Multiculturalismo(s): identidade cultural é opressão individual
Na ressaca dos atentados de Julho no
Reino Unido[1], e num momento em que o Canadá esteve prestes a
reconhecer tribunais arbitrais que aplicariam a chária, verifica-se um
questionamento crescente e inevitável do multiculturalismo, uma palavra usada em pelo menos três sentidos diferentes que convém distinguir.
Na verdade, alguns dos que mais
veementemente afirmam «rejeitar o multiculturalismo» são fascistas mais
ou menos envergonhados que pretendem aproveitar-se do fanatismo de uma
minoria entre os muçulmanos e dos actos terroristas de meia dúzia para
promoverem um programa político de uniformização «racial» (no caso dos
racistas) ou religiosa (no caso dos clericalistas), que avançaria pela
exclusão política e social dos imigrantes. A crítica que fazem do
fascismo islâmico é portanto meramente oportunista e releva de intenções
tão fascistas (ou clericalistas) como as dos jihadistas. Estas pessoas,
quando rejeitam o «multiculturalismo», referem-se a um facto social (a presença de imigrantes e a consequente diversidade cultural) que revitaliza as sociedades e as regenera demograficamente.
Numa segunda acepção, fala-se em
«multiculturalismo» para descrever um discurso baseado na ideia de que
os valores éticos ou mesmo os direitos políticos só podem ser criticados
a partir «de dentro» de cada cultura, e portanto por «pessoas dessa
cultura». Esta corrente de pensamento defende o máximo de tolerância (no
limite, a indiferença) por qualquer prática apresentada com uma caução
cultural ou religiosa, designadamente os casamentos forçados ou, em
Portugal, a excisão do clitóris. Esta corrente aprisiona os indivíduos à
sua identidade cultural ou religiosa de origem, e negligencia todos
aqueles que desejam abandonar, em parte ou mesmo no todo, a religião ou
cultura em que foram educados. Pior ainda, entrega a definição dessa
religião ou cultura aos seus puristas, ou seja, aos mais integristas
(Salman Rushdie acusa disto mesmo o governo britânico[2]). Os produtores
desta linha de pensamento são sobretudo académicos e educadores, tão
intoxicados de pós-modernismo que são incapazes de olhar para um
indivíduo sem verem a «identidade cultural» ou «identidade religiosa»
que esse indivíduo adquiriu acidentalmente. E no entanto, por detrás
desses efeitos da educação todos temos os mesmos instintos e
necessidades.
Finalmente, a palavra
«multiculturalismo» é ainda usada para designar os modelos políticos
comunitaristas, em que os cidadãos não são tratados como indivíduos
iguais em direitos e deveres e destinados a conviver uns com os outros,
mas sim como membros de «comunidades culturais» com direitos distintos,
condenadas a coexistirem separadamente. Evidentemente, estas políticas
legitimam-se com o discurso criticado no parágrafo anterior. A Holanda e
o Reino Unido são exemplos (imperfeitos) de multiculturalismo de
Estado, que em ambos os casos foi o sucessor histórico do
multiconfessionalismo. Refira-se, concretamente, os tribunais arbitrais
islâmicos que há pouco estiveram em discussão no Canadá, o financiamento
público de escolas privadas confessionais (protestantes, católicas,
judaicas, muçulmanas) ou a indiferença perante o elogio da violência
feito por alguns imãs. Existe um sector importante da esquerda
contemporânea que é politicamente comunitarista, mas alguma direita
(mais religiosa ou mais identitária-racista, conforme os casos) está
também interessada no separatismo étnico-religioso que lhe conforta os
preconceitos e lhe afasta da frente os indesejáveis.
Felizmente, o debate sobre os
multiculturalismos está a conduzir muitos à conclusão de que, nestes
tempos conturbados, só a laicidade à francesa, com a sua separação clara
entre uma esfera pública neutral e uma esfera privada onde se pratica
facultativamente a religião, e também com a sua igualdade de direitos e
deveres entre cidadãos independentemente da religião, poderá responder
ao desafio que a integração dos muçulmanos representa. É esse o
argumento apresentado por Gilles Kepel[3], e Salman Rushdie[4] já
concluiu o mesmo. Convém aqui esclarecer que, ao contrário de um
fantasma habitualmente evocado, não deve ser considerada racista toda e
qualquer crítica de culturas e religiões minoritárias ou o conferir
direitos e deveres iguais a todos os cidadãos, mas que pelo contrário
deve ser considerado racista tratar os cidadãos diferenciadamente em
função das suas pertenças religiosas, atribuir-lhes direitos diferentes
(que inexoravelmente separam e discriminam as minorias) ou ainda ser
complacente com discursos fascizantes[5].
No momento actual, é necessário recordar
ao mundo que o muçulmano que abandona a sua religião não é nem uma
anomalia estatística nem um traidor à sua comunidade. É um indivíduo que
exerce a sua liberdade de pensamento. E apenas uma República laica lhe
permitirá seguir o seu caminho, livre da opressão identitária e dos
mulás que o tentam instrumentalizar.
Ricardo Gaio Alves