O
historiador Jacques Le Goff
revisita a vida, o tempo e as
circunstâncias do Poverello
revisita a vida, o tempo e as
circunstâncias do Poverello
Roberto Pompeu de Toledo
São Francisco Recebendo as Chagas, afresco de Giotto |
E
se Jesus voltasse? Dostoievski imaginou a cena, no famoso episódio
de Os Irmãos Karamazov intitulado "O Grande Inquisidor".
Um dia, Jesus aparece em Sevilha, no tempo da Inquisição.
Ainda na véspera, 200 hereges haviam sido queimados. A multidão
logo reconhece o recém-chegado. Vão lhe abrindo caminho
e se ajoelhando. Um cego grita que o cure – e nesse exato momento
a luz penetra-lhe as pálpebras. Uma família que vinha enterrar
a filhinha pede-lhe que a ressuscite – e ele o faz. A agitação
chama a atenção do cardeal, que sai à rua. Ele também
reconhece Jesus de imediato – e o que faz? Manda prendê-lo.
Trancafiam-no numa cela. Mais tarde o cardeal vai visitá-lo. Está
irritado. Com que propósito, com que direito, essa súbita
aparição? "Não tens o direito de acrescentar nada
ao que disseste", diz, desfiando o argumento que é o ponto alto
da história. "Por que nos vieste perturbar?" E promete que, no
dia seguinte mesmo, haverá de levar o intruso à pior das
fogueiras. Ele não tinha o direito de acrescentar fosse o que fosse
ao que já dissera. E a administração do que dissera
não lhe cabia mais.
Dostoievski é ficção. No mundo real, algo próximo
da reencarnação de Jesus ocorreu quando, em 1181 ou 1182,
na cidade italiana de Assis, veio à luz um certo Francisco Bernardone.
Ele não nasceu pobre, como Jesus – era filho de rico comerciante
de tecidos. Mas se fez pobre por escolha, e inaugurou a nova vida numa
cena teatral em que, tendo de um lado o bispo da cidade e, do outro, seu
indignado pai, se despiu até ficar todo nu – "nu como Cristo",
disse. Conhece-se, talvez como a de nenhum outro santo, a legenda de São
Francisco de Assis. Ele pregava aos passarinhos. Andava com uma simples
túnica, na qual amarrava uma corda, à guisa de cinto. Tinha
horror a tudo o que era posse ou poder. Beijava os leprosos. Fazia poesias
singelas, como o "Cântico do Irmão Sol". Sobretudo, o Poverello,
como foi apelidado, tinha como projeto, mais de um milênio depois,
retomar o Evangelho em sua literalidade. Foi tão bem-sucedido,
na empreitada da imitação de Cristo, que consta ter sido
premiado, ao fim da vida, com os estigmas – as mesmas marcas que
Jesus recebeu na cruz.
São
Francisco de Assis, de Jacques Le Goff (Record, 251 páginas),
é um livro para quem quer se aprofundar no conhecimento do personagem-título
e da sociedade de seu tempo – sua economia, suas classes sociais
e estruturas mentais. O autor, um dos mais eminentes historiadores franceses
da atualidade, especialista em Idade Média, já publicara
em 1996 na França (e em 1999 no Brasil) um monumental São
Luís – biografia de 900 páginas do contemporâneo
de São Francisco que, no mesmo ano de 1226 em que este morria,
assumia o trono na França, sob o título de Luís IX.
Este São Francisco, se coincide com o livro anterior ao
debruçar-se sobre o mesmo período histórico e ter
um santo como tema, difere, primeiro, pelas proporções mais
modestas e, segundo, por não ser uma obra em si, mas uma reunião
de quatro textos, escritos em diferentes épocas. Advirta-se que
não se trata de leitura fácil. Os dois primeiros textos,
dedicados respectivamente à sociedade da época e à
biografia do santo, são mais acessíveis. Os dois últimos,
"O vocabulário das categorias sociais em São Francisco de
Assis e seus biógrafos no século XIII" e "Franciscanismo
e modelos culturais do século XIII", situam-se, já se vê
pelos títulos, no mundo da alta especialização.
