Tarcísio
Amorim Carvalho
Estudante - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Estudante - Universidade Federal do Rio de Janeiro
A Europa tem
sido objeto de muitas investigações que procuram analisar como a integração de
diversas regiões e povos pode levar a uma coesão que supere os limites das
fronteiras nacionais.
A análise de vários períodos históricos permitiu construir a visão de uma Europa que, não obstante suas peculiaridades regionais, modelou-se em torno de bases comuns no âmbito político, cultural e social.
A análise de vários períodos históricos permitiu construir a visão de uma Europa que, não obstante suas peculiaridades regionais, modelou-se em torno de bases comuns no âmbito político, cultural e social.
Apesar do
discurso laicista, o papel do cristianismo na formação de uma civilização
europeia é essencial para a compreensão de suas raízes. Neste artigo,
procuramos investigar, através de uma análise historiográfica, as perspectivas
de três historiadores que abordaram, em épocas distintas, a questão do
nascimento da Europa na Idade Média (Christopher Dawson, Lucien Febvre e
Jacques Le Goff).
A historiografia no final do século XIX e início do século XX
Para a compreensão da trajetória e das obras de Christopher Dawson, Lucien Febvre e Jacques Le Goff, é necessário remeter-nos às transformações ocorridas no campo da historiografia a partir do final do século XIX.
Embora, como afirma Peter Burke, já no século XVIII intelectuais na Escócia, França, Itália Alemanha em outros países já tivessem abordado questões ligadas ao comércio, moral e costumes, o postulado fundamental da escola positivista – que consistia na asserção de que é possível a descoberta de fatos novos através da pesquisa documental, com a eliminação do erro pelo exercício da erudição – e ênfase na história política – que tinha em Leopold Von Ranke um de seus principais expoentes – acabou prevalecendo na academia, numa época em que os historiadores buscavam profissionalizar-se. Essas ideias foram sintetizadas por historiadores profissionais e transmitidas em compêndios, como o dos franceses Langlois e Seignobos (Burke, 1991, p.17-18).
Já no início do século XX alguns fatores contribuíram para uma crise significativa nessa visão da história. Geoffrey Barraclough sublinha que a pesquisa documental que buscava explorar os pormenores da história, sem uma perspectiva de conjunto, acabava por transformá-la em um trabalho estéril. Além disso, a Primeira Guerra Mundial mostrou que a tentativa de buscar uma história universal objetiva – defendida por Acton – fracassara diante das diferentes perspectivas nacionalistas. A própria cientificidade da história foi revista quando se questionava a imparcialidade do historiador na compreensão dos fatos e na sua narrativa. Ademais, as ciências novas, como a arqueologia e a antropologia, e, principalmente após a Revolução Russa de 1917, a influência do marxismo e sua análise das estruturas econômicas, fez com que o historiador considerasse novas perspectivas (Barraclough,1980, p.20-25).
Na década de trinta, novas ideias historiográficas estavam em ascensão. A depressão mundial de 1929 trouxe novo impulso para a historiografia marxista. Foi também nesse ano que, sob a liderança de Marc Bloch e Lucien Febvre, a revista originalmente chamada de Annales d'histoire économique et sociale difundiu uma história baseada em análises estruturais da economia e da sociedade.
Christopher Dawson (1898-1970)
O século XIX foi um período de fragmentação na Europa, principalmente pelo acirramento das ideias nacionalistas. Anthony Padgen sublinha que, apesar de pensadores liberais europeus proporem a noção de uma paz advinda do comércio entre as nações, a competição imperialista conduziu a Europa a um período de conflitos que só terminou com a Segunda Guerra (Padgen, 2002, p.17-20).
Na Inglaterra, país de origem de Christopher Dawson, as divergentes perspectivas diante das ciências sociais também se manifestavam. Em Dynamics of World History, Dawson pontua alguns pensadores que desenvolveram novas abordagens nesse campo. Herbert George Wells, em The Outline of History, obra produzida após o término da Primeira Guerra e durante a constituição da Sociedade das Nações, busca uma história que não se fixe no registro de acontecimentos, mas que consista em descobrir os fatores dinâmicos que organizavam o mundo do homem (Dawson, 1961, p.273). Arnold Joseph Toynbee, defendeu que o estudo da História deveria incluir o estudo das civilizações, e que uma análise limitada de alguns povos ou Estados faria da história um exercício incompleto e parcial (Dawson, 1961, p.290).
Segundo Dermot Quinn, Dawson se preocupava em suas obras com os temas relacionados à natureza da cultura e civilização. Para este autor, a análise de Dawson se centrava em três unidades: a cultura, a civilização, e a Europa (Quinn, 2008, p. 705). Em Dynamics of World History, Dawson define a cultura como um sistema comum de vida, responsável pela adaptação do homem a seu meio ambiente e as suas necessidades econômicas (Dawson, 1961, p.14). A civilização, por sua vez, consiste numa generalização de culturas históricas individualizadas. A dinâmica responsável por essa outra unidade se encontra na religião. De fato, na obra Progress and Religon, Dawson critica a noção de progresso contida nas ciências sociais do século XIX, em que a religião é vista como um fator negativo no desenvolvimento da civilização. Contra essa visão, afirma que as grandes religiões são os fundamentos em que se apoiam as grandes civilizações (Dawson, 1929, p.180).
Ainda em Dynamics of World History, Dawson critica a ideia da história como narrativa de fatos isolados, como um discurso moral, ou como uma intuição filosófica. A história deveria se unir à sociologia para ordenar os fatos em função de leis e conceitos gerais. Esta última, por sua vez, desempenha um papel essencial na tarefa de restaurar a ordem espiritual, prejudicada pela tentativa do Estado de reduzir as forças culturais em unidades políticas (Dawson, 1961, p.34).
Nesse contexto de renovação das ciências humanas e de fragmentação política, Christopher Dawson publica The Making of Europe em 1932. Nesta obra, o autor afirma que há quatro elementos que constituem a civilização europeia: a tradição política do Império Romano, a tradição religiosa da Igreja Católica, a tradição intelectual da literatura clássica e as tradições nacionais dos povos bárbaros (Dawson, 1932, p.209).
Nos primeiros séculos após a queda do Império Romano, ainda não havia uma unidade cultural no Ocidente, já que os povos bárbaros ainda estavam se estabelecendo, não existindo, portanto, uma coesão espiritual ou princípios internos de ordem social. É desse ambiente caótico que surgirá uma nova civilização. A vinda dos Lombardos à Península Itálica concluiu o processo de liberação do poder político papal da influência do Império do Oriente, favorecendo o papel da Igreja Romana na organização social dos novos reinos ocidentais.
A Igreja incrementava sua atuação na organização política na medida em que se afirmava como fornecedora de assistência material e econômica, e crescia o prestígio do clero face à magistratura municipal (Dawson, 1932, p.42).
Enquanto os bispados que se estabeleciam como centros políticos e religiosos nas cidades, os mosteiros tiveram um papel essencial para a conversão dos camponeses pagãos. Além de se adaptarem à organização política das tribos celtas e germanas, as escolas monásticas não só encorajavam o estudo da literatura clássica e dos ensinamentos eclesiásticos, mas também proporcionavam a ascensão de uma nova literatura com elementos nativos. Dessa forma, surgem sagas e poemas em língua vernácula, como Tain Bo Cualgne, representando a tradição épica pré-clássica da cultura celta, ou Andreas, Elene e Juliana do anglo-saxão Cynewulf (Dawson, 1932, p.179. 187).
O Império Carolíngio, pelo seu caráter teocrático, era a expressão política da unidade religiosa. A legitimação do poder dos reis representou a aliança entre a monarquia franca e o papado (Dawson, 1932, p.192-193). A contradição entre os interesses locais e o universalismo cristão se torna explícita na defesa de Agobardo de Lyon pelo estabelecimento de uma lei cristã universal, contra o princípio franco da legislação pessoal (Dawson, 1932, p.228). Dawson ressalta que a teocracia carolíngia difere da bizantina pela forte influência da Igreja no aparelho burocrático e nos cargos políticos (Dawson, 1932, p.229). Além disso, como alude em Dynamics of World History, a concepção das duas cidades de Santo Agostinho, contribuiu para esvaziar o caráter absolutamente sagrado do Estado, fazendo com que a Igreja se afirmasse como a principal representante da Cidade Celestial (Dawson, 1961, p. 242-243).
No século XI, os elementos culturais que se consideram característicos da Europa e do Ocidente, que antes se confinavam principalmente no território franco – envolvendo a França setentrional e a Alemanha ocidental – se expandiram em várias direções: ao norte, com a conquista normanda da Inglaterra e a conversão dos povos da Escandinávia; à leste, entre os povos eslavos da Europa ocidental; e ao sul, empreendendo uma cruzada para a reconquista do Mediterrâneo sob o poder do Islam (Dawson, 1932, p.251).
Por fim, Dawson conclui afirmando que a unidade da civilização europeia não se fundamenta na cultura secular e no progresso material dos últimos séculos, mas em tradições que se desenvolveram antes do humanismo e dos feitos da civilização moderna que, por sua vez, construíram a Europa (Dawson, 1932, p. 255).
Lucien Febvre (1878-1956)
Na década de 1930, Lucien Febvre escreveu a maioria de seus manifestos em favor de uma nova história baseada na pesquisa interdisciplinar, voltada para a análise de problemas. Nessa linha historiográfica, Febvre ocupou a presidência do comitê organizador da Encyclopédie Française. Peter Burke destaca um volume editado nessa iniciativa pelo antigo professor de Febvre, Antoine Meillet, dedicado ao conceito de “instrumental intelectual” (outillage mental), que teria lançado as bases para o nascimento da história das mentalidades, através da análise de elementos da linguagem (Burke, 1991, p.37).
Na obra Combats pour l'histoire, em um capítulo dedicado à história e psicologia, Febvre distingue os sistemas de ideias e doutrinas que interessam a um grupo em particular, e aquelas que vão além deste, tendendo a unir pessoas de todos os grupos. Destaca primeiramente as correntes religiosas, quando não estão fechadas em um determinado grupo, e depois correntes e obras do campo político, como revoluções, organizações, conquistas e expansões. É nessa visão que Febvre concebe a civilização. Para ele os feitos de uma civilização são aqueles não se limitaram a uma determinada sociedade, mas que se fizeram suscetíveis de migração e de implantação em domínios muitas vezes tão distantes e tão diferentes do seu domínio de origem (Febvre, 1992, p.247-248).
Em A Europa: Gênese de uma Civilização – curso proferido no Collège de France no período de 1944-1945, final da Segunda Guerra, cujos manuscritos levaram a posterior publicação do livro – Febvre demonstra sua crença numa civilização europeia que é ameaçada pela ascensão das nações. Para ele, a Europa é uma inimiga e adversária das nações (Febvre, 2004, p.271).
Retomando uma asserção de Marc Bloch, Febvre defende que a Europa surge quando o Império Romano desmorona. No entanto, as transformações advindas desse evento e, portanto, a gênese da Europa, devem ser pensadas em um amplo espaço de tempo. Com a queda do Império, permitiu-se a separação do Oriente e do Ocidente, com a integração do elemento germano no ultimo, e a ruptura com as regiões do norte da África, que se intensificou após a expansão islâmica (Febvre, 2004, p.95).
Para o historiador, a Europa se desenvolveu na história pelos impulsos de organização e de cultura. Na Idade Média, prevaleceu o segundo elemento já que a feudalidade levava ao retalhamento político (Febvre, 1999, p.93). Dessa forma a Europa que nasceu nesse período é uma unidade primordialmente cultural que recebeu o nome de Cristandade (Febvre, 1999, p.125).
Percebe-se que a santidade é o fenômeno essencial do nascimento da Europa. Febvre destaca que a cristandade justapõe às instituições próprias dos Estados as suas próprias instituições que, espalhadas pelos reinos e principados, fazem um mundo ordenado, coerente e que se sente como tal. Dentre essas instituições, Febvre cita a rede de bispados e arcebispados, os estabelecimentos monásticos e as ordens religiosas, e principalmente o papado. O historiador ressalta o papel da ordem de Cluny, cujos abades abarcam o papel de homens de Estado. Em íntima relação com a Itália, a ordem atua atua como instrumento de coesão. Da mesma forma, as outras ordens religiosas têm a capacidade de produzir uma solidariedade espiritual e material entre os várias localidades, espalhando notícias e proporcionando contatos entre as pessoas. Já o Papa, dispondo da força material que proporcionam a organização das dioceses e do poder de excomungar, desempenha, acima dos Estados, um papel essencial na unificação religiosa, moral e política da cristandade (Febvre, 1999, p.126).
Percebe-se que Febvre recorreu à união da psicologia com a história ao estudar os eventos a partir das estruturas mentais da sociedade, realizando, assim, uma história dos sentimentos. Júlia Silveira Matos, citando François Dosse, afirma que Lucien Febvre defendeu que essa história deveria ser integrada ao estudo global de uma civilização e não ser isolada como um campo independente de estudo (Matos, 2006, p.167) . Assim, para o autor, a psicologia é um material indispensável para a constatação de uma civilização cristã no Ocidente medieval.
Ademais, George Barraclough sublinha que Marc Bloch e Lucien Febvre insistiam no laço que une a geografia e a história (Barraclough, 1980, p.89). Em 1922 Febvre publicou La Terre et l'evolution humaine, adotando a perspectiva de Vidal de la Blanche, que atribuía maior influência do homem sobre o seu meio físico. Para Barraclough, a obra de Fernand Braudel sobre o Mediterrâneo traz de uma forma tangível uma ideia que Febvre já defendia: a de que existe uma unidade cultural e histórica em uma determinada região geográfica (Barraclough, 1980, p.90). Em A Europa: Gênese de uma Civilização, essa unidade se define pelos limites da Igreja Romana.
Jacques Le Goff (1924-2009)
Dentro dos paradigma historiográficos da escola dos Annales, as obras de Jacques Le Goff seguem a tendência da história das mentalidades. Verifica-se aí a aproximação com a psicologia, como explicita o autor:
O historiador de mentalidades encontra-se muito particularmente com o psicólogo social. As noções de comportamento ou de atitude são para este e para aquele essenciais. Na medida aliás em que psicólogos sociais, como C. Kluckhohn, insistem no papel do controle cultural nos comportamentos biológicos, a psicologia social inclina-se para a etnologia e, desta, para a história (Le Goff, 1976, p.70).
Le Goff reitera a critica aos procedimentos da “velha história”, com sua ênfase na narrativa dos acontecimentos e nas grandes personalidades, e elogia a história econômica e social, mesmo quando inspiradas pelo marxismo. No entanto, o historiador afirma que esta corrente, ao se fixar no mecanismo dos modos de produção e da luta de classes, não teve êxito em passar das infra-estruturas para as superestruturas. A história das mentalidades, ao contrário, seria capaz de analisar os esquemas abstratos que a perpassam a coletividade, dos quais a economia é um reflexo (Le Goff, 1976, p.71).
Com a assinatura do Tratado da União Europeia (1992-1993), uma nova realidade se afirmou, trazendo a necessidade da difusão de estudos que favorecessem a visão de uma identidade comum entre os signatários. No entanto, obras acadêmicas ainda eram publicadas para públicos restritos, não atingindo pessoas não especializadas. Com o objetivo de chegar até esse público foi lançada a coleção Faire l’Europe, surgida da iniciativa de cinco editoras de línguas e nacionalidades diferentes – Beck em Munique, Basil Blackwell em Oxford, Crítica em Barcelona, Laterza em Roma e Le Seuil em Paris. No âmbito dessa iniciativa, o livro As Raízes Medievais da Europa, do historiador francês Jacques Le Goff, foi lançado em 2003.
Dentre suas principais ideias sobre nascimento da Europa, o autor pontuou a miscigenação cultural entre bárbaros e romanos, trazendo a dialética entre a unidade e a diversidade, que, segundo Le Goff, é até hoje uma das características principais da Europa (Le Goff, 2007, p.36). Afirmando que a Europa nasce na Idade Média, Le Goff destaca que o essencial de um espaço europeu está completo no século XV (Le Goff, 2007, p.278).
Jacques Le Goff, defende, que apesar de estarem ligadas às dinâmicas das lutas sociais, as mentalidades de classes coexistem com mentalidades comuns (Le Goff, 1976, p.78). A identificação do que há de comum, além das distinções em função das categorias sociais, permite a constatação de uma civilização europeia que se origina no medievo.
A história, na perspectiva de Le Goff, busca alcançar o nível mais estável e imóvel das sociedades, mas também é uma história das transformações que se operam nas mentalidades (Le Goff, 1976, p.78). Dessa forma, o Ocidente medieval passou por transformações comuns que ajudaram a definir a identidade europeia. Le Goff ressalta, por exemplo, o papel da cristianização através das obras dos padres da Igreja, como Boécio e Cassiodoro que buscaram unir a cultura clássica com a cultura bárbara. Esses homens são considerados pais culturais da Europa (Le Goff, 2007, p.32-33).
A cristandade também passou a ter uma nova relação com o tempo, graças ao ritmo semanal e ao descanso dominical, à fixação das festas litúrgicas, e à regularidade da vida de oração monástica (Le Goff, 2007, p.42-44). Ademais, a civilização cristã, ao romper com a concepção cíclica de história, lança as raízes da ideia de progresso que impulsionaram a expansão e afirmação da Europa perante outros povos (Le Goff, 2007, p.281-282).
Le Goff sublinha algumas transformações ocorridas entre os séculos XI e XIII, que ele classifica como essenciais. Uma delas é a incrementação do culto a Virgem Maria. A oração da Ave-Maria se torna mais frequente, sendo imposta assiduamente como penitência nas confissões. Cresceu também, nesse período, a literatura hagiográfica relacionada à Virgem. Esse culto permitiu a valorização do feminino, já que Maria é a imagem da mulher reabilitada e salvadora (Le Goff, 2007, p.112-115). Outra transformação foi a nova concepção de natureza, concebida no século XII como um mundo físico e cosmológico, distinto do sobrenatural. Essa visão sofreu influência das concepções árabes e judaicas, principalmente pela sua introdução no Ocidente de obras de Aristóteles. O século XII, foi uma época marcada por um novo olhar humano, perceptível nos novos movimentos de piedade, como o das ordens mendicantes, que valorizava a pobreza e a caridade (Le Goff, 2007, p.115-117). A partir do século XII, a escolástica iria instalar na tradição intelectual europeia a ideia de saber como libertação, pois seu método ia além da ostentação do discurso das autoridades, mas salientava a dúvida e a demonstração racional dos argumentos (Le Goff, 2007, p.189).
Essas e outras transformações foram vivenciadas em toda a cristandade ocidental. As mentalidades, pontua Le Goff, encontram sua gênese a partir de centros de elaboração de meios criadores e vulgarizadores, como o mosteiro, o castelo, as escolas etc (Le Goff, 1976, p.77). Assim, definiu-se a civilização do Ocidente, no recorte espacial delimitado pelo alcance da Igreja Romana. Este Ocidente designa um território que é essencialmente o da Europa (Le Goff, 2007, p.15).
Considerações finais
Observamos como a historiografia do século XX sofreu transformações advindas da crítica aos métodos positivistas e idealistas que valorizavam a narrativa dos fatos e o discurso moral, sem se apoiarem nas bases científicas das outras ciências sociais, como a antropologia e a sociologia. A busca de uma história que fosse capaz de analisar estruturais sociais, valorizando a cultura na organização da sociedade, permitiu que Christopher Dawson, Lucien Febvre e Jacques Le Goff, concebessem a visão de uma civilização no espaço compreendido pela cristandade ocidental. Essa civilização cristã, com seus sentimentos, mentalidades e cultura material, foi a primeira forma de estruturação da Europa e se deu essencialmente no espaço de influência da Igreja Romana.
Uma vez que destacamos o papel do cristianismo para o nascimento da Europa, que se observa, dentre outros fatores, no papel das casas monásticas, ordens religiosas, produção intelectual, obras de arte, movimentos de piedade e organização política no Ocidente medieval, pode-se questionar qual a relevância do fenômeno religioso para identidade europeia na atualidade. Em 2007, durante a presidência alemã da União Europeia, a chanceler Angela Merkel defendeu à menção às raízes cristãs na constituição europeia. Numa entrevista concedida ao semanário Focus, Merkel afirmou que “tivemos tanto medo de excluir adeptos de outras religiões que renunciamos à defesa de nossas convicções”. Segundo a chanceler, poder exprimir, com alegria, a própria fé é a premissa para ser tolerante (reportagem disponível em: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,2323161,00.html). Em 2005, em uma conferência proferida em Subiaco, no mosteiro de Santa Escolástica, o cardeal Joseph Ratzinger expôs a questão apontando para o fato de que a explicitação das raízes religiosas não ofendem nem os mulçumanos – cuja insatisfação se dirige muito mais à uma cultura secularizada que nega seus fundamentos – nem os judeus – pois o cristianismo também se constrói sobre sua herança. As motivações de tal omissão na Carta Magna se explicam pela sobrevalorização dos ideais do iluminismo, que sustentam a secularização da cultura política, em detrimento de todo o processo histórico de formação da Europa (Ratzinger, 2005, disponível em: http://www.zenit.org/article-15746?l=spanish).
Hoje assistimos à constante radicalização do processo de secularização da sociedade europeia, verificada em atos como a proibição do véu, ou dos crucifixos nas repartições públicas. Será que um governo continua representando seu povo negando-lhe a liberdade de portar seus símbolos religiosos? Ou será que estamos apenas substituindo uma religião por outra, isto é, o laicismo? De qualquer forma, não se pode retirar a herança cristã das leis, costumes, valores e instituições europeias; ela permanecem lá como um marco histórico, assim como as cruzes nas bandeiras dos países europeus.
Bibliografia
BARRACLOUGH, Geoffrey. A História. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980
BURKE, Peter. A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). São Paulo: Editora UNESP, 1991.
DAWSON, Christopher. Dinamica de la historia universal. Madrid: Ediciones Rialp, S. A., 1961.
___. Progress and religion: an historical inquiry. New York: Sheed & Ward, 1929.
___. The making of Europe: an introduction to the history of european unity. London: Sheed & Ward, 1932.
FEBVRE, Lucien. A Europa: gênese de uma civilização. Bauru: Edusc, 2004.
___. Combats pour l’histoire. Paris: Librairie Armand Colin, 1992.
GAJANO, Sofia. Santidade. In: LE GOFF, J. e SCHMITT, J. (Coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006, Vol. 2, p.449-463.
LE GOFF, Jacques. As mentalidades: uma história ambígua. In: LE GOFF, J. e NORA, P. (dir.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976
___. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007.
MATOS, Júlia Silveira. Lucien Febvre e a Quádrupla Herança: Aspectos Teóricos do Campo Biográfico. Biblos, Rio Grande, 20: 165-178, 2006. Disponível em: <http://www.seer.furg.br/ojs/index.php/dbh/article/view/727/220>. Acesso em: 4 out. 2008.
Merkel quer referência ao cristianismo na Constituição europeia. Deutsche Welle, 22.01.2007. Disponível em: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,2323161,00.html. Acesso em: 14 dez. 2009.
PADGEN, Anthony. The idea of Europe: from antiquity to the European Union. New York: Cambridge University Press, 2002.
QUINN, Dermot. Christopher Dawson e a ideia católica de História. Communio: Revista Internacional de Teologia e Cultura. Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, jul./set. 2008.
RATZINGER, Joseph. Europa en la crisis de las culturas. Roma: Zenit, 2005. Disponível em: http://www.zenit.org/article-15746?l=spanish. Acesso em: Acesso em: 4 out. 2008
A historiografia no final do século XIX e início do século XX
Para a compreensão da trajetória e das obras de Christopher Dawson, Lucien Febvre e Jacques Le Goff, é necessário remeter-nos às transformações ocorridas no campo da historiografia a partir do final do século XIX.
Embora, como afirma Peter Burke, já no século XVIII intelectuais na Escócia, França, Itália Alemanha em outros países já tivessem abordado questões ligadas ao comércio, moral e costumes, o postulado fundamental da escola positivista – que consistia na asserção de que é possível a descoberta de fatos novos através da pesquisa documental, com a eliminação do erro pelo exercício da erudição – e ênfase na história política – que tinha em Leopold Von Ranke um de seus principais expoentes – acabou prevalecendo na academia, numa época em que os historiadores buscavam profissionalizar-se. Essas ideias foram sintetizadas por historiadores profissionais e transmitidas em compêndios, como o dos franceses Langlois e Seignobos (Burke, 1991, p.17-18).
Já no início do século XX alguns fatores contribuíram para uma crise significativa nessa visão da história. Geoffrey Barraclough sublinha que a pesquisa documental que buscava explorar os pormenores da história, sem uma perspectiva de conjunto, acabava por transformá-la em um trabalho estéril. Além disso, a Primeira Guerra Mundial mostrou que a tentativa de buscar uma história universal objetiva – defendida por Acton – fracassara diante das diferentes perspectivas nacionalistas. A própria cientificidade da história foi revista quando se questionava a imparcialidade do historiador na compreensão dos fatos e na sua narrativa. Ademais, as ciências novas, como a arqueologia e a antropologia, e, principalmente após a Revolução Russa de 1917, a influência do marxismo e sua análise das estruturas econômicas, fez com que o historiador considerasse novas perspectivas (Barraclough,1980, p.20-25).
Na década de trinta, novas ideias historiográficas estavam em ascensão. A depressão mundial de 1929 trouxe novo impulso para a historiografia marxista. Foi também nesse ano que, sob a liderança de Marc Bloch e Lucien Febvre, a revista originalmente chamada de Annales d'histoire économique et sociale difundiu uma história baseada em análises estruturais da economia e da sociedade.
Christopher Dawson (1898-1970)
O século XIX foi um período de fragmentação na Europa, principalmente pelo acirramento das ideias nacionalistas. Anthony Padgen sublinha que, apesar de pensadores liberais europeus proporem a noção de uma paz advinda do comércio entre as nações, a competição imperialista conduziu a Europa a um período de conflitos que só terminou com a Segunda Guerra (Padgen, 2002, p.17-20).
Na Inglaterra, país de origem de Christopher Dawson, as divergentes perspectivas diante das ciências sociais também se manifestavam. Em Dynamics of World History, Dawson pontua alguns pensadores que desenvolveram novas abordagens nesse campo. Herbert George Wells, em The Outline of History, obra produzida após o término da Primeira Guerra e durante a constituição da Sociedade das Nações, busca uma história que não se fixe no registro de acontecimentos, mas que consista em descobrir os fatores dinâmicos que organizavam o mundo do homem (Dawson, 1961, p.273). Arnold Joseph Toynbee, defendeu que o estudo da História deveria incluir o estudo das civilizações, e que uma análise limitada de alguns povos ou Estados faria da história um exercício incompleto e parcial (Dawson, 1961, p.290).
Segundo Dermot Quinn, Dawson se preocupava em suas obras com os temas relacionados à natureza da cultura e civilização. Para este autor, a análise de Dawson se centrava em três unidades: a cultura, a civilização, e a Europa (Quinn, 2008, p. 705). Em Dynamics of World History, Dawson define a cultura como um sistema comum de vida, responsável pela adaptação do homem a seu meio ambiente e as suas necessidades econômicas (Dawson, 1961, p.14). A civilização, por sua vez, consiste numa generalização de culturas históricas individualizadas. A dinâmica responsável por essa outra unidade se encontra na religião. De fato, na obra Progress and Religon, Dawson critica a noção de progresso contida nas ciências sociais do século XIX, em que a religião é vista como um fator negativo no desenvolvimento da civilização. Contra essa visão, afirma que as grandes religiões são os fundamentos em que se apoiam as grandes civilizações (Dawson, 1929, p.180).
Ainda em Dynamics of World History, Dawson critica a ideia da história como narrativa de fatos isolados, como um discurso moral, ou como uma intuição filosófica. A história deveria se unir à sociologia para ordenar os fatos em função de leis e conceitos gerais. Esta última, por sua vez, desempenha um papel essencial na tarefa de restaurar a ordem espiritual, prejudicada pela tentativa do Estado de reduzir as forças culturais em unidades políticas (Dawson, 1961, p.34).
Nesse contexto de renovação das ciências humanas e de fragmentação política, Christopher Dawson publica The Making of Europe em 1932. Nesta obra, o autor afirma que há quatro elementos que constituem a civilização europeia: a tradição política do Império Romano, a tradição religiosa da Igreja Católica, a tradição intelectual da literatura clássica e as tradições nacionais dos povos bárbaros (Dawson, 1932, p.209).
Nos primeiros séculos após a queda do Império Romano, ainda não havia uma unidade cultural no Ocidente, já que os povos bárbaros ainda estavam se estabelecendo, não existindo, portanto, uma coesão espiritual ou princípios internos de ordem social. É desse ambiente caótico que surgirá uma nova civilização. A vinda dos Lombardos à Península Itálica concluiu o processo de liberação do poder político papal da influência do Império do Oriente, favorecendo o papel da Igreja Romana na organização social dos novos reinos ocidentais.
A Igreja incrementava sua atuação na organização política na medida em que se afirmava como fornecedora de assistência material e econômica, e crescia o prestígio do clero face à magistratura municipal (Dawson, 1932, p.42).
Enquanto os bispados que se estabeleciam como centros políticos e religiosos nas cidades, os mosteiros tiveram um papel essencial para a conversão dos camponeses pagãos. Além de se adaptarem à organização política das tribos celtas e germanas, as escolas monásticas não só encorajavam o estudo da literatura clássica e dos ensinamentos eclesiásticos, mas também proporcionavam a ascensão de uma nova literatura com elementos nativos. Dessa forma, surgem sagas e poemas em língua vernácula, como Tain Bo Cualgne, representando a tradição épica pré-clássica da cultura celta, ou Andreas, Elene e Juliana do anglo-saxão Cynewulf (Dawson, 1932, p.179. 187).
O Império Carolíngio, pelo seu caráter teocrático, era a expressão política da unidade religiosa. A legitimação do poder dos reis representou a aliança entre a monarquia franca e o papado (Dawson, 1932, p.192-193). A contradição entre os interesses locais e o universalismo cristão se torna explícita na defesa de Agobardo de Lyon pelo estabelecimento de uma lei cristã universal, contra o princípio franco da legislação pessoal (Dawson, 1932, p.228). Dawson ressalta que a teocracia carolíngia difere da bizantina pela forte influência da Igreja no aparelho burocrático e nos cargos políticos (Dawson, 1932, p.229). Além disso, como alude em Dynamics of World History, a concepção das duas cidades de Santo Agostinho, contribuiu para esvaziar o caráter absolutamente sagrado do Estado, fazendo com que a Igreja se afirmasse como a principal representante da Cidade Celestial (Dawson, 1961, p. 242-243).
No século XI, os elementos culturais que se consideram característicos da Europa e do Ocidente, que antes se confinavam principalmente no território franco – envolvendo a França setentrional e a Alemanha ocidental – se expandiram em várias direções: ao norte, com a conquista normanda da Inglaterra e a conversão dos povos da Escandinávia; à leste, entre os povos eslavos da Europa ocidental; e ao sul, empreendendo uma cruzada para a reconquista do Mediterrâneo sob o poder do Islam (Dawson, 1932, p.251).
Por fim, Dawson conclui afirmando que a unidade da civilização europeia não se fundamenta na cultura secular e no progresso material dos últimos séculos, mas em tradições que se desenvolveram antes do humanismo e dos feitos da civilização moderna que, por sua vez, construíram a Europa (Dawson, 1932, p. 255).
Lucien Febvre (1878-1956)
Na década de 1930, Lucien Febvre escreveu a maioria de seus manifestos em favor de uma nova história baseada na pesquisa interdisciplinar, voltada para a análise de problemas. Nessa linha historiográfica, Febvre ocupou a presidência do comitê organizador da Encyclopédