Sem medo
de ser feliz, o historiador Paul Johnson
cutuca ainda mais as feridas da esquerda, que perdeu
o rumo da História
cutuca ainda mais as feridas da esquerda, que perdeu
o rumo da História
Carlos
Graieb
Prestes a completar
70 anos, o ensaísta Paul Johnson é o que se poderia
chamar de católico britânico em estado puro. Formado na
tradicional Universidade de Oxford, ele defende a
monarquia, os dogmas da Igreja e a cultura clássica.
Sempre atento à decadência dos valores morais, Johnson
adora fustigar a esquerda e os artistas modernos. Faz
isso toda semana na revista Spectator, uma
trincheira da inteligência inglesa, da qual é
colunista. Suas principais armas são o texto impecável
e uma verve que mesmo os adversários mais ferrenhos
respeitam. Em paralelo com o jornalismo, Johnson firmou
uma brilhante carreira como historiador. É dono de uma
bibliografia com dezesseis títulos. Três deles foram
lançados no Brasil: Intelectuais, Tempos
Modernos e História dos Judeus. A obra mais
recente de Johnson é um catatau de 1.088 páginas, com o
título de A History of the American People (Uma
História do Povo Americano). Os Estados Unidos,
descritos por Johnson como "a maior de todas as
aventuras humanas", são um dos assuntos da
entrevista abaixo:
Veja —
Por que os Estados Unidos são um país digno de
admiração?
Johnson
— Há muita coisa errada nos Estados Unidos, mas os
americanos são grandes "resolvedores de
problemas". Veja o seu déficit orçamentário, que
nos anos 70 e 80 parecia conduzir diretamente ao
apocalipse. De repente, foi completamente domado: o país
floresce e comemora superávit atrás de superávit. A
esquerda vive chamando os Estados Unidos de império, mas
não acho isso justo. Trata-se de um país que teve
poucas colônias e que soube livrar-se delas assim que
esses territórios mostraram capacidade para o
autogoverno. Os EUA são apenas uma nação gigantesca,
com interesses comerciais em todo o mundo, que exercem
sua influência com força. Acho esse exercício
absolutamente legítimo. Sou velho o bastante para
lembrar do tempo em que os Estados Unidos tendiam para o
isolacionismo. Foi um período terrível para a Europa.
Gente da geração de meu pai implorou para que os EUA
entrassem para a Liga das Nações e mantivessem o
interesse na Europa, mas eles se negaram. Um dos
resultados dessa omissão foi a II Guerra Mundial. Eu
realmente espero que os Estados Unidos se interessem pelo
resto do mundo e exerçam seu poderio bélico e
econômico em favor da democracia.
Veja —
Em seu livro Intelectuais,
o senhor diz que a grande questão da vida intelectual é
a posição a assumir diante do problema da violência. A
violência pode ser moral e intelectualmente
justificável?
Johnson —
Nada me intriga mais na vida de pensadores renomados do
que perceber que um grande número deles apoiou ou apóia
a violência em diversas situações. O francês
Jean-Paul Sartre, por exemplo, sustentava que a
violência era tolerável em certas circunstâncias.
Algumas das pessoas que seguiram seus ensinamentos foram
ainda piores — basta pensar no grupo de intelectuais
responsável pelos massacres no Cambodja, todos
discípulos de Sartre. Outro caso de filósofo que
deplorou a violência em certos casos e a endossou em
outros foi o inglês Bertrand Russell. Ele chegou a
sugerir um ataque nuclear preventivo contra a União
Soviética. De minha parte, sigo um dos mandamentos da
Igreja — "Não matarás". Acho, porém,
que exista algo como a "guerra justa", no
sentido descrito por Santo Tomás de Aquino no século
XIII. Já a violência do dia-a-dia, que afeta a vida dos
cidadãos, é um problema espinhoso. Combatê-la com a
violência do Estado seria legítimo? A tão discutida
pena de morte, por exemplo, é um desses casos sobre os
quais pessoas de boa vontade, inteligência e educação
terão sempre opiniões conflitantes.
Veja —
Um ataque dos EUA ao Iraque seria um caso de "guerra
justa"?
Johnson —
Saddam Hussein é um ditador insano, com currículo
assombroso de crueldade, vício e agressão. Regimes como
o dele têm de ser mantidos sob controle e vigilância.
Considero os Estados Unidos uma espécie de
"polícia global" absolutamente necessária
enquanto certos párias continuarem dispostos a quebrar a
ordem internacional ou construir armas de destruição em
massa.
Veja —
Voltando aos intelectuais, o senhor escreveu recentemente
um artigo reclamando da entrega de uma comenda real ao
historiador Eric Hobsbawn, uma das mais eminentes figuras
da esquerda. Por quê?