Le Goff, entre outras observações de quem conhece o período
com intimidade, mostra como São Francisco transportou para a religião,
ele que na juventude viveu entre os ricos, e assimilou-lhes as modas,
as fórmulas corteses da cavalaria. A pobreza, ele a chamava de
"Senhora Pobreza". Era uma namorada a quem cortejava. O "jogral de Deus",
como foi chamado, aproximava-se com cuidados de amante de flores da repulsa
como a miséria, a sujeira e a lepra. Às moedas, dizia que
não se devia dar mais importância do que às pedras.
Tudo o que cheirasse a riqueza e poder lhe merecia aversão. Não
gostava de livros, porque eram objetos caros, que só a riqueza
podia comprar, e porque traziam conhecimento, algo que leva à superioridade,
ou à ilusão da superioridade, e portanto ao poder.
Da perspectiva de hoje, São Francisco estaria entre o hippie e
o revolucionário – em qualquer caso, um contestador do sistema.
Ele próprio reconhecia-se como, digamos, diferente. "Disse o Senhor
para mim que queria que eu fosse um novo louco no mundo", afirmou. Sua
face "revolucionária" compreende a decisão de pregar nas
praças, junto ao povo, encarando o mundo de frente, bem como escolher
os pobres e os simples como modelos. Mas há também, nota
Le Goff, uma face "reacionária". Numa época em que a Europa
se reencontrava com o conhecimento, e floresciam as universidades, condenou
os livros e a ciência. Numa época em que a economia monetária
propiciava a passagem do sufoco feudal para a abertura do capitalismo,
condenou o dinheiro.
Francisco equilibrou-se a um passo da heresia. Não é certo,
como demonstra Le Goff, que quisesse fundar uma ordem. Preferiria uma
"fraternidade", uma comunidade de uns poucos, como a de Jesus. Sua insistência
em cultivar a pobreza e reviver o Evangelho, numa época em que
a Europa se enriquecia e o alto clero mergulhava no luxo, já era,
de si, um escândalo. A ojeriza ao poder e às hierarquias
piorava-lhe a situação. Ao contrário de outros movimentos
contemporâneos com igual dose de contestação, no entanto,
o seu não foi anatematizado. O balé de aproximações
e distanciamentos em que se constituiu sua relação com a
hierarquia católica desembocou em conciliação. Para
começar, ele acabou concordando em transformar o movimento numa
ordem, o que significava acomodá-lo no seio da Igreja. Ao redigir
a Regra da nova ordem, Francisco incluiu itens como a obrigação
de pregar, para todos os irmãos, e o direito de desobediência
a superiores eclesiásticos, por razões de consciência.
Ao passar pelo crivo da Cúria Romana, no entanto, a Regra foi drasticamente
modificada. A pregação só poderia ser feita com autorização
dos bispos, e o direito de desobediência desapareceu. No capítulo
do culto à pobreza, Francisco havia estatuído que, em viagem,
os irmãos não levassem bolsa, alforje, dinheiro ou cajado.
Depois da intervenção da Cúria, só restou
a proibição de ir a cavalo.
Aos poucos, desarmava-se o franciscanismo de sua radicalidade. E, se isso
pôde ser desencadeado ainda em vida do santo, depois se tornou muito
mais fácil, e célere. A canonização veio logo
em 1228, dois anos após a morte, o que sugere a estratégia
de, sem perda de tempo, apropriar-se de sua memória e administrar-lhe
o culto, em vez de deixá-lo perigosamente solto nas ruas e praças
que Francisco tanto percorreu. Mais dois anos e, em 1230, dá-se
a "injúria", como diz Le Goff, da majestosa basílica erguida
em Assis em louvor do santo – monumento que, até hoje, faz
simultaneamente a delícia dos turistas e admiradores da arte e
a negação do cultuado. Não demorou igualmente para
que o dinheiro fosse aceito na Ordem, salvo para fruição
individual, e o estudo e os livros entrassem na rotina dos irmãos.
Fica-se indeciso entre o que mais admirar. Se a empreitada de São
Francisco ou a habilidade com que ela foi absorvida e retrabalhada. Se
o desafio do santo ou a facilidade com que tal desafio foi desarticulado.
O que nos traz de volta ao Grande Inquisidor, que não é
citado no livro de Le Goff, nem tem nada a ver com ele, mas que nos serve
para formular uma conclusão. Que fogueira, que nada. O poder e
a ordem estabelecida têm modos muito mais sutis e eficazes de lidar
com o que lhes soa inconveniente.
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