(Conferência proferida em 31.05.2001 na Universidade Federal de São Paulo/Brasil -UNIFESP, evento promovido pelo Núcleo de Fé e Cultura da UNIFESP e pelo Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da UNIFESP, em parceria com o Núcleo de Fé e Cultura da. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
Dalton
Luiz de Paula Ramos [1]
Antes de falar do tema que foi proposto, considero importante falar da minha pessoa e do meu trabalho. Tenho 20 anos de formado e desde o início estive vinculado à Universidade. Hoje completo 19 anos de contrato com a Universidade de São Paulo; então sou um acadêmico, não sei se mereço ou não o título, mas esta é a minha vida.
Sempre trabalhei no Departamento de Odontologia Social da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo. Lá fazemos de tudo um pouco, desde trabalhos sobre políticas públicas de saúde, de ética, chegando também àquela Odontologia Legal que tem um paralelo com a Medicina Legal, aquela mesma com atividades periciais de identificação de cadáveres.
Acabei me concentrando de início, como área de principal interesse, com a Deontologia, com a Ética Profissional e mais recentemente, há cerca de 7 ou 8 anos, enveredei pela Bioética. Essa origem deontológica sempre me trouxe uma série de desafios. Em 94 eu publiquei um livro que trata da Ética Profissional, mais especificamente no campo da Odontologia. Levanto no livro uma série de perguntas para as quais eu não tinha respostas: estava insatisfeito com o trabalho em que a ética é reduzida à normas de conduta, que a ética se esconde em um código que na grande maioria das vezes, é um código “do que eu não posso fazer”.
O que faltava? Faltava uma fundamentação, algo que me possibilitasse entender um juízo ético, que trouxesse uma luz sobre as questões que se colocam no dia-a-dia profissional. Como professor da área (e também desenvolvendo uma série de atividades em comitês de ética) o meu dia-a-dia é me relacionar com colegas que enfrentam problemas. Os problemas da Odontologia talvez não tenham a mesma dimensão dos problemas da Medicina, enquanto que a Odontologia, via de regra, não trata das questões de vida e morte, mas trata da saúde, lida com pessoas.
Devo ou não fazer tal procedimento clínico? Será que agi certo? E principalmente, uma das questões que eu julgo a mais desumana de todas a situação mais desumana que pode existir para o profissional, para a pessoa do profissional da área da saúde: - serei ou não processado se não fizer ou fizer tal coisa? É triste quando a relação com o paciente é reduzida ao aspecto jurídico, ao aspecto da responsabilidade jurídica. Digo que esta é a postura mais desumana para o profissional e por tabela também para o próprio paciente.
Não quero com isso dizer que devemos jogar o Direito e as leis na lata do lixo, mas acho que temos que refletir muito antes de chegar na questão jurídica, até para recolocá-la no seu justo lugar.
Quero, hoje, propor para vocês uma pequena reflexão sobre Bioética Geral. Vamos buscar o fundamento ético, um juízo sobre valores, sobre princípios éticos. Não é o objetivo deste nosso encontro enfrentar questões específicas da praxis profissional, do como agir frente a determinada situação; ficaremos na fundação, na fundamentação do juízo ético.
Nestes últimos anos, desde 94, vim a conhecer a Bioética e vim a participar de uma forma intensa desse meio que é a Bioética brasileira. A Sociedade Bioética Brasileira é influenciada por um modelo de Bioética de escola inglesa, de enfoque liberal. Mas este não é o único enfoque possível.
No ano passado, participando do Congresso Mundial de Bioética em Londres, mais uma vez constatei pessoalmente que o debate bioético fora do Brasil se reveste de várias facetas e que não há uma hegemonia do discurso de um ou de outro modelo.
Se, porém, levantarmos as publicações brasileiras dos últimos cinco anos sobre Bioética, nós vamos ver que determinados autores são muito pouco editados no Brasil. Um em particular, que vai ser a minha referência central de hoje, o Professor Elio Sgreccia, tem apenas dois ou três livros publicados no Brasil e é impressionante ver como efetivamente este é um autor de grande peso no cenário mundial.