Johnson —
Hobsbawn foi feito Acompanhante de Honra, uma distinção
bastante elevada na Grã-Bretanha. Não reclamei por
motivos pessoais, mas porque me parece inadequado que um
stalinista não arrependido como Hobsbawn receba essa
espécie de honraria. Ninguém que tenha apoiado o
totalitarismo deveria ser homenageado com título.
Veja —
O senhor não acredita que haja um legado de esquerda a
ser explorado no presente?
Johnson —
Não. Karl Marx foi um embusteiro intelectual que
distorcia fatos. É claro que seu sistema não funcionou
quando aplicado à União Soviética: estava todo
embasado em falsidades. Seu único legado foi conduzir um
país rico como a Rússia à pobreza. Não há qualidades
redentoras, nenhuma que seja, no marxismo. Aqueles que
discordarem de mim, que mostrem provas. Mostrem-me um
regime que tenha empregado princípios marxistas e tenha
melhorado a vida de seus cidadãos. Não há. Todos que
enveredaram por esse caminho na Europa, América Latina,
Ásia ou África falharam. Também não faço nenhuma
distinção entre nazismo, comunismo e fascismo. Foram
todos movimentos totalitários e radicais pertencentes à
esquerda. Marx, afinal de contas, derivou todas as suas
teorias de Hegel, assim como os nazistas. Todos os
sistemas totalitários do século XX foram de esquerda:
apenas na superfície pareceram pertencer à direita.
Todos os sistemas radicais do século XX foram ruins
segundo os mais retos padrões morais. São sistemas que
não podem ser melhorados ou civilizados. É impossível
um comunismo com face humana. O regime chinês não se
humanizará. Com sorte, desaparecerá no tempo, e é tudo
que podemos dizer.
Veja —
O que pensa do papa João Paulo II?
Johnson —
Ele é o maior papa do século XX. Fez um trabalho
magnífico ao resgatar a Igreja Católica de uma espécie
de liberalismo sem rumo. Restaurou a disciplina no clero.
Como resultado, a Igreja Católica está mais saudável
hoje do que nas últimas décadas. Além de suas
qualidades de líder religioso e estadista, o papa tem
uma personalidade admirável. Quem quer que tenha estado
em sua companhia concordará com isso. Ele tem um carisma
intenso e exala bondade.
Veja —
João Paulo II é criticado pela rigidez de suas
opiniões sobre temas como aborto, sexo e casamento. Ele
não estaria em descompasso com a modernidade?
Johnson —
É preciso lembrar que essas não são opiniões pessoais
do papa. São opiniões da Igreja, fazem parte de sua
doutrina. Dois mil anos de catolicismo condenam o aborto,
o papa não pode alterar esse fato. João Paulo II
simplesmente afirma — guiado pelo Espírito Santo,
como toda vez que um papa se pronuncia — que os
preceitos da Igreja sobre sexo e casamento devem ser
estritamente seguidos. Numa época em que o comportamento
sexual é irresponsável, acarretando um número
crescente de nascimentos ilegítimos, mães solteiras e
crianças abandonadas, ele está fazendo aquilo que é
necessário — desse ponto de vista, portanto,
ninguém é mais moderno.
Veja —
O senhor também acha o aborto um crime?
Johnson —
Sim, claro que sim. Trata-se de uma forma de homicídio.
Talvez se devam fazer algumas ressalvas — quando a
vida da mãe está em perigo, por exemplo —, mas
como prática institucionalizada o aborto é perverso,
errado e deveria ser banido. Essa é uma das grandes
questões do nosso tempo. Acredito que os Estados Unidos
mudarão sua legislação permissiva com relação ao
aborto, como fizeram em relação à escravidão, e
tomarão medidas para proteger a criança ainda não
nascida. Uma vez tomada essa decisão, todos os outros
países seguirão no mesmo caminho. Em 100 anos o aborto
não será mais legal, em nenhuma circunstância.
Veja —
Em artigos recentes o senhor criticou o sexo na TV. Não
é um excesso de moralismo?
Johnson —
Alguns meses atrás, chamei o diretor do Canal 4 inglês,
Michael Grade, de "pornógrafo-mor" da
televisão britânica. Ele entendeu a dica e pediu
demissão, de modo que posso me gabar de uma pequena
vitória. A televisão é inócua no melhor dos casos,
destrutiva no pior. Creio que seria mais útil para as
pessoas ler bons livros em vez de passar grande parte do
dia na frente de uma caixa falante.
Veja —
O senhor tem um livro chamado Para o Inferno com Picasso.
Nos ensaios desse livro, também ataca o pintor francês
Cézanne. O que lhe agrada nas artes plásticas?
Johnson —
Quando eu era criança, costumava sair com meu pai, que
era pintor, para desenharmos juntos. Passávamos horas
diante de igrejas e catedrais, que eram seus motivos
pictóricos preferidos. Um dia ele disse: "Bem,
Paul, você é muito talentoso, mas não acho que deveria
se tornar artista. Eu prevejo um tempo ruim para as artes
plásticas. Fraudes como Picasso vão governar pelos
próximos cinqüenta anos. Portanto, vá fazer outra
coisa". Meu pai morreu quando eu tinha 13 anos e eu
segui seu conselho, transformando-me em escritor. Mas
nunca deixei a pintura e, nos últimos tempos, confesso
que meu maior deleite vem dela. Em abril, tenho uma
exposição agendada numa galeria de Londres. Além
disso, transformei-me num colecionador e hoje sou dono de
um acervo bastante razoável de 350 obras, mais uma
enorme coleção de livros de arte. Como pintor e
colecionador, gosto do tradicional e do realista. E não
acho que esteja errado nisso. Suspeito que, no futuro, o
século XX será visto como um período de aberrações.
Um período em que a arte descarrilou por um desvio
modernista antes de voltar à pintura tradicional. Nesse
dia, talvez percebam que Picasso era um artista de
talento, mas também um cínico, que percebeu que poderia
ter imenso sucesso se fizesse concessões às modas
estéticas. E que Cézanne era simplesmente um mau
pintor, ainda que esforçado.
Veja —
Sua opinião sobre pintura moderna também vale para a
literatura?
Johnson —
Acho que não é preciso tanta preocupação com a
literatura quanto com a pintura. Obras literárias são
escritas em linguagem que todo mundo pode entender e
julgar autonomamente. Artes plásticas, por outro lado,
intimidam um pouco. As pessoas acham que precisam de
especialistas para explicar-lhes o que está acontecendo.
Daí nascem as fraudes, como Picasso. De qualquer modo,
não tenho lido muitos ficcionistas contemporâneos. O
último romancista moderno que li com prazer foi Evelyn
Waugh, e ele morreu nos anos 60. Talvez pudesse citar
também meu amigo Kingsley Amis, morto há três anos
— mas não seu filho, Martin, que é absolutamente
ilegível. Entre os poetas, Auden não era ruim, e
Stephen Spender é muito bom. Minha autora preferida, no
entanto, é Jane Austen. Ela morreu há 200 anos.
Veja —
A coroa britânica dá sinais de querer aproximar-se do
povo. O que o senhor acha da idéia?
Johnson —
A rainha está certa ao tentar uma melhor comunicação
com seus súditos. Mas não acho que a coroa deva buscar
popularidade, no sentido em que estrelas de cinema são
populares. Seria terrivelmente indigno.
Veja —
A comoção em torno da morte da princesa Diana
pareceu-lhe de bom gosto?
Johnson —
Sim, eu aprovei aquele rompante espontâneo de sentimento
popular. A coroa tentou diminuir a importância daquela
morte e foi corrigida pela população. Deram-lhe,
então, um enterro adequado, que foi ao mesmo tempo uma
grande demonstração democrática. Eu gostava muito de
Diana. Era uma pessoa rara, com um único defeito grave:
o pavoroso gosto para homens.
Veja —
Logo depois da eleição do primeiro-ministro Tony Blair,
a maioria dos intelectuais ingleses parecia bastante
satisfeita, inclusive o senhor. A lua-de-mel continua?
Johnson —
Sinto que surgiu uma ponta de ceticismo em muitos de meus
amigos. Mas continuo otimista. Temos um ótimo
primeiro-ministro: jovem, charmoso, inteligente e firme
nos princípios. Prepara-se agora para apresentar seu
plano de reforma do Estado de bem-estar, uma jogada
política bastante ousada. Como sabemos, a Inglaterra foi
pioneira na implantação de um Estado de bem-estar, mas
depois viu esse aparato sair das proporções adequadas e
se tornar excessivamente caro. Qualquer reforma nessa
máquina será complicada e sofrerá oposição. Mas
Blair é determinado e, se o plano for tão radical e
ambicioso quanto espero que seja, poderá se tornar um
modelo para todo o mundo, da mesma maneira que a fórmula
de privatização da senhora Thatcher tornou-se
universal.
Veja —
As comparações freqüentes entre Tony Blair e Bill
Clinton procedem?
Johnson —
Não, de jeito nenhum. Clinton é um oportunista, um
homem de moral muito duvidosa. Blair tem convicções,
fé religiosa e princípios. Eles são antípodas.
Veja —
O senhor votaria pelo impeachment de Clinton, caso fosse
provado que ele realmente assediou sexualmente
secretárias e estagiárias?
Johnson —
Acho que preferiria outra solução. O impeachment só
foi usado uma vez na História dos Estados Unidos, contra
Andrew Johnson. Os resultados foram muito duvidosos. É
um processo longo e trabalhoso, que tende a sofrer todo
tipo de interferência política. Caso seja mesmo
impossível provar a inocência do presidente, gostaria
que ele nos oferecesse a solução mais fácil e saísse
de fininho.
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