média, para que a literatura e os atos
da prática lhes consignem, salvo excepcionalmente, a memória. Contudo,
podem-se determinar alguns comportamentos específicos dos habitantes da
cidade no cotidiano.
Em primeiro lugar está subsistir, alimentar-se . Vimos que o abastecimento é um grande problema, prioritário, para a cidade. O citadino, mais ou menos de acordo com os seus meios, é em relação ao camponês um grande consumidor de pão, desde que se libertou (sob Filipe Augusto) da obrigação [pág. 222] de passar pelo forno do senhor, o forno banal. O citadino assa o pão em sua casa ou compra-o num dos numerosos padeiros. Mais ainda, em relação ao camponês, o citadino é um grande consumidor de carne e, em relação ao nobre, que por prazer e por prestígio come muita caça, ele consome muita ave. É também maior consumidor de vinho e menor de sidra e de hidromel, salvo talvez em Flandres. Gosta de queijo e em Paris, no século XIII, aprecia-se o queijo de Brie ("o queijo dos reis e o rei dos queijos"), os queijos da Cham-pagne, da Normandia (pont-l’éveque, gournay), de Touraine e de Auvergne. A cidade do século XIII é também vítima da mania das especiarias, das especiarias novas, longínquas, trazidas pelo grande comércio (canela, cravo-da-índia, noz-moscada). Ela descobre a mostarda fabricada pelos dijoneses já no século XII. Em compensação, como os camponeses, ela se serve sobretudo, como gordura, do sain de porco ("banha" e "toucinho").
Na ordem do vestuário, o principal fenômeno perceptível é a imitação do traje aristocrático pela burguesia rica. As leis suntuárias de Filipe, o Ousado (1279), e de Filipe, o Belo (1294), têm por finalidade recolocar cada qual no seu lugar e antes de mais nada os burgueses ousados demais: "nenhum burguês terá carro, nenhum burguês nem burguesa usará nem pele de esquilo, nem cinzenta, nem de arminho... nenhum burguês nem burguesa poderá usar nem ouro, nem pedras preciosas, nem coroa de ouro ou de prata... nenhum burguês nem burguesa terá tochas de cera"... (E. Faral).
Não poderão comprar tecidos acima de um determinado preço. Um jovem burguês de Paris, rico e instruído, Pierre Gentien, compôs por volta de 1290 um poema, Le tornoiement des dames de Paris, onde desfilam as mulheres das grandes famílias burguesas de Paris: os Anquetin, os Arrode, os Barbette, os Bigue, os Boual, os Bourdin, os Chançon, os Gentien (sua própria família), os Mareei, os Pidone, [pág. 223] os Savrasin. São só roupas de panos raros, jóias caras, e essas damas têm, a exemplo dos nobres, suas armas.
Por certo, a grande burguesia, sobretudo em Paris, alcançou uma grande fortuna, uma posição incomparável com a situação da qual partiu. Mas a literatura não lhe concederá demasiado? Ela a pinta, sem dúvida, mais sob as imagens do seu desejo do que sob as da sua realidade. São, em todos caso, os códigos alimentares e indumentários a que ela aspira seguir e mostrar, na sociedade medieval, que é a do parecer. Um parecer que a sociabilidade urbana exacerba e tende a tornar cotidiano.
Em nível de um cotidiano mais modesto, reencontramos as preocupações essenciais da alimentação.
Um regulamento da comissão municipal de Saintes-Maries-de-la-Mer em 1286 — editado e estudado por P. H. Amargier — revela as práticas dos mercadores contras as quais é preciso defender os habitantes. Quatro acusados principais, os açougueiros, os peixeiros, os padeiros, os moleiros, e a totalidade dos próprios habitantes. Os açougueiros se agrupam para impor preços elevados, misturam carnes estragadas às carnes boas e fazem da rua do matadouro um lugar fétido. Os peixeiros vendem peixes podres misturados aos bons. Os padeiros fazem fornadas suplementares, para as pessoas que têm meios de pagá-los acima do preço fixado. Os moleiros enganam quanto ao peso do trigo ou da farinha. Os habitantes jogam sebo fétido nas ruas. Finalmente, o problema de água potável é sério: alguns a armazenam para vendê-la, outros a poluem por negligência.
Se desse humilde cotidiano nos elevarmos para o nível superior das festas que rompem tal monotonia, tampouco disporemos de uma documentação suficiente para inventariar e analisar um sistema festivo urbano nessa época. O ciclo das cerimônias é dominado pelas festas religiosas, freqüentemente sem vínculo particular com a sociedade urbana, [pág. 224] e pelas festas reais e principescas. Quando muito, pode-se notar que em Paris, nos reinados de São Luís e Filipe, o Belo, o Palais Royal se abre ao povo citadino por ocasião dos grandes regozijos reais, notadamente nas cerimônias através das quais os filhos do rei são armados cavaleiros (o futuro Filipe, o Ousado, no Pentecostes de 1267, Luís de Navarra, os filhos de Filipe, o Belo, de Filipe de Valois e duzentos jovens nobres no Pentecostes de 1313).
Arlette Higounet-Nadal observou, além das festas religiosas tradicionais, festas mais diretamente ligadas à comunidade urbana de Périgueux.
Há, em primeiro lugar, as festas de acentuado caráter tradicional que se desenrolam em torno do chafariz da Clautre, no centro da cidade de Puy-Saint-Front, chafariz esse que sempre conservou "um certo caráter sagrado". Lá realizava-se a Vigília de São João, festa "fortemente impregnada de paganismo" (gostaríamos de saber mais a respeito dela). Ela é atestada por documentos de arquivos em 1320-1321, 1321-1322, 1322-1323, 1323-1324 e 1328-1329. Por outro lado, a primeira referência à plantação de uma árvore de maio no chafariz data apenas de 1430.
Outras festas, atestadas desde o século XIII, manifestam também a apropriação, por parte dos burgueses, dos divertimentos tradicionais. São as "caridades", festas durante as quais se distribuíam víveres aos pobres com fundos provenientes das rendas dos burgueses e de doações testamentárias. A caridade essencial era a da Terça-Feira Gorda, do "Mardi Lardier", denominada Baco. Ela era marcada principalmente por uma corrida de mulheres. Distribuía-se carne salgada aos pobres e levava-se parte dela aos três conventos mendicantes da cidade. A caridade da segunda-feira de Pentecostes, que consistia numa distribuição de pão, era acompanhada de festejos cujos pormenores são desconhecidos.
Em Paris, podem-se observar dois fenômenos festivos particulares. [pág. 225]
O primeiro são as festas ligadas ao meio estudantil. Elas se realizam sobretudo por ocasião da promoção dos licenciados à categoria de mestres (são os ancestrais dos nossos "pots de thèse") e dão lugar a danças e cortejos que a Igreja denomina "procissões do diabo". Há também os divertimentos que se estendem de 6 de dezembro, dia de São Nicolau, patrono dos estudantes, até o Natal, e no decorrer dos quais os jovens universitários dão espetáculos teatrais.
O segundo fenômeno é a prática freqüente, havendo um pretexto para a festa, da dança e particularmente da dança de roda camponesa, a carole. Em Paris, o povo se entrega a ela sobretudo no domingo, em Saint-Germain-des-Prés. Contra essas danças, também elas danças do diabo, a Igreja ao que parece, invectiva em vão. Por trás dessas invectivas eclesiásticas, sente-se a urbanização, por esses citadinos dos quais muitos são camponeses recentemente imigrados, de práticas campesinas. Uma contracultura instala-se na cidade.
Estamos muito mal informados, para esse período, sobre as procissões de corporações e confrarias, de eventos municipais (entrega do cargo, por exemplo — como em Dijon — ao prefeito) que permitem, para épocas posteriores, estudar a hierarquia urbana nos cortejos e os itinerários processionais. A nova sociedade urbana ainda não parece ter constituído um sistema e um espaço festivos.
Em primeiro lugar está subsistir, alimentar-se . Vimos que o abastecimento é um grande problema, prioritário, para a cidade. O citadino, mais ou menos de acordo com os seus meios, é em relação ao camponês um grande consumidor de pão, desde que se libertou (sob Filipe Augusto) da obrigação [pág. 222] de passar pelo forno do senhor, o forno banal. O citadino assa o pão em sua casa ou compra-o num dos numerosos padeiros. Mais ainda, em relação ao camponês, o citadino é um grande consumidor de carne e, em relação ao nobre, que por prazer e por prestígio come muita caça, ele consome muita ave. É também maior consumidor de vinho e menor de sidra e de hidromel, salvo talvez em Flandres. Gosta de queijo e em Paris, no século XIII, aprecia-se o queijo de Brie ("o queijo dos reis e o rei dos queijos"), os queijos da Cham-pagne, da Normandia (pont-l’éveque, gournay), de Touraine e de Auvergne. A cidade do século XIII é também vítima da mania das especiarias, das especiarias novas, longínquas, trazidas pelo grande comércio (canela, cravo-da-índia, noz-moscada). Ela descobre a mostarda fabricada pelos dijoneses já no século XII. Em compensação, como os camponeses, ela se serve sobretudo, como gordura, do sain de porco ("banha" e "toucinho").
Na ordem do vestuário, o principal fenômeno perceptível é a imitação do traje aristocrático pela burguesia rica. As leis suntuárias de Filipe, o Ousado (1279), e de Filipe, o Belo (1294), têm por finalidade recolocar cada qual no seu lugar e antes de mais nada os burgueses ousados demais: "nenhum burguês terá carro, nenhum burguês nem burguesa usará nem pele de esquilo, nem cinzenta, nem de arminho... nenhum burguês nem burguesa poderá usar nem ouro, nem pedras preciosas, nem coroa de ouro ou de prata... nenhum burguês nem burguesa terá tochas de cera"... (E. Faral).
Não poderão comprar tecidos acima de um determinado preço. Um jovem burguês de Paris, rico e instruído, Pierre Gentien, compôs por volta de 1290 um poema, Le tornoiement des dames de Paris, onde desfilam as mulheres das grandes famílias burguesas de Paris: os Anquetin, os Arrode, os Barbette, os Bigue, os Boual, os Bourdin, os Chançon, os Gentien (sua própria família), os Mareei, os Pidone, [pág. 223] os Savrasin. São só roupas de panos raros, jóias caras, e essas damas têm, a exemplo dos nobres, suas armas.
Por certo, a grande burguesia, sobretudo em Paris, alcançou uma grande fortuna, uma posição incomparável com a situação da qual partiu. Mas a literatura não lhe concederá demasiado? Ela a pinta, sem dúvida, mais sob as imagens do seu desejo do que sob as da sua realidade. São, em todos caso, os códigos alimentares e indumentários a que ela aspira seguir e mostrar, na sociedade medieval, que é a do parecer. Um parecer que a sociabilidade urbana exacerba e tende a tornar cotidiano.
Em nível de um cotidiano mais modesto, reencontramos as preocupações essenciais da alimentação.
Um regulamento da comissão municipal de Saintes-Maries-de-la-Mer em 1286 — editado e estudado por P. H. Amargier — revela as práticas dos mercadores contras as quais é preciso defender os habitantes. Quatro acusados principais, os açougueiros, os peixeiros, os padeiros, os moleiros, e a totalidade dos próprios habitantes. Os açougueiros se agrupam para impor preços elevados, misturam carnes estragadas às carnes boas e fazem da rua do matadouro um lugar fétido. Os peixeiros vendem peixes podres misturados aos bons. Os padeiros fazem fornadas suplementares, para as pessoas que têm meios de pagá-los acima do preço fixado. Os moleiros enganam quanto ao peso do trigo ou da farinha. Os habitantes jogam sebo fétido nas ruas. Finalmente, o problema de água potável é sério: alguns a armazenam para vendê-la, outros a poluem por negligência.
Se desse humilde cotidiano nos elevarmos para o nível superior das festas que rompem tal monotonia, tampouco disporemos de uma documentação suficiente para inventariar e analisar um sistema festivo urbano nessa época. O ciclo das cerimônias é dominado pelas festas religiosas, freqüentemente sem vínculo particular com a sociedade urbana, [pág. 224] e pelas festas reais e principescas. Quando muito, pode-se notar que em Paris, nos reinados de São Luís e Filipe, o Belo, o Palais Royal se abre ao povo citadino por ocasião dos grandes regozijos reais, notadamente nas cerimônias através das quais os filhos do rei são armados cavaleiros (o futuro Filipe, o Ousado, no Pentecostes de 1267, Luís de Navarra, os filhos de Filipe, o Belo, de Filipe de Valois e duzentos jovens nobres no Pentecostes de 1313).
Arlette Higounet-Nadal observou, além das festas religiosas tradicionais, festas mais diretamente ligadas à comunidade urbana de Périgueux.
Há, em primeiro lugar, as festas de acentuado caráter tradicional que se desenrolam em torno do chafariz da Clautre, no centro da cidade de Puy-Saint-Front, chafariz esse que sempre conservou "um certo caráter sagrado". Lá realizava-se a Vigília de São João, festa "fortemente impregnada de paganismo" (gostaríamos de saber mais a respeito dela). Ela é atestada por documentos de arquivos em 1320-1321, 1321-1322, 1322-1323, 1323-1324 e 1328-1329. Por outro lado, a primeira referência à plantação de uma árvore de maio no chafariz data apenas de 1430.
Outras festas, atestadas desde o século XIII, manifestam também a apropriação, por parte dos burgueses, dos divertimentos tradicionais. São as "caridades", festas durante as quais se distribuíam víveres aos pobres com fundos provenientes das rendas dos burgueses e de doações testamentárias. A caridade essencial era a da Terça-Feira Gorda, do "Mardi Lardier", denominada Baco. Ela era marcada principalmente por uma corrida de mulheres. Distribuía-se carne salgada aos pobres e levava-se parte dela aos três conventos mendicantes da cidade. A caridade da segunda-feira de Pentecostes, que consistia numa distribuição de pão, era acompanhada de festejos cujos pormenores são desconhecidos.
Em Paris, podem-se observar dois fenômenos festivos particulares. [pág. 225]
O primeiro são as festas ligadas ao meio estudantil. Elas se realizam sobretudo por ocasião da promoção dos licenciados à categoria de mestres (são os ancestrais dos nossos "pots de thèse") e dão lugar a danças e cortejos que a Igreja denomina "procissões do diabo". Há também os divertimentos que se estendem de 6 de dezembro, dia de São Nicolau, patrono dos estudantes, até o Natal, e no decorrer dos quais os jovens universitários dão espetáculos teatrais.
O segundo fenômeno é a prática freqüente, havendo um pretexto para a festa, da dança e particularmente da dança de roda camponesa, a carole. Em Paris, o povo se entrega a ela sobretudo no domingo, em Saint-Germain-des-Prés. Contra essas danças, também elas danças do diabo, a Igreja ao que parece, invectiva em vão. Por trás dessas invectivas eclesiásticas, sente-se a urbanização, por esses citadinos dos quais muitos são camponeses recentemente imigrados, de práticas campesinas. Uma contracultura instala-se na cidade.
Estamos muito mal informados, para esse período, sobre as procissões de corporações e confrarias, de eventos municipais (entrega do cargo, por exemplo — como em Dijon — ao prefeito) que permitem, para épocas posteriores, estudar a hierarquia urbana nos cortejos e os itinerários processionais. A nova sociedade urbana ainda não parece ter constituído um sistema e um espaço festivos.
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