A bioética é o estudo da moralidade da conduta humana no campo da ciência da vida. É interessante destacar que a Bioética inclui a chamada Ética Médica. A Ética Profissional Médica é, então, um capítulo da Bioética. Em outras palavras: para entender, para aprofundar, para refletir sobre a Ética Profissional nós temos que fazer referência à Bioética.
Outro aspecto importante da Bioética é que ela não está restrita às Ciências da Saúde. Ela, desde que nasceu, quer olhar para a vida e para tudo, para todas as áreas do conhecimento que, de uma forma ou de outra, tem implicações sobre a vida. A sua atuação tem que ver com a vida. E é por isso que na sociedade bioética, nos congressos de Bioética, não se vê a hegemonia dos médicos, dentistas e enfermeiros; vemos juristas, filósofos, teólogos, economistas. É curioso estar no meio de economistas. Mas o que é que o economista tem que ver com a vida? Tem muito a ver com a vida porque os planos econômicos, governamentais, por exemplo, se geram desemprego ou não, garante a vida ou garante a morte.
Esse é o enfoque da Bioética, esse verdadeiro enfoque interdisciplinar. Quer dizer algo diferente do que é o multidisciplinar, que conhecemos muito bem das nossas tradições universitárias, principalmente no Brasil. Multidisciplinar é sinônimo de um amontoado de diferentes profissionais, de diferentes formações, que não interagem entre si. Nesse modelo esses profissionais apenas empurram o problema para outro: - “Agora não é mais comigo (médico), agora é com a assistente social; – Agora não é mais comigo, agora é com o psicólogo”. Isso não é uma equipe, é um amontoado de gente competindo entre si.
A Bioética tem uma proposta interdisciplinar de integração entre as disciplinas. Falam alguns em um outro termo, em “transdisciplinar”: que requer uma unificação conceitual entre as disciplinas. É difícil entender este transdisciplinar dentro da nossa formação cartesiana de disciplinas distintas, de disciplinas totalmente independentes e isoladas, que mascaram a unidade da ciência. O que parece evidente nesse modelo de ciência, em que fui formado (e com certeza vocês também foram formados) é de se vivenciar uma total solidão na praxis.
Trago aqui para vocês algumas reflexões sobre o modelo bioético que denomina-se Modelo Personalista. Como já disse o meu autor de referência é Elio Sgreccia. Qual é o ponto de partida desse modelo personalista? Personalista vem de “Persona”, de pessoa. O ponto de partida é reconhecer a pessoa, reconhecer a identidade da pessoa e a sua essência, pois só reconhecendo-a, podemos então saber como respeitá-la. O reconhecimento tem como desdobramento o respeito à dignidade da pessoa humana. Então o ponto é o reconhecimento e o respeito à dignidade da pessoa humana.
É claro que esta questão da dignidade é complexa e poderíamos ficar discutindo aqui horas a fio. O que é dignidade? Essa questão da dignidade pode ser também um pouco etérea, se não temos um referencial muito preciso do que é a pessoa humana e qual é a sua vocação.
Nesse aspecto o Modelo Bioético Personalista coloca-nos uma “antropologia de referência” e essa antropologia de referência, esse personalismo ontológico, que é a base para o juízo bioético, busca entender o homem na sua essência, em sua natureza, em sua verdade, em sua totalidade e em sua unidade.
Unidade é a palavra usada por Sgreccia. Um comentário muito curioso surgiu com os meus alunos de pós-graduação ao aprofundar este tema. Partíamos das grandes perguntas centrais do ser humano: “Quem sou eu? O que é a felicidade”? Aquelas perguntas que estão no cerne de toda a reflexão filosófica. Quando falávamos que a pessoa é una, um aluno deu um exemplo que achei genial. Disse: “- Olha é verdade, tanto que a gente não se pergunta ‘quem somos eu’, eu pergunto ‘quem sou eu’”. Porque se alguém se perguntasse “quem somos eu”, seria o caso de mandar para o psiquiatra, pois tem lá um quadro psicopatológico meio complicado que precisa ser tratado.
As pessoas se reconhecem como unidade. E, ao mesmo tempo, a pessoa é também uma totalidade, isto é, é uma complexidade, é um conjunto muito grande de fatores. Uma unidade e uma totalidade, por isso a bioética fala em “unitotalidade”.
