Por Regina Schöpke
"Quando o mundo era cinco séculos mais jovem, tudo o que acontecia na vida era dotado de contornos bem mais nítidos que os de hoje. Entre a dor e a alegria, entre o infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós...”. É assim, de modo belo e poético, que o brilhante historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) inicia sua extraordinária obra “O outono da Idade Média”. E, com estas palavras, ele inaugura sobretudo uma nova maneira de pensar e de fazer a História.
Contra o positivismo e seu ideal de frieza e objetividade, e, mais ainda, contra o mecanicismo (que transforma toda a vida e todo o vivo em algo previsível e determinado), Huizinga apresenta uma visão mais orgânica e funcional do mundo que ele busca compreender, colorindo e dando movimento e vida aos homens que, de outra maneira, apareceriam para nós congelados e paralisados em esquemas racionais e abstratos. Sem dúvida, estamos diante de um vitalista, como define muito bem Jacques Le Goff, um dos mais notáveis representantes da Nova História (uma filha tardia de Huizinga, que, com justiça, é considerado o precursor da História das Mentalidades e da História Cultural).
Só para citar uma frase de um dos mais renomados vitalistas da época de Huizinga, o filósofo francês Henri Bergson, “a vida é pura zona de indeterminação”. Isto quer dizer simplesmente que a vida não é previsível e nem lógica: eis porque a razão clássica não consegue dar conta dela. Huizinga provavelmente acrescentaria: a razão, sozinha, não consegue realmente dar conta da vida: nem da vida presente e nem da vida que passou. Eis porque, para ambos, será preciso recorrer à intuição se realmente desejamos conhecer as coisas em profundidade. Afinal, sem este sentimento de simpatia ou de empatia, que nos faz mergulhar em outros mundos, tudo parece estranho demais, ou seja, qualquer outro mundo transforma-se num “transmundo” (termo usado por Nietzsche para designar “o outro”, “o não-eu”, aquilo que é irredutível a mim).
É claro que os homens não são iguais em todos os tempos, embora sejamos até tentados a crer nisto quando vemos que jamais cessam as guerras, as perseguições, as epidemias, os fanatismos, a opressão, a miséria. Mas também é óbvio que, apesar das diferenças cruciais de cada época, o pano de fundo da História é sempre a Humanidade. Eis porque é preciso aproximar-se ao máximo do universo real dos homens, se desejamos compreender melhor o período em que eles viveram. Foi isto, afinal, que esta maneira nova de experimentar o passado revelou aos historiadores da época de Huizinga e das seguintes: que era preciso criar um elo maior entre o pesquisador e o objeto de seu conhecimento. Em outras palavras, era preciso produzir um novo olhar para uma nova História, aquela que não narra apenas os grandes fatos e feitos (história do poder, por excelência), mas que mergulha na vida cotidiana para conhecer os homens mais de perto, os seus sonhos e desejos, seus medos e obsessões, suas paixões e expectativas, enfim, sua maneira de sentir e de experimentar as coisas.
E foi exatamente isto que Huizinga fez em seu “Outono”: ele deu voz e cor aos homens dos séculos XIV e XV, e fez isto de modo apaixonado, porque havia nele certa nostalgia por um tempo em que os homens se sentiam parte de um todo maior, porque — digam o que disserem, e ainda que os renascentistas e iluministas tenham razão em considerar a Idade Média como um período repleto de obscurantismo e de fanatismo religioso — a verdade é que a cristandade, com seu ideal cosmopolita, conseguiu reunir os homens (nobres e reis, camponeses e burgueses) em um organismo vivo. De tal maneira que toda falta pessoal era também uma falta coletiva (a despeito, é claro, de todas as hipocrisias, que não nasceram na Idade Média e nem morrerão conosco).
Neste outono medieval, ou seja, neste momento em que tudo florescia e atingia a sua plena maturidade, precedendo o fim inexorável — porque tal é o sentido deste livro, escrito originalmente em 1919: mostrar o momento em que a Idade Média chega ao seu clímax, para depois declinar e morrer, embora não tão rápido quanto se imagina — o que não faltavam eram procissões e sermões. De todos os lugares vinham os cristãos, guiados pelos sinos, em busca de salvação e de alívio, uma forma de catarse social que, afinal de contas, ajudava a manter o equilíbrio desta sociedade que vivia com a morte instalada no seio da vida (e isto é literal, não apenas porque se trata de um mundo que aguarda a felicidade no além, mas também porque a morte era tão próxima e insidiosa que se fazia, ao mesmo tempo, assustadora e profundamente familiar).
É verdade que estamos falando de um mundo repleto de contradições, mais triste e angustiado do que alegre, mas todo tempo tem sua cota de felicidade e de dor, diz Huizinga, e ainda que não fosse de bom tom exaltar a vida naquele período, é verdade que já existiam manifestações artísticas que antecipavam o que Huizinga chamou de “alegria de viver”, sentimento que marcará indelevelmente o Renascimento. Seja como for, ao encanto do texto (traduzido, pela primeira vez, diretamente do original holandês), os editores resolveram acrescentar outro deleite para os sentidos: nada menos que 320 maravilhosas ilustrações que tornam a leitura do livro uma experiência ainda mais fascinante. Em tudo e por tudo, trata-se de um livro fundamental, que, acima de qualquer coisa, é belo e afirmativo, como cada aurora, cada alvorecer, que sempre anuncia que a vida continua a despeito da escuridão.
REGINA SCHÖPKE é filósofa, medievalista e autora, entre outros, dos livros “Matéria em movimento” e “Dicionário filosófico”
0 comentários:
Postar um comentário