Os historiadores
de idéias se acostumaram a distinguir, no desenvolvimento do marxismo no século
20, duas tradições básicas: o “marxismo soviético” e o “marxismo ocidental”.
Lenin sempre foi considerado o iniciador da primeira corrente, sistematizada
como “marxismo-leninismo” sob a direção de Stalin. O ensaísta brasileiro José
Guilherme Merquior, por exemplo, em seu livro O Marxismo Ocidental,
publicado em 1987, escreveu: “O marxismo ocidental nasceu, no começo da década
de 1920, como um desafio doutrinário, vindo do Ocidente, ao marxismo soviético.
Seus principais fundadores - Lukács e Ernst Bloch, Karl Korsch e Gramsci -
estavam em áspero desacordo com o materialismo histórico determinista da
filosofia bolchevique, tal como definida por Lenin ou Bukharin”.
O sociólogo
norte-americano Kevin Anderson, rompendo com essa interpretação consagrada,
sustenta uma tese original e ousada em seu livro Lenin, Hegel, and Western
Marxism (Chicago, University of Illinois Press, 1995). Anderson defende que
o trabalho teórico de Lenin posterior a 1914 “o situa mais próximo de marxistas
‘ocidentais’ ou ‘hegelianos’, como Georg Lukács e os membros da Escola de
Frankfurt, do que de marxistas ortodoxos, como os marxistas-leninistas
soviéticos oficiais.” Afastando-se de Kautsky e de Plekhanov, Lenin teria sido
o primeiro marxista de expressão a insistir no retorno à dialética e no estudo
crítico de Hegel.
Kevin Anderson
foi militante dos movimentos pelos direitos civis da população negra e contra a
intervenção americana no Vietnã, no final dos anos 60 e começo dos 70 do século
passado, e atualmente é professor de Sociologia na Universidade de Illinois,
nos Estados Unidos. Chegou a suas conclusões após quinze anos de pesquisa sobre
os Cadernos Filosóficos, obra de Lenin negligenciada e pouco conhecida.
No Brasil, por exemplo, continua inédita.
O
livro de Anderson, originado de uma tese de doutorado defendida na Universidade
da Cidade de Nova York, é apurado e cuidadoso. Reconhecendo o legado
contraditório de Lenin, evita tanto a canonização patrocinada pela antiga União
Soviética, quanto a hostilidade característica dos críticos ocidentais. E é
movido não apenas por um propósito de justiça teórica, mas sobretudo por uma preocupação
política, exposta com clareza por Anderson. Convenceu-se de que o estudo dos
textos finais de Lenin ajudam a discernir “o único tipo de marxismo viável nos
dias atuais”: o marxismo que adote “um múltiplo conceito de subjetividade, mais
do que um apoio exclusivo na classe operária industrial tradicional” e num
único partido autoproclamado de vanguarda.
A
descoberta de Hegel
Anderson
encadeia com solidez sua argumentação. Examina, na primeira parte de seu livro,
os estudos filosóficos a que Lenin se dedica de agosto de 1914 a meados de
1915, freqüentando a biblioteca pública de Berna, na Suíça, onde se encontrava
exilado. Lenin preenche sucessivos cadernos com anotações manuscritas,
transcrevendo passagens extensas dos livros que lê, acompanhadas de
comentários.
Lenin concentra
os primeiros esforços na assimilação crítica da Ciência da Lógica,
considerada a obra de Hegel mais importante e mais difícil, passando em seguida
às Lições sobre a História da Filosofia e às Lições sobre a Filosofia
da História, também de Hegel. Prossegue estudando livros sobre o filósofo
alemão ou sobre a história da filosofia em geral, resume a Metafísica de
Aristóteles e anota também obras relacionadas com o desenvolvimento das
ciências naturais.
À medida que
avança, Lenin escreve artigos, como o verbete Karl Marx para a
Enciclopédia Granat, esboça planos de novas pesquisas e, ao final, redige o
rascunho Sobre o problema da dialética, sintetizando as conclusões de
seus estudos e delineando o plano de um texto sobre a dialética que,
infelizmente, não conseguiria elaborar.
Um militante de
hoje pode surpreender-se com esse empenho teórico num momento crucial e
especialmente turbulento do mundo e da vida de Lenin. A Primeira Guerra Mundial
já conflagrava a Europa, Lenin preconizava o “derrotismo revolucionário” e a
transformação da guerra imperialista em guerra civil e, por isso, rompera com a
Segunda Associação Internacional dos Trabalhadores e com alguns de seus líderes
mais eminentes, como Kautsky e Plekhanov, aos quais sempre devotara grande
respeito teórico. Na Rússia, a crise do regime czarista voltava a aprofundar-se
e se converteria três anos depois nas Revoluções de Fevereiro e de Outubro, que
abririam uma página nova na história mundial. Nesse contexto, Lenin se enfia
numa biblioteca?
Anderson mostra
que o espanto não se justifica, porque são justamente as responsabilidades
acrescidas de Lenin - que emerge como um líder internacional - que o obrigam a
desenvolver suas posições políticas e a buscar os fundamentos científicos e
filosóficos das divergências que acabariam cindindo o movimento operário
internacional. Repetia-se com ele o que acontecera com Marx, que, ao
preparar-se para estruturar e redigir O Capital, sentira a necessidade
de voltar a estudar a Ciência da Lógica de Hegel.
Vários autores
já comentaram, em termos gerais, os Cadernos Filosóficos e resgataram
opiniões de Lenin inseridas em suas páginas. O pioneirismo de Anderson consiste
em que ele esmiúça as anotações de Lenin, principalmente as relativas à Ciência
da Lógica, confronta-as com os textos originais, compara-as com as
avaliações de marxistas anteriores e faz, em passagens decisivas, o cotejo com
as leituras de especialistas contemporâneos, marxistas e não-marxistas. A
exegese sistemática de Anderson contribui, assim, não só para reconstruir a
evolução de Lenin, mas também para aprofundar a compreensão dos textos de
Hegel.
Não falta emoção
à viagem conjunta de Anderson e Lenin. O comentarista acompanha a surpresa
crescente com que o dirigente russo descobre a obra do filósofo alemão.
Esperava digressões áridas e abstratas e registra, sobre a Ciência da Lógica:
“Na mais idealista das obras de Hegel, há o mínimo de idealismo e o máximo de
materialismo. Contraditório, mas um fato.” Percebe a insistência com que Hegel
defende a unidade entre o pensamento e o ser, entre o sujeito e o objeto, entre
a essência e a aparência, entre o conteúdo e a forma, e comenta: “Isto é quase
materialismo!” Lê a crítica de Hegel à compreensão corriqueira e linear da causalidade
e sua insistência na determinação recíproca, e anota: “Os germes do
materialismo histórico em Hegel.”
O leitor russo é
tocado, especialmente, pela ênfase do mestre alemão na subjetividade e na
unidade entre o subjetivo e o objetivo. Lenin elogia: “Claro e profundo.” E
acrescenta, em outra passagem: “Há uma diferença entre o subjetivo e o
objetivo, mas isto, também, tem seus limites.” E, ainda mais incisivo,
explicita em outra anotação: “A idéia da transformação do ideal no real é
profunda! Muito importante para a história. Mas também na vida pessoal do homem
é evidente que há muito de verdade nisto. Contra o materialismo vulgar.”
À medida que
avança na leitura dos textos de Hegel, Lenin se dá conta de quanto era
grosseira a “teoria do reflexo”, que havia exposto em sua obra Materialismo
e Empiriocriticismo, de 1909. E comenta: “Conhecimento é a reflexão da
natureza pelo homem. Mas isto não é um reflexo simples, nem imediato, nem
completo, mas o processo de uma série de abstrações, a formação e desenvolvimento
de conceitos, leis, etc.” Repisa em outra anotação: “A correspondência do
pensamento com o objeto é um processo”. E arremata em outra passagem, incisivo:
“O conhecimento do homem não apenas reflete o mundo objetivo, mas o cria”.
Lenin amadurece,
portanto, uma reavaliação tanto do idealismo e do materialismo, quanto de uma
contraposição simplificadora entre eles, como a estimulada pela célebre
oposição entre os “dois campos” formulada por Engels e retomada pelo próprio
Lenin em Materialismo e Empiriocriticismo. Agora, Lenin destaca que “o
idealismo filosófico só é uma tolice do ponto de vista do materialismo tosco,
simples, metafísico”. E, introduzindo a noção de “materialismo vulgar”,
reaproxima-se das críticas feitas por Marx, nas Teses sobre Feuerbach,
tanto ao idealismo, quanto a todas as formas unilaterais, contemplativas e
não-dialéticas de materialismo.
Lenin destaca,
finalmente, que a dialética não pode ser entendida apenas como a teoria do
movimento universal, ou da transformação das mudanças quantitativas em
qualitativas. Seu núcleo é a afirmação de que a unidade dos contrários é
inerente à essência das coisas e de que, por conseguinte, o desenvolvimento é
um automovimento através de contradições e de lutas para superá-las.
Lenin comenta:
“As duas concepções fundamentais do desenvolvimento (ou as duas possíveis? ou
as duas historicamente observáveis?) são: o desenvolvimento como aumento e
diminuição, como repetição, e o desenvolvimento como unidade de contrários (a
divisão de uma unidade em contrários mutuamente excludentes e sua relação
recíproca). Na primeira concepção do movimento, o automovimento, sua força
impulsora, seu motivo, sua fonte é deixada na sombra (ou convertida em fonte
externa: Deus, sujeito, etc.). Na segunda concepção, a atenção principal se
dirige principalmente para o conhecimento da fonte do automovimento.” E
repisa: “A unidade (coincidência, identidade, ação igual) dos contrários é
condicional, temporária, transitória, relativa. A luta dos contrários
mutuamente excludentes é absoluta, como são absolutos o desenvolvimento e o
movimento.”
O
estudo de Hegel conduz Lenin a identificar os erros filosóficos que vinham
sendo cometidos pelos continuadores de Marx, inclusive por ele próprio.
Resgatando o conceito hegeliano de “crítica imanente”, e não apenas externa e
rotuladora, escreve: “Plekhanov critica o kantismo (e o agnosticismo em geral)
mais de um ponto de vista materialista vulgar do que de um ponto de vista
materialista dialético, na medida em que simplesmente rechaça de fora suas
opiniões, porém não os corrige (como Hegel corrigiu Kant), aprofundando-os,
generalizando-os e ampliando-os, mostrando as conexões e as transições de todos
e de cada um dos conceitos.” E, referindo-se implicitamente a sua obra Materialismo
e Empiriocriticismo, adiciona na mesma nota: “Os marxistas criticaram (no
começo do século 20) os kantianos e os discípulos de Hume mais à maneira de
Feuerbach (e de Büchner) do que de Hegel.” Por fim, não esconde o choque
crítico e autocrítico que sofreu, desabafando: “É completamente impossível
entender O Capital de Marx, e em especial seu primeiro capítulo, sem ter
estudado e entendido a fundo toda a Lógica de Hegel. Portanto, faz meio
século que nenhum marxista tem entendido Marx!”
Da
filosofia à política
De sua viagem
paciente pelas anotações áridas e fragmentadas dos Cadernos Filosóficos,
Anderson extrai, na segunda parte de seu livro, a confirmação de que os estudos
empreendidos por Lenin entre agosto de 1914 e meados de 1915 representam um
salto em sua compreensão filosófica, um corte que o distancia do marxismo
naturalista, determinista e economicista, que prevalecia na Segunda
Internacional de Kautsky e Plekhanov, e no qual o próprio Lenin havia sido
formado, como atestam obras como Quem São os Amigos do Povo e Materialismo
e Empiriocriticismo. Recorde-se que Plekhanov foi o introdutor do marxismo
na Rússia e o criador da expressão “materialismo dialético”, que passou a
concorrer com a de “materialismo histórico”, usada até então para caracterizar
a doutrina de Marx e Engels.
Lenin não deixa
de ser materialista, de sustentar a unicidade do mundo, ou de reconhecer a
precedência do universo natural sobre a emergência do homem, ou o papel
decisivo do trabalho na formação e desenvolvimento da espécie humana. Reitera,
em suas notas, afirmações como esta: “A dialética das coisas cria a dialética
das idéias, e não o inverso.” Mas se dá conta de que, no esforço de assimilar a
dialética, sua compreensão da filosofia marxista sofrera uma mutação.
Uma prova disso,
argumenta Anderson, é que ele escreveu ao editor da Enciclopédia Granat, em 4
de janeiro de 1915, indagando se ainda seria possível refazer, no verbete sobre
Marx de sua autoria, a parte relativa à dialética. Infelizmente, não foi
viável. Outra prova é o texto “Sobre o problema da dialética”, curto e
inacabado, mas denso, no qual Lenin critica as exposições da dialética feitas
por Engels e Plekhanov e esboça uma apresentação alternativa.
Outras
indicações surgem, acrescenta Anderson, nas polêmicas que Lenin trava nos anos
seguintes e nas quais critica seus interlocutores - como Rosa Luxemburg,
Trotski ou Bukharin - pela assimilação deficiente da dialética. Sinal
importante também representou a conferência de Lenin “Sobre o significado do
materialismo militante”, em que lançou o apelo à formação de uma “sociedade de
amigos materialistas da dialética hegeliana”. As marcas da nova compreensão
filosófica de Lenin são perceptíveis ainda nos textos econômicos e políticos
que elabora nos anos posteriores a 1914. Para comprová-lo, Anderson
concentra-se em duas obras fundamentais: O Imperialismo, Etapa Final do
Capitalismo e O Estado e a Revolução.
A formação de
agigantadas empresas monopolistas e o transbordamento imperial das grandes
potências ocupavam a atenção dos marxistas no começo do século 20. Quando Lenin
se voltou para o tema, já haviam sido publicados ou escritos O Capital
Financeiro, de Hilferding, em 1910; A Acumulação do Capital, de Rosa
Luxemburg, em 1912; O Imperialismo e a Economia Mundial, de Bukharin, em
1915; e os artigos de Kautsky, em que ele formulou a teoria do
“ultra-imperialismo”. Alguns críticos alegam, por isso, que O Imperialismo,
Etapa Final do Capitalismo, de Lenin, publicado em 1917, não teria
representado uma contribuição original ao debate.
Anderson
contra-argumenta, lembrando que Lenin realizou investigações próprias e
abrangentes, como testemunham as anotações recolhidas nos Cadernos sobre o
Imperialismo. E que, para estruturar e redigir sua obra, não se apoiou
apenas no material histórico e estatístico reunido, mas também na assimilação
mais aprofundada do método dialético, que havia conseguido em 1914. Anderson
ressalta que, por isso, três características mais importantes diferenciam a
interpretação de Lenin das obras anteriores.
Em primeiro
lugar, Lenin não encara o desenvolvimento histórico do capitalismo de maneira
linear. Caracteriza o imperialismo como uma fase histórica nova e a analisa
como uma superação dialética do estágio anterior. As novas determinações
prevalecem, mas os traços essenciais do capitalismo são preservados. Em segundo
lugar, na análise dialética de Lenin, essa nova fase não atenua, mas agrava as
contradições do capitalismo. E por isso, em terceiro lugar, surgem novas forças
sociais e políticas que podem unir-se ao proletariado na resistência
antiimperialista.
Lenin, que já
havia ressaltado a importância da aliança operário-camponesa nas condições
russas, agora amplia o leque das forças mundiais que podem ser aglutinadas em
torno do proletariado, identificando um novo sujeito revolucionário, os
movimentos de libertação nacional. Anderson enfatiza esse corolário, enxergando
nele uma importante indicação metodológica para os socialistas contemporâneos,
pois a análise dialética das contradições do sistema capitalista-imperialista
atual continua sendo indispensável para identificar os novos sujeitos
revolucionários, as novas forças que podem unir-se ao proletariado para
combatê-lo.
A análise de
Anderson prossegue. Num momento em que se acumulavam os requisitos para uma
transformação revolucionária, Lenin se preocupou também em divisar as
características de que deveria revestir-se o novo Estado, para expressar as
iniciativas e os anseios das forças emergentes. Reconstruindo o desenvolvimento
do pensamento marxista sobre o poder político e refletindo sobre os novos
desafios que despontavam no horizonte, Lenin escreve, entre janeiro e fevereiro
de 1917, O Estado e a Revolução, aprofundando o tema em discursos e
artigos elaborados nos meses seguintes.
Inspirado pelos
exemplos da Comuna de Paris e munido com uma nova compreensão da subjetividade
criadora, Lenin enfatiza a participação popular e o papel dos conselhos de
trabalhadores, os sovietes, na construção do novo Estado, um Estado aliás
destinado à extinção. Denuncia não apenas a dominação de burgueses e
latifundiários, mas também o perigo representado pelas burocracias. Aborda o
partido de passagem. O fio de sua elaboração política é que as massas não podem
ser vistas como um “meio” para alcançar um “fim”, o socialismo. Sua
“auto-atividade” é o socialismo. Escreve em um de seus ensaios: “O socialismo
não pode ser decretado de cima para baixo. Seu espírito rejeita a abordagem
mecanicista-burocrática. O socialismo vivo, criativo, é o produto das próprias
massas.”
Como
recorda Anderson, os textos políticos de Lenin no período são tão
surpreendentes que são denegridos por alguns críticos como “anarquistas”.
As
duas tradições
O retorno a
Hegel e a ênfase nos conselhos de trabalhadores são dois temas antecipados por
Lenin e acalentados pela primeira geração de “marxistas ocidentais”. Anderson
estaria certo, quando sugere que o líder russo teria sido o primeiro e
esquecido “marxista ocidental”?
A conclusão não
é tão fácil. O próprio Anderson alerta, na terceira e última parte de seu
livro, que as anotações de Lenin sobre a dialética contêm contradições e temas
que não são aprofundados. Além disso, Lenin não tornou públicas suas críticas
filosóficas a Engels, Plekhanov e Kautsky, nem conseguiu, nas vicissitudes de
seus últimos anos, finalizar o texto esboçado sobre a dialética. Não retornou
também à teoria do partido de vanguarda, formulada em O que fazer?, de
1902, a partir de uma indicação de Kautsky, para confrontá-la com suas novas
opiniões políticas. E, quando as ameaças começaram a acumular-se sobre a
vitória de outubro de 1917, voltou a enfatizar a centralização do Estado e a
direção do partido comunista, que acabaria se tornando o único.
Não admira que,
após a morte de Lenin, quando os novos dirigentes trataram de sistematizar o
pensamento orientador do partido comunista, a ambiência positivista, a forte
tradição da Segunda Internacional e a influência dos livros de Plekhanov e de
Bukharin tenham prevalecido. Zinoviev foi o primeiro a mencionar o “leninismo”
como uma nova fase do marxismo. Stalin sistematizou o que seriam as
contribuições políticas de Lenin nas conferências de 1924, Sobre os
fundamentos do leninismo, e no livro de 1926, Acerca dos problemas do
leninismo. Em 1931, uma sessão plenária do Comitê Central do Partido
dirimiu autoritariamente, por mais espantoso que isto seja, a controvérsia
filosófica entre “mecanicistas” e “deborinistas”, que prosseguia há vários
anos. E assim, em 1938, num dos capítulos da História do Partido Comunista
(bolchevique) da União Soviética, Stalin pôde codificar a nova versão
oficial da filosofia marxista, que passou a ser reproduzida pelos manuais da
Academia de Ciências de Moscou e difundida pelo movimento comunista
internacional.
Logo na abertura
do texto, Stalin afirma que “o materialismo dialético é a concepção filosófica
do partido marxista-leninista”, esclarecendo que ela é assim chamada porque sua
teoria sobre os fenômenos da natureza é “materialista” e seu método de estudar
esses fenômenos é “dialético”. Acrescenta, em seguida, que “o materialismo
histórico é a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao estudo da
vida social”. Desmembra, assim, a unidade intrínseca da concepção dialética
marxista, reagrupando suas partes exteriormente. A teoria materialista é vista
como uma espécie de filosofia da natureza, o método dialético é abordado de
maneira formalista e a concepção da história é apresentada como uma decorrência
do materialismo e da dialética assim entendidos. O arremate só poderia ser uma
visão da história como predeterminada, do socialismo como inevitável e do
partido comunista, possuidor desse saber aparentemente absoluto, como o efetivo
sujeito revolucionário.
Essa leitura
determinista e autoritária do marxismo ainda estava sendo codificada quando
surgiram as primeiras reações, com a publicação dos livros História e
Consciência de Classe, do húngaro Georg Lukács, e Marxismo e Filosofia,
do alemão Karl Korsch, em 1923. Foram condenados pelo V Congresso da Internacional
Comunista, em 1925, após as intervenções drásticas de Zinoviev e Bukharin.
Lukács recolheu-se ao silêncio, mas Korsch estendeu as divergências à
orientação política adotada no Congresso e acabou sendo expulso do Partido
Comunista alemão em 1926. Quatro anos depois, prefaciando uma nova edição de
seu livro, Korsch escreveria: “Creio formar objetivamente uma frente única com
Lukács no principal, ou seja, na atitude crítica frente à antiga e à nova
ortodoxias marxistas - a socialdemocrata e a comunista.” E recapitulando: “Esta
filosofia marxista-leninista, que estava avançando para o Ocidente, encontrou
nos escritos de Lukács, nos meus e nos de outros comunistas europeus ocidentais
uma tendência filosófica antagônica dentro da própria Internacional Comunista.”
As duas tradições começavam a separar-se.
A resistência às
interpretações pré-dialéticas e científico-positivistas do marxismo cresceu
também na Itália, impulsionada pelos escritos dos dois Antonios, Labriola e
Gramsci. Este último jamais deixou de invectivar a equivocada “convicção de que
existem leis objetivas de desenvolvimento histórico da mesma espécie das leis
naturais, juntamente com a crença numa teleologia predeterminada como a da
religião”. Na prisão, escreveu uma crítica contundente ao livro de Bukharin, A
teoria do materialismo histórico, de 1921. Infelizmente, essa crítica só
veio a ser conhecida após a Segunda Guerra Mundial, quando foram divulgados os Cadernos
do Cárcere.
Outra vertente
crítica se abriu com a fundação do Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt,
na Alemanha, em 1923. O Instituto abrigaria, nas décadas seguintes, entre
outras personalidades intelectuais, Carl Grünberg, Max Horkheimer, Herbert
Marcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm, Theodor Adorno, Jürgen Habermas. Apesar
de suas divergências, esses intelectuais desenvolveram uma corrente próxima de
idéias, inspirada no marxismo, que passou a ser conhecida como a “Escola de
Frankfurt” ou a “Teoria Crítica da Sociedade”. Em 1958, Marcuse, um dos
pioneiros do movimento, publicou a obra O Marxismo Soviético, difundindo
a expressão que passou a ser utilizada por autores ocidentais para designar a
tradição “marxista-leninista”. O contraste entre as duas tendências se
acentuava.
Os temas e as
ênfases do “marxismo hegeliano”, como o denomina Anderson, irromperam na França
mais tarde. Entre 1933 e 1939, o emigrado russo Alexandre Kojève ministrou um
curso sobre Hegel na École des Hautes Études, em Paris, assistido entre
outros alunos por Jean-Paul Sartre e Jacques Lacan. Essas aulas foram
transformadas posteriormente no livro Introdução à Leitura de Hegel,
publicado na França em 1947 e lançado no Brasil no ano passado. Em 1938, Henri
Lefebvre e Norbert Guterman traduziram as anotações de Lenin relativas à
dialética, publicando-as com o sugestivo título Cadernos sobre a Dialética
e introduzindo-as com um longo ensaio sobre a importância do pensamento de
Hegel para o marxismo.
Assim, nos anos
seguintes, já com a participação de Lucien Goldmann e Jean-Paul Sartre, se
desenvolveu na França uma leitura “dialética” e “existencialista” do marxismo,
contraposta à leitura “cientificista”, oriunda da União Soviética. Para
justificar seu afastamento de ambas, Maurice Merleau-Ponty escreveu, em 1955, o
livro Aventuras da Dialética. O título de um dos capítulos, “Marxismo
Ocidental”, passou a designar a tradição marxista “crítica” que vinha se
desenvolvendo desde os trabalhos seminais de Lukács e Korsch. Com as
denominações propagadas pelos livros de Marcuse e de Merleau-Ponty, as duas tradições
ganharam suas marcas registradas.
O
desenvolvimento do marxismo “crítico” nos Estados Unidos, em oposição ao
“cientificista”, é ainda mais recente e menos conhecido. Esses termos, aliás,
foram cunhados pelo sociólogo marxista norte-americano Alvin Gouldner em 1980.
Anderson desencava a origem dessa tradição na influência de Marcuse, que se
transferiu para os Estados Unidos nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, e no
surgimento da Tendência Johnson-Forest no interior do movimento trotsquista
norte-americano. J. R. Johnson era o pseudônimo do historiador C. L. R. James,
nascido em Trinidad (em 2000, foi traduzida no Brasil sua consagrada obra Os
jacobinos negros, sobre a revolução de São Domingos, liderada por Toussaint
L’Ouverture). Freddie Forest era o pseudônimo da russa Raya Dunayevskaya,
economista e ex-secretária de Trotski.
A dissidência
encabeçada por James e Dunayevskaya se formou no debate sobre o caráter da
União Soviética e da Segunda Guerra Mundial e se aprofundou na polêmica sobre a
burocratização e as perspectivas dos movimentos dos trabalhadores
norte-americanos. Buscando fundamentar suas posições, James, Dunayevskaya e
seus partidários foram os primeiros a debater, nos Estados Unidos, os Manuscritos
Econômico-Filosóficos do jovem Marx, a dívida de Marx com Hegel e,
sobretudo, os Cadernos Filosóficos de Lenin. O grupo se afastou do
movimento trotsquista em 1950 e, cinco anos depois, se dispersou. Mas
Dunayevskaya persistiu, até seu falecimento, no estudo do significado teórico e
das conseqüências políticas dos Cadernos Filosóficos de Lenin. Caminhou
para uma posição filosófica que pretendia superar tanto o idealismo quanto o
materialismo e, no plano político, para uma visão descentralizada e apartidária
da organização dos trabalhadores. Anderson engata sua investigação na
continuidade dos esforços de Dunayevskaya.
Os historiadores
do marxismo aceitam, geralmente, essa diferenciação entre as tradições
“soviética” e “ocidental” ao longo do século passado. Mais difícil é caracterizá-las.
No caso da centralizada tradição “soviética”, é viável, com menos discordância,
identificar as notas preponderantes de mecanicismo, determinismo, economicismo
e vanguardismo. Ainda assim, é forçoso reconhecer diferenciações nacionais e
nuances nos autores que são incluídos nessa tradição.
Enquanto Stalin
redigia Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico, por
exemplo, Mao Zedong, na China, escrevia o ensaio Sobre a Contradição, do
qual extrairia as conseqüências políticas nos anos 50, em outro ensaio famoso, Sobre
o tratamento correto das contradições no seio do povo.
Outro exemplo: o
filósofo Roger Garaudy, que sucedeu a Henri Lefebvre na liderança intelectual
do Partido Comunista francês e que foi considerado o intérprete oficial do
“marxismo soviético” na França, durante duas décadas, publicou em 1962 um
alentado estudo sobre Hegel, intitulado Deus Está Morto, que merece ser
valorizado como um dos esforços mais sistemáticos de compreensão da dialética
hegeliana realizado por um marxista contemporâneo.
Para complicar o
quadro, existem correntes e autores ocidentais, vinculados à história do
marxismo, que dificilmente se enquadram numa ou noutra tradição. É o caso do
austromarxismo, de Louis Althusser na França, ou de Lucio Colletti na Itália.
Indiscutivelmente,
porém, as dificuldades aumentam quando se trata de localizar as características
comuns do “marxismo ocidental”. Essa tradição passou por várias fases, abrange
um leque amplo de correntes e abarca autores com posições políticas e teóricas
diferenciadas. Apesar desses obstáculos, costuma-se ressaltar alguns traços
convergentes: a ênfase das investigações se desloca da economia e do Estado
para a cultura e a arte; da ciência para a filosofia; do partido de vanguarda
para os conselhos de trabalhadores; do plano centralizado para a autogestão;
das determinações objetivas para a importância da subjetividade. Outras
tendências comuns podem ser apontadas, como o retorno às fontes hegelianas do
marxismo, a crítica das obras filosóficas de Engels, o distanciamento do
materialismo e, sobretudo, o ecletismo crescente e o afastamento cada vez maior
da prática política.
A
implosão das experiências socialistas da União Soviética e do Leste europeu
evidenciou os limites teóricos e políticos do “marxismo soviético”. Mas é
preciso não esquecer que o “marxismo ocidental” também não orientou, até hoje,
nenhuma transformação efetiva de uma sociedade capitalista em socialista. Não
se pode, portanto, deixar de reconhecer que José Guilherme Merquior estava
certo quando avaliou: “O marxismo ocidental, nascido do espírito da revolução
contra o determinismo do materialismo dialético, terminou por abraçar o mais
negro pessimismo ou por esposar o mais vago dos reformismos.”
E
Lenin?
Se Lenin se afastou,
após 1914, da tradição política e teórica da Segunda Internacional e das
posições que iriam prevalecer no “marxismo soviético”, isto não significa que
ele endossaria a evolução filosófica e política do “marxismo ocidental”. Lenin
sempre insistiu no estudo da dialética hegeliana “de um ponto de vista
materialista” e sempre buscou combinar a espontaneidade com a organização.
Na realidade, os
Cadernos Filosóficos de Lenin nunca receberam a atenção necessária,
tanto da tradição “soviética”, quanto da “ocidental”. Foram publicados na União
Soviética em 1930, mas numa edição que incorporava textos de 1895 a 1916 e que,
portanto, diluía as reflexões inovadoras de Lenin sobre a dialética, escritas
de meados de 1914 a meados de 1915. Além disso, o movimento comunista
internacional jamais estimulou o debate dos Cadernos Filosóficos. As
preferências de estudo sempre recaíram sobre obras como Materialismo e
Empiriocriticismo, de Lenin, ou A Dialética da Natureza, de Engels.
Já os “marxistas
ocidentais” concentraram suas atenções nos Manuscritos Econômico-Filosóficos,
de Marx, publicados pela primeira vez em 1932, em Moscou. A única exceção, já
referida, ocorreu nos Estados Unidos, com as pesquisas de C. L. R. James e
sobretudo de Raya Dunayevskaya, retomadas agora por Kevin Anderson.
Se os Cadernos
Filosóficos tivessem sido estudados atentamente, até mesmo a leitura dos
textos posteriores de Lenin poderia receber uma nova luz e os impasses teóricos
e práticos, vividos pelo dirigente russo em seus últimos anos, poderiam ter
estimulado uma linha de pesquisa distinta das que foram seguidas por marxistas
“soviéticos” e “ocidentais”, com seus unilateralismos opostos.
Uma
conclusão, que Anderson não arriscou, poderia ser, então, que as duas tradições
marxistas precisam igualmente ser superadas, para que renasçam o marxismo e o
socialismo.
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Duarte Pereira é jornalista.
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Duarte Pereira é jornalista.
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Referências
bibliográficas
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