“Essa essência é una” palavras de Sgreccia, nosso autor de referência, “uma unitotalidade pois é constituída por uma corporeidade, um corpo, um físico”. Bio-psíquico-social é a expressão que escutamos no nosso dia-a-dia acadêmico. E mais, este bio-psíquico-social é animado por uma espiritualidade, que recebeu uma existência singular e única e que por isso postula um Criador” [2] , isto é, se reconhece dependente de um Outro. Vejam que é importante aqui não fazer um discurso religioso interpretado como piegas, como confessional ou como dogmático. Que fique claro que antes de falar de um aspecto confessional ou mesmo dogmático, eu declaro publicamente ter o meu credo religioso. Mas nós aqui estamos falando de algo que antecede isso, de uma postura realista. Aliás esse personalismo é também tido como “personalismo realista” no sentido de que quer olhar para a totalidade dos fatores envolvidos. Então mesmo que o cientista não professe credo religioso, pois não é disso que estamos falando, eu afirmo categoricamente que se é verdadeiramente cientista terá que reconhecer uma dimensão que extrapola o bio-psíquico-social na pessoa humana. Terá que reconhecer uma transcendência, uma metafísica ao se referir à pessoa humana.
Aprofundemos esta questão do espírito. Durante pelo menos sete anos desenvolvi atividades administrativas dentro do ambiente hospitalar, no caso o Hospital Universitário da Universidade de São Paulo. Vivendo nos corredores do hospital, onde tenho muitos amigos, era interessante verificar como essa dimensão espiritual da pessoa e do paciente era sempre reconhecida, ou, no mínimo, intuída. Desculpem mas não me convence quem diz: - eu não reconheço isso. E uma dessas experiências que eu vi acontecer muitas vezes no ambiente hospitalar, é que quando a terapêutica médica não tinha mais solução chamava-se o padre. “Agora chama o padre, não tem mais fármaco, nosso arsenal terapêutico já acabou”, então chama-se alguém que pode ajudar a dar um sentido ao fim eminente, à morte.
Acho que muitos de vocês testemunharam também que essa dimensão espiritual é terapêutica, essencialmente terapêutica. Uma das minhas linhas de pesquisa, uma das que eu mais gosto está relacionada com AIDS, as questões da ética e da AIDS. E uma das grandes constatações é que a sobrevida (agora temos um arsenal terapêutico que já consegue um bom resultado, mas mesmo antes de ter esse arsenal terapêutico), uma das questões que sempre garantiu sobrevida, uma sobrevida maior, e isso é estatístico, é quando se considerava essa dimensão espiritual, tanto que muitos dos serviços que tem os melhores indicadores de saúde para AIDS são aqueles em que o paciente é acolhido na sua totalidade enquanto pessoa, mesmo que a característica do ambulatório de atendimento não seja tão complexa como a de alguns centros de referência altamente especializados. E estas entidades, mesmo não confessionais, não eram ligadas à Igreja Católica, aos protestantes, ou qualquer outro credo religioso. É necessário que aquela pessoa (paciente), ao ser acolhida naquela entidade de assistência possa contar com a assessoria de um médico, de psicólogo, de assistente social e que possa ter também o acompanhamento de um padre, de um pastor, de alguma referência dentro daquela que é a espiritualidade própria, confessional daquela pessoa. É inerente à pessoa humana. esta espiritualidade; não dá para não reconhecer isso.
Então vamos partir dessa premissa. Uma unitotalidade porque a pessoa é constituída por uma corporeidade animada por uma espiritualidade que recebe uma existência singular e única e por isso postula um Criador. Esta concepção fundamental e fundante nos leva a respeitar a vida física do homem. Olha que curioso! Partindo dessa unitotalidade nós chegamos ao respeito à vida física, à sua integridade corpórea, à sua saúde, já não em nome de um vitalismo biológico mas em relação à dignidade da pessoa e da totalidade de seu ser.
Esse modelo personalista inspira-se, então, “na visão do bem integral da pessoa que recusa propostas ideológicas, parciais e contingentes e que objetiva a promoção e a defesa de todo o bem da pessoa, qualquer que seja a condição em que ela se encontra” [3] .
