D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 473 - Ano 2001 - p.
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Em síntese: O presente
artigo refere as peculiaridades da historiografia israelita, que era esmerada
no Oriente antigo, mas seguia padrões diferentes dos modernos critérios
historiográficos.
Os antigos povos do Oriente,
por muito elevado que fosse o seu grau de cultura, pouco prezavam a história (...).
Era assaz generalizada a tese de que os séculos constituem ciclos fechados, os
quais se repetem regularmente; acontecimentos já verificados no pretérito se
reproduzirão em época futura; a sucessão dos tempos jamais conhecerá remate ou
consumação final. Representavam esta concepção recorrendo à figura de uma
serpente enrolada, cuja cabeça vem a morder a própria cauda (princípio e fim
coincidem no mesmo ponto; todo o movimento que se registra entre os dois termos
nada de novo acarreta!). Este circular contínuo e monótono da história era dito
"o ritmo do yin e do yang", "a aspiração e a expiração de Brama", "a dança de
Siva que produz e destrói sucessivamente os mundos", "a incessante alternância
da Discórdia e da Amizade".¹
Em consequência, a tendência
de muitos indivíduos era emancipar-se dos ciclos do mundo presente mediante a
ascese, o esquecimento e o repúdio do corpo e do corpóreo, a fim de passarem a
viver num mundo transcendente.
Isto explica que os antigos
pouco se tenham preocupado com historiografia, ou seja, com o relato contínuo e
fiel das fases sucessivas da evolução humana. Quando o faziam, visavam apenas
episódios restritos ou envolviam as narrativas dentro de concepções lendárias,
mitológicas, de sorte que os relatos já não transmitiam a notícia de fatos
ocorridos, mas eram, em grau maior ou menor, a expressão da fantasia popular ou
de uma religiosidade politeísta, exuberante (nos diversos acervos de ruínas
escavados no Oriente até hoje, não se encontrou uma síntese histórica dos
tempos antigos; apenas se descobriram elementos - inscrições e documentos
parciais - para se reconstituir a história da Assíria, do Egito, etc.).
Ora nesse ambiente o povo de
Israel se distingue por ter cultivado a história, e o Ter feito com esmero tal
que só foi superado pelos gregos, mestres da historiografia ocidental. É o que
reconhecem, não sem admiração, os críticos modernos racionalistas:
"Dentre todos os povos
asiáticos-europeus, somente Israel e a Grécia possuem autêntica historiografia.
Em Israel, que ocupa lugar privilegiado entre todos os povos civilizados do
Oriente, a historiografia se originou em época tão remota que causa surpresa, e
produziu logo de início obras de importância (...). Na Grécia surgiu mais tarde".¹
Com efeito, na literatura
dos hebreus, que coincide com os escritos bíblicos, é delineada a história do
povo em traços contínuos e de modo que pressupõe a pesquisa de fontes, a
transcrição de documentos dos arquivos orientais (...). Quando é possível controlar
as afirmações dos cronistas de Israel à luz de textos profanos, aqueles se
comprovam fiéis à verdade, condizentes com o que referem outras fontes.² A
história de Israel assim descrita se desdobra uniformemente, sob a influência
de uma concepção monoteísta assaz forte para superar crises, aberrações,
suscitadas entre os hebreus para idolatria dos povos vizinhos.
E como se explica que os
rudes judeus, ultrapassando as categorias culturais do seu ambiente, tenham com
tanto esmero cultivado a historiografia?
A razão do fenômeno está na
religiosidade de Israel, inconfundível com a das outras nações do Oriente.
Longe de professar que a sucessão dos tempos carece de sentido, os hebreus
julgavam-na toda perpassada por um plano divino, que nela se vai atuando e
tende à consumação no fim dos séculos; viam, pois, nos grandes acontecimentos
da história comunicações, ora mais claras ora mais veladas, de Deus; o passado
lhes aparecia qual mensagem divina a prenunciar realizações futuras ou a
admoestar a melhor conduta de vida.¹ Entende-se, pois que, movidos por tal
concepção, os escritores de Israel se tenham preocupado com a redação de suas
crônicas, dando-lhes adequado desenvolvimento e realce.
Não seria justo, porém,
afirmar-se apenas esta nota da historiografia em Israel. Outras
observações se devem acrescentar à precedente, a fim de se poderem interpretar
com exatidão as crônicas existentes na Sagrada Escritura. Tenham-se em vista,
portanto, ainda ao seguintes itens:
a) a historiografia
israelita é toda pragmática-religiosa, ou seja, procura realçar o sentido
religioso dos acontecimentos; sempre que possível, o historiador deduz a lição
contida nos fatos. Aliás, entre os próprios pagãos, a história era geralmente
considerada qual "mestra da vida",² devendo as narrativas de feitos pretéritos
servir de escola às gerações futuras. Os israelitas tiveram consciência
particularmente viva deste princípio, pois, por revelação divina, sabiam que,
de fato, Deus fala e age pelos acontecimentos. Em conseqüência, ninguém
estranhará de pormenores que se diriam de ordem meramente profana, valiosos,
sim, para o erudito, mas destituídos de importância para a salvação dos fiéis.
Muito interessante a este
propósito é confrontar os livros de Samuel e dos Reis com os das Crônicas. São,
em grande parte, paralelos entre si; nota-se, porém, justamente nas seções
paralelas que o autor de Crônicas, posterior aos de Sm e Rs, selecionou os
dados da história, omitindo uns, acrescentando outros na trama anteriormente
redigida, a fim de melhor pôr em evidência o significado religioso dos
episódios. Por exemplo, a história do reino cismático do Norte (Samaria),
referida em Rs, é silenciada em Cr, pois não interessa à linhagem messiânica,
que passa pela Casa de Davi no reino meridional; quanto a Davi, é exaltado em
Cr com títulos que até então só eram atribuídos a Moisés ("homem de Deus"; cf.
2Cr 8, 14; "servo de Deus", cf. 1Cr 17, 4) o reino de Judá é dito "o reino de
Javé" (cf. 2Cr 13, 8), O trono de Salomão é chamado "o trono de Javé" (cf. 1Cr
29, 23; 2Cr 9, 8). Em 2Cr 35, 21s, o cronista, ao referir uma admoestação do
Faraó Necao ao rei Josias, de Judá, faz questão de notar que pelo monarca pagão
era o Senhor quem exortava à prudência; o relato paralelo falta em 2Rs 23,
28-30 (onde se poderia esperar).
Algo de semelhante se
verifica ao se compararem entre si as seções paralelas do primeiro e do segundo
livro dos Macabeus. No segundo, as intervenções de Deus em favor dos seus fiéis
são muito mais freqüentes e vivamente inculcadas: notem-se 1Mc 6, 1-16
(narrativa sóbria da morte do rei Antioco Epifanes, perseguidor do povo de
Deus) e 2Mc 9, 1-28 (descrição muito mais longa e calorosa, cheia de entusiasmo
religioso); 1Mc 5, 31-43 e 2Mc 10, 29. O autor de 2Mc não hesita mesmo em
interromper o fio da história para tecer reflexões em torno deste ou daquele
episódio (cf. 2Mc 3, 1; 4, 15-17; 5, 17-20; 6, 12-17; 9, 5; 12, 43; 13, 7;
7-10).
Em consequência do seu
pragmatismo, a cronografia bíblica é por exegetas modernos chamada "história
profética". Esta designação talvez pareça paradoxal, pois a história se refere
ao passado, enquanto a profecia ao futuro. Note-se, porém, que a história
bíblica foi escrita por homens que tudo viam à luz de Deus; ora o Altíssimo não
permitiu fizessem a descrição do pretérito como se fosse algo de fechado em si;
ao contrário, fez que redigissem as suas narrativas de modo a conterem alusões
ao futuro, constituindo o esquema ou prenúncio de realidades maiores vindouras
- o que justamente é profecia. O que interessava aos autores bíblicos não era
nem simplesmente contar o passado, nem perscrutar o futuro, mas mostrar os
traços de um grande desígnio divino que, imutável em si, se vai desdobrando em
fases simétricas, adaptadas ao desenvolvimento moral e intelectual do gênero
humano;
b) o senso de propriedade
literária, de "direitos autorais", era muito exíguo no Oriente antigo; ao
ensinamento por escrito ou à atividade literária se atribuía pouco valor,
quando comparados com o magistério de viva voz. Em conseqüência, os
historiadores semitas, os nossos hagiógrafos inclusive, se permitiam
transcrever documentos alheios sem indicar as respectivas fontes; praticavam
assim o que se chama "citações implícitas". É bem possível que não tivessem a
intenção de garantir a veracidade das passagens assim transcritas, embora nada
fizessem para se distinguir do autor de tais ditos.
Tal proceder redacional tem
repercussão nos métodos de exegese: em presença de uma notícia de história
aparentemente errônea na Sagrada Escritura, pode-se supor seja devida a citação
implícita ou a um auto anônimo, a cujos dizeres o hagiógrafo não intencionava
subscrever; em tal caso o erro não teria sido endossado pelos historiador
sagrado e não afetaria a inerrância da Escritura. Contudo, para que se admita
uma citação implícita em determinada passagem da Bíblia, é preciso que conste com
certeza que (1) o hagiógrafo, de fato, transcreveu um documento alheio (2) sem
ter a intenção de o aprovar ou de garantir a sua veracidade.¹ Dado que o cumprimento
destas duas condições dificilmente se pode averiguar, torna-se raro o recurso à
hipótese de citação implícita para a solução de algum problema exegético;
c) visto que o senso de
propriedade literária não suscitava escrúpulos, autores posteriores se
permitiam retocar, ampliar, "modernizar" obra dos antigos, sem denunciar
explicitamente o seu trabalho de remodelação. Tal caso é freqüente na Torá
(Lei), onde se encontram coleções de leis que, embora justapostas, supõem
circunstâncias e fases diversas da história de Israel, assim como o trabalho de
mão sucessivas;
d) não se dava grande
importância a pormenores tais como os do acabamento literário de uma obra.
Podia, pois, um autor transcrever dois ou mais relatos do mesmo fato
provenientes de fontes diversas sem se preocupar com a fusão harmoniosa do
mesmo numa só peça literária bem trabalhada. Ao leitor ficava a tarefa de fazer
a síntese de dados às vezes aparentemente contraditórios entre si, tendo, para
isto, que reconstituir o ponto de vista próprio do autor de cada um dos
documentos.
É o caso, por exemplo, de Gn
1, 1-3, 24, onde se encontram duas narrativas da criação do mundo (Gn 1, 1-2,
4a e Gn 2, 4b-3, 24) redigidas independentemente uma da outra. Em Gn 6-9 têm-se
dois relatos do dilúvio justapostos com seus pormenores próprios, um tanto
desconexos entre si e destituídos de explicação que guie o leitor. Em 1Mc 6,
1-16; 2Mc 1, 11-17; 9, 1-29 ocorrem três versões da morte do rei Antioco IV
Epifanes, as quais, à primeira vista, divergem entre si, embora possam bem ser
conciliadas pelo exegeta atento;
e) muitas vezes, ao refletir
ditos alheios, o historiador usava do discurso direto de preferência ao
indireto. Esta tendência se explica pela dificuldade de abstrair, que
caracterizava os hebreus. Em tais casos podia acontecer que o hagiógrafo não
julgasse necessário reproduzir verbalmente o discurso; redigia então com suas
palavras próprias o teor da oração, que ele colocava nos lábios de outrem, como
se fora proferida tal qual figurava no texto¹;
f) o historiador semita
também não se preocupava muito com a exata cronologia e topografia dos acontecimentos. Frequentemente indicava as
localidades e contava os tempos de maneira vaga. Podia servir-se também de
cronologia esquemática; assim no livro dos Juízes o período de quarenta anos
(duração média de uma geração) costuma designar acontecimentos rematados, acarretando
logicamente os períodos de vinte e oitenta anos (cf. Jz 3, 11.30; 4,3; 5, 32;
8, 28; 13, 1; 15, 20; 16, 31).
Às vezes os números de dias,
meses ou anos não indicam, em absoluto, duração, mas, sim, qualidades dos indivíduos
a quem são atribuídos; tenham-se na memória, por exemplo, as listas genealógicas
dos setitas e dos semitas, em Gn 4, 17-24 e 5, 1-32.
Também o autêntico grau de
cultura e civilização dos quadros e personagens bíblicos parecia negligenciável
aos historiadores sagrados. Para tornar mais significativos os episódios
antigos, o hagiógrafo não raro os descreve anacronicamente, projetando no
passado os dados da cultura do seu tempo, mais aptos a transmitir determinada
mensagem aos destinatários do livro. É o que se dá na "pré-história bíblica"
(Gn 1-11).
g) em particular, os onze
primeiros capítulos do Gênesis pertencem a gênero literário próprio; não seria
lícito, de um lado, interpretá-los tão segura e rigidamente como as demais seções
de historiografia da Bíblia, nem, por outro lado, entram na categoria de
mitologia ou fábula. Referem, sem dúvida, acontecimentos ocorridos no pretérito,
transmitidos, porém, mediante vocabulário e estilo muito dependentes de textos
profanos; aludem provavelmente a certos tópicos das cosmogonias e da história
das origens de outros povos.
Eis os principais traços da
historiografia bíblica. Quem os conhece, não concebe problemas que, à primeira
vista, o texto sagrado suscita.
__________________________
¹ Testemunhos ou vestígios
desta concepção oriental encontram-se em: Empédocles, Fragm. 30 e 115; Aristóteles,
Meteor. 1. 1, c. 3; Da geração e da corrupção 1.2, cap. 11; Sêneca, Quaestiones
naturales 1. 3, caps. 28s; Censorino, De die natali 18: Stobeu, Eclogae
physicae 1. 1, c.8; Cícero, Sonho de Cipião 7; Sérvio, Comentário da Quarta
Ecloga de Virgilio, v. 4.
¹ E. Meyer, Geschichte des
Altertums 14 1. 1921, 227.
Pio XII chamava a atenção para tal fenômeno em sua Encíclica Divino
afflante Spiritu:
"As pesquisas comprovaram claramente que o
povo israelita, entre as demais nações antigas do Oriente, se distinguia
singularmente na arte de escrever a história, e isto tanto pela fidelidade como
pela antigüidade das narrativas" (Ibid., 315).
² Dentre as várias obras que
nos últimos tempos têm proposto o confronto e a concórdia entre os dados da Bíblia
e documentos de arqueologia, paleontologia, assiriologia, egiptologia, etc.
particularmente interessante é a de W. Keller, Und die Bibel hat doch Recht! (Duesseldor,
1954).
¹ Muito claramente se afirma
esta concepção nos escritos dos Profetas. Estes, querendo predizer a futura
Redenção messiânica e a instauração visível do reino de Deus, descreviam-nas
com os traços característicos de duas "redenções" anteriores de Israel, ou seja,
evocando os acontecimentos do êxodo do Egito e os do egresso após o cativeiro
babilônico (cf. Is 35, 1-10; 40, 1-5; 44, 26-45, 4; Jr 31, 15-17.31-36; Os 2,
16-19; 11, 8s).
² Cícero tem a história na
conta de "lux veritatis..., magistra vitae - luz da verdade..., mestra da vida"
(De Oratore 2, 9).
¹ Cf. o decreto da Pontifícia
Comissão Bíblica de 13 de fevereiro de 1905 (Denzinger, Enchiridion Symbolorum,
1909).
¹ Os comentadores apontam
como exemplos - naturalmente sujeitos a dúvidas - os textos de Gn 49, 2-27
(bênção de Jacó moribundo sobre os seus filhos), Dt 33, 2-29 (bênção de Moisés
sobre as tribos de Israel). Cf. Lagrange, em Revue biblique, 1898, 539; J.
Chaine, Genèse, 489; A. Clamer, "Genèse", em La Sainte Bible de
Pirot-Clamer I. (Paris 1953), 494; "Deutéronome", ibid., II, 740
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