O personalismo a que nos referimos não deve ser confundido com o individualismo subjetivista. É uma nuance, é um detalhe; se não estamos atentos, é fácil confundir esta questão da centralidade da pessoa com o individualismo. Esse individualismo subjetivista seria uma concepção na qual se sublinha como constitutiva da pessoa quase exclusivamente a sua capacidade de auto-decisão e de escolha.
O personalismo clássico do tipo realista afirma prioritariamente o estatuto objetivo essencial, existencial, isto é, ontológico da pessoa. “A pessoa é, antes de tudo, um corpo espiritualizado, um espírito encarnado que vale por aquilo que é e não somente pelas escolhas que faz” [4] .
“Somente partindo de uma antropologia que considera a pessoa humana na sua unitotalidade podemos superar a postura individualista, que é típica de uma ética liberal muito em voga, muito dominante no nosso meio” [5] Nessa última postura liberal, a idéia de uma liberdade sem responsabilidade é tida como supremo e último ponto de referência. Então se nós paramos para verificar o que nos circunda como mentalidade dominante vemos que se propõe uma liberdade sem responsabilidade e isso é o topo de tudo. Tanto que muitas vezes todo o discurso bioético começa e acaba, (curioso ver isso em alguns congressos), em torno do princípio da autonomia. O princípio da autonomia é um dos clássicos princípios propostos, inclusive, em muitos dos documentos da OMS, por um modelo da Bioética chamado Principalista que nos propõe os princípios do benefício, da não maleficência, da autonomia, e da justiça.
É interessante ver como a Bioética de fundo liberal insiste no princípio da autonomia, relegando a um segundo plano os outros princípios. Alguns autores muitas vezes ordenam esses quatro princípios como: autonomia, benefício, (não maleficência) e justiça. Também para o leitor desatento isso pode parecer irrelevante mas não é. Ao colocar a questão da autonomia em primeiro plano quer se conferir à liberdade , naquele sentido liberal subjetivista de liberdade como livre-arbítrio, o ponto de partida para as decisões “éticas”.
Uma reflexão sobre os princípios sem se recuperar o referencial antropológico e ontológico transforma os princípios em estéreis e confusos. Ocorre que hoje, devido a uma forte influência da cultura liberal e relativista, o discurso da defesa do “livre-arbítrio” é o “politicamente correta”. Fatalmente, então, cai-se no “eu respeito o seu ponto de vista e você respeita o meu” e acabamos saindo da discussão sem ter solução para o que fazer, por exemplo, com meu paciente quando, no ambulatório, tivermos que tomar uma decisão que pode ser até de vida ou morte.
Esse individualismo renuncia reconhecer nos valores qualquer objetividade com base na assim chamada lei de Hume pela qual os valores não podem ser derivados da realidade. Reconhece-se neles uma origem somente subjetiva. Os valores são subjetivos, e resume-se toda a eticidade na reivindicação da liberdade. Assim o princípio da autonomia não tem mais o significado kantiano que resumia a força vinculante absoluta do imperativo moral ditado pela razão prática. Atualmente esse princípio da autonomia, assim concebido, confunde-se com livre escolha do sujeito, que não aceita nem obrigações nem limites, a não ser o respeito, difícil e utópico, da liberdade alheia. Na verdade o que se diz é que “a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro”, e essa é a expressão máxima do discurso dominante. Mas isso é utópico. Primeiro é difícil, depois é utópico. Por que é utópico? “Porque trata-se na realidade de uma liberdade pela metade [6] ... é liberdade apenas para aqueles que detêm o poder de fazê-la valer”. Essa questão da minha liberdade acabar aonde a liberdade do outro começa, vai valer na medida do meu poder; se sou o Presidente do Congresso Nacional, essa minha liberdade vai ter uma dimensão, enquanto que se eu sou alguém que nem sequer pode freqüentar as universidades a não ser nos ambulatórios (muitos freqüentam as universidades pelas portas dos ambulatórios), esse meu espaço de liberdade vai ser outro. Por isso que é uma liberdade pela metade, por isso é que é utópica.
A partir de um personalismo antropológico, a liberdade tem uma raiz e uma condição; quer dizer o ser, a vida. A raiz e a condição é o ser, a vida. Portanto quem quer respeitar a liberdade deverá respeitar a vida na qual ela está inserida. A liberdade, então, não poderá estar jamais separada do respeito à vida e do engajamento na responsabilidade pela vida e pela pessoa alheia.
“É na luz da dignidade da pessoa humana que se afirma por si mesma que a razão aprende o valor moral específico de alguns bens, para os quais a pessoa está naturalmente inclinada. E a partir do momento em que a pessoa humana não é redutível a uma liberdade que se auto projeta mas comporta uma estrutura espiritual e corpórea determinada a existência originária de amar e respeitar a pessoa como um fim e nunca como um simples meio implica também intrinsecamente o respeito a alguns bens fundamentais sem o qual se cai no relativismo e no arbítrio” [7] .
Eu não sei se para vocês essas palavras tem o mesmo impacto que tem para mim, primeiro pelo seu significado, depois pela sua praticidade no nosso dia-a-dia, porque no nosso dia-a-dia principalmente como profissionais da área da saúde, muitas vezes a pessoa é reduzida a um meio, muitas vezes a pessoa é reduzida à doença, muitas vezes a pessoa é reduzida ao sucesso da terapêutica. A pessoa não é o fim em si, mas o meio. O fim é o sucesso da terapêutica, o sucesso profissional ou o insucesso. Essa postura é significativa do esquecimento do “eu”, do “ser”, uma postura niilista..
João Paulo II, examinando as ideologias do nosso tempo [8] fala-nos do niilismo.. “O niilismo”, segundo o Papa, “antes mesmo de estar em contraste com as exigências e os conteúdos próprios é negação da humanidade do homem e também da sua identidade, de fato é preciso ter em conta que o esquecimento do ser implica inevitavelmente a perda de contato com a verdade objetiva e consequentemente com o fundamento sobre o qual se apóia a dignidade do homem, desse modo abre-se espaço à possibilidade de apagar da face do homem os traços que revelam a sua semelhança com o infinito, com Deus, conduzindo-o progressivamente a uma destrutiva ambição de poder ou ao desespero da solidão. Uma vez que se privou o homem da verdade é pura ilusão pretender torná-lo livre. Verdade e liberdade com efeito ou caminham juntas, ou juntas miseravelmente perecem”.
Colocada a fundamentação do nosso juízo bioético – o reconhecimento da identidade da pessoa e a dignidade humana – podemos, então, enfrentar os tais princípios da Bioética. Hoje existe um debate muito grande no mundo com relação a essa questão: deve ou não a Bioética propor princípios? ao propor princípios não estaríamos reduzindo a Bioética a uma nova deontologia ?
A formulação dos princípios sem fundamentação ontológica, antropológica, como já disse e repito, torna-os estéreis e confusos. Então não é a questão de jogar na lata do lixo esses ou outros princípios, mas é ter claro uma fundamentação ou fundação. Aí nós começamos a entendê-los e saber como usá-los de uma forma adequada, sem hegemonia entre um ou outro desses princípios, com uma hierarquia entre eles.
Porém vou fugir um pouquinho desses três ou quatro princípios para poder continuar fiel ao meu autor de referência que é Sgreccia, porque Sgreccia também propõe princípios, mas com outros enfoques. O aspecto mais importante é que ele diz que deve existir uma ordem nesses princípios.
Devemos ordená-los como nós ordenamos nossos instrumentais cirúrgicos (no centro cirúrgico nossos professores nos ensinam: montem a bandeja de instrumentais cirurgicos com tal seqüência de instrumentais, depois na hora do procedimento use primeiro este, depois este, etc). Qual seria esta ordem? Diz Sgreccia [9] : O primeiro seria o princípio da defesa da vida física. Para quem está escutando isso pela primeira vez pode parecer paradoxal: como foi que partindo da questão da essência, da unitotalidade, da transcendência da pessoa agora se fala da vida física? Não há paradoxo se entende-se que a vida física é co-essencial para a manifestação dos valores. Se você está com dor de barriga, ah! Meu amigo, todo o teu dia fica em função da dor de barriga. Não adianta tentar, não vai ter filme legal para você assistir, não vai ter namorado ou namorada bonita, todo o dia vai ser condicionado pela dor de barriga. Então a defesa da vida física é fundamental e aparece, então, como primeira referência porque ela é co-essencial à manifestação desses valores ou a plena manifestação desses valores, sendo, então, a vida o direito primeiro e o valor primeiro da pessoa. Porém (atenção): ser o primeiro não significa que é um princípio absoluto.
Na seqüência dessa abordagem Sgreccia chega ao segundo princípio: o princípio de liberdade e de responsabilidade. Implica, este princípio, na responsabilidade do profissional de tratar o enfermo, como um fim e jamais como um meio, como também na responsabilidade do médico de não aderir a um pedido do paciente considerado pela consciência moral inaceitável, pois não se tem o direito de dispor da própria integridade física recusando, por exemplo, cuidados indispensáveis à sobrevivência, quando está em jogo a sobrevivência, porque o direito de defesa da vida física vem, ontologicamente, antes do direito da liberdade.
Cito então um outro autor, Julian Marias, que é um importante filósofo contemporâneo: “Eis que o problema da liberdade é absolutamente decisivo, não somente para a filosofia cristã, mas também em geral”. (Ele não está falando só a partir de uma filosofia cristã. O que ele nos fala, então, vale para todos: crentes e não crentes) “O homem é pessoa, esta é a grande descoberta para a qual tenho empregado uma fórmula. Qual é a fórmula? Uma descoberta que não tem sido amplamente pensada, a pessoa, mas tem sido vivida”. (Essa questão da pessoa não tem sido muito pensada, nos diz o filósofo, mas tem sido vivida, isto é, experimentada). “O cristão sim, se entende plenamente como pessoa e é justamente na medida em que se vive como pessoa se pode também entender o outro lado. A visão cristã, não esqueçamos”, (aí ele faz um referencial de cunho teológico, de cunho confessional mas muito interessante) “não esqueçamos que o conceito de trindade que é essencial no cristianismo consiste precisamente numa interpretação pessoal de Deus, tão pessoa que é tripessoal, isto é, há relações pessoais até dentro da divindade, há uma vida divina que tem uma característica intrinsecamente pessoal, e isto é de capital importância” [10] .
Portanto é essencial recuperar a seguinte dimensão com relação a questão da liberdade: a liberdade é claro que é um bem, não queremos jogar a liberdade na lata do lixo, nem escravisar as pessoas (isso seria desumano também), mas temos que reconhecer que o uso da liberdade implica em responsabilidade. Eu tenho uma responsabilidade para com relação à minha vida, com a minha vida física, e responsabilidades que extrapolam os meus interesses particulares porque têm implicações no meu contexto familiar, no meu contexto de relações sociais.
Portanto eu não posso prescindir da minha vida como um bem só meu que eu faço uso do jeito que eu melhor achar. A minha liberdade em decidir sobre os aspectos que dizem respeito à minha vida física tem implicações outras, tem implicações que me transcendem. Portanto eu tenho responsabilidades.
E para concluir eu citaria os outros princípios, propostos por Sgreccia. À partir do princípio de defesa da vida física e do princípio liberdade e responsabilidade, chega-se no princípio terapêutico. Este princípio trata da decisão sobre a terapêutica que eu vou propor, a terapêutica que eu vou implementar ao meu paciente. Segundo esse princípio é lícito intervir sobre a vida física da pessoa, por exemplo, fazendo cortes e mutilações cirúrgicas. Olha que coisa curiosa, falava-se do respeito à vida física mas existem terapêuticas que propõe a mutilação cirúrgica. Nos nossos centros cirúrgicos os profissionais estão diariamente fazendo mutilações em prol do quê? Da preservação da vida física. Na minha instituição fazemos procedimentos cirúrgicos ligados à Odontologia em que se tiram mandíbulas, com grandes seqüelas que nós sabemos que vão permanecer por toda a sobrevida do paciente. Mas, porque está se fazendo isso? É por uma tentativa terapêutica de remover, no exemplo, um câncer.
Então se o princípio da defesa da vida física aparece em primeiro lugar, ele é relativo frente às questões que envolvem a própria sobrevida. A este princípio se liga a norma da proporcionalidade das terapias para avaliar o equilíbrio entre riscos e benefícios.
Aprofundemos esse conceito das proporcionalidades das terapias porque na nossa formação hipocrática, típica da nossa escola médica (quando eu falo médica eu estou me referindo às áreas da saúde), é fundamental “fazer o bem e evitar o mal”; esse é um princípio justo porém muitas vezes essa lógica hipocrática tem como fundamento um tipo de relação que não é justa porque ela parte, muitas vezes, de um autoritarismo do profissional. Se olha-se o Juramento de Hipócrates, ele nos diz: o médico é dotado de um poder e de um saber e ele decide, ele trata. Ele decide é palavra central e isso é injusto. Isso é injusto para com relação ao profissional porque essa proporcionalidade das terapias (fazer o bem e evitar o mal) não deve considerar só a pessoa do paciente, deve considerar também a pessoa do profissional. O que é bom e o que é ruim para o paciente, o que é bom e o que é ruim para a pessoa do profissional? Temos que olhar, neste princípio terapêutico, também para a pessoa do profissional.
Como professor, responsável pela formação de futuros profissionais, vivo enfrentando uma questão. Como transmitir isso tudo para meus alunos ? Como educa-los ? Um primeiro esforço é no sentido de apresentar-lhes essa fundamentação, mas não depende só disso. O caminho é sermos efetiva companhia para eles.
Eu tenho pela frente os alunos da graduação e da pós-graduação e tenho claríssimo o meu papel. Aliás eu tenho dramaticamente claro o meu papel pois fatalmente vem a tona também os meus limites pessoais. Eles olham para mim, como também olham para o outro professor na clínica lá do nosso hospital que tem uma postura diferente e que trata o paciente com menos respeito do que ele trata a própria caneta, porque a caneta o professor não pode perder, não pode sujar, não pode deixar cair no chão e o paciente é tratado como uma coisa que vale menos que uma canetinha barata. Como trabalhar com os alunos? Como trabalhar comigo mesmo? Vencendo essa solidão ! E não, eu também, me sentindo sozinho. E de que forma eu não me sinto sozinho nesse meu trabalho de forma a ajudar os meus alunos a também não viverem sozinhos? Buscando uma companhia que os permita vivenciar essas experiências com muito mais humanidade.
Temos que reconhecer que somos influenciados por uma cultura que vai na contra-mão desse esforço em um ser companhia para o outro. Nós vivemos imersos, impregnados por uma mentalidade que é individualista e que gera solidão. E isto muito mais hoje do que era há duzentos anos atrás, há trezentos anos atrás.
Existe essa forte influência cultural; some-se a isso a solidão que se vive nas nossas cidades. E se ensina essa solidão na Universidade; o trágico é isso. O professor ensina a solidão: - Você tem que ser independente, você tem que tomar decisões, você tem que decidir, em outras palavras, “seja solitário”! Porque depois, quando você sair da Universidade estará sozinho. Por enquanto, enquanto você está aqui como aluno a instituição te dá cobertura mas depois, quando você for para o seu consultório, depois que você tiver a sua carteirinha de registro profissional (que é aquele documento que parece representar que o profissional pode tudo e tem que responder por tudo), você estará sozinho; te vira cara, já te ensinei o que tinha que te ensinar, agora é contigo. Isto pode não ser dito, com estas palavras, nas salas de aulas da Universidade, mas é isto que é passado aos alunos, é esta a experiência de Universidade que eles estão fazendo.
Insisto nestes dois aspectos: a influência do ambiente, da cultura, é difícil de vencer sozinha e o aprender a compartilhar, é caminho para se superar a solidão. A fórmula para enfrentar esta situação é poder contar com uma companhia que nos ajude a viver a nossa vocação e nos ajude a aponta nosso destino.
E por último, o quarto princípio proposto por Egreccia, o princípio da “sociabilidade e subsidiariedade”, dois princípios que não podem ser separados. Sociabilidade é quando eu reconheço que eu participo de uma sociedade, que eu compartilho a minha vida com outros e portanto eu tenho papéis relativamente aos outros também.
E o desdobramento disto é o princípio da subsidiariedade: onde as necessidade forem maiores e onde os grupos sociais já estiverem estruturados no sentido de responder a estas necessidades, cabe a estrutura social, a estrutura estatal, apoiar estas iniciativas. Se existe, por exemplo, uma ONG que está desenvolvendo um projeto que coincide com os interesses sociais, com a sociabilidade e que presta um serviço que coincide com os objetivos da sociedade como um todo, as instituições estatais devem apoiar e não inibir ou substituir essa entidade.
Eu diria, para encerrar, que uma das questões que fica para nós em todos os aspectos que envolvem uma Bioética Clínica, uma Bioética de Decisão, uma Bioética do dia-a-dia, passa por se dar um passo, desculpem a redundância, passa por se dar um passo de buscar uma solidariedade.
A palavra solidariedade, eu a empreguei recentemente em um fórum promovido pelo Centro de Referência e Treinamento – CRT/AIDS aqui de São Paulo. O Simpósio intitulava-se Bioética e AIDS. Empreguei essa palavra – solidariedade - e fui corrigido. E me dei conta de que o significado desta palavra precisa ser aprofundado, porque a palavra solidariedade muitas vezes é confundida com filantropia. Filantropia pode ter uma conotação de “eu, ser superior, ajudando um ser inferior”. Pode ainda ter uma conotação que não é de reconhecimento da pessoa na sua globalidade. Mas não é dessa solidariedade que estou falando. Estou falando de uma outra solidariedade, que se confunde com a palavra caridade, palavra que muitas vezes também as pessoas confundem. A verdadeira caridade só é possível quando dois sujeitos, (vamos pensar na relação profissional, profissional de saúde-paciente, quando não se fala de uma equipe), se reconhecem mutuamente com uma dignidade. Só à partir daí, da solidariedade, da caridade, é possível construir uma Bioética Clínica que no meu ponto de vista (é um ponto de vista meu), é capaz de encaminhar de forma satisfatória as decisões que são decorrentes de tantos dilemas éticos que aparecem no nosso dia-a-dia profissional.
Espero não ter sido muito filosófico na minha abordagem mas fiz questão de trazer estes pontos para vocês porque identifico que esses são os pontos que não são colocados quando se faz um debate bioético. Normalmente você já chega na questão: aborto, eutanásia. Claro que aborto, eutanásia, paciente terminal, clonagem, etc., todos os grandes temas da Bioética precisam ser abordados. Porém, identifico que falta fazer esse passo preliminar e não fazendo esse passo preliminar, repito, a discussão fica estéril no sentido que não produz nada, não gera nada. E a discussão fica confusa, tanto que impera muito um discurso que é relativista porque a única solução para essa esterilidade e essa confusão é ficar no relativismo. E o relativismo – que é uma postura terrível - é uma das características da cultura que predomina no homem contemporâneo.
Obrigado pela atenção.
[1] Dalton Luiz de Paula Ramos graduou-se pela Faculdade
de Odontologia da Universidade de São Paulo – FOUSP - onde também obteve
os títulos de Mestre e Doutor em Odontologia. Professor da FOUSP desde 1982,
efetivou-se como Professor de Deontologia em 1999. Foi Chefe do Departamento
de Odontologia Social da FOUSP de 1997 a 2000. Atualmente ocupa a Vice Coordenação
do Programa de Pós Graduação em Deontologia e Odontologia Legal, nível de
Mestrado, onde ministra a Disciplina Reflexões sobre Bioética oferecida
para alunos dos cursos de Mestrado e Doutorado da USP. Implantou em 1996
o Comitê de Ética em Pesquisa na FOUSP, tendo ocupado a sua coordenação
até 2000. Atualmente coordena o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Ibirapuera (São Paulo/Brasil) onde também leciona a disciplina Bioética
para alunos de graduação. É Membro da Câmara Técnica Interdisciplinar de
Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP.
SGRECCIA, E. Manual de Bioética–I Fundamentos e ética
biomédica. São Paulo: Loyola, 1996. P.80.
SGRECCIA, E. op. cit. p.79
SGRECCIA, E. op. cit. p.80
SGRECCIA, E. op.cit, p.154
SGRECCIA, E. op. cit. p.161
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Veritas Splendor, 1992
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Fides et Ratio, 1998
SGRECCIA, E., op.cit., p.157-168
MARIAS, J. Liberdade e responsabilidade. Disponível
em (acesso de 20-02-01): http:/www.hottopos.com/harvard2/liberdade_e_responsabilidade.htm.
0 comentários:
Postar um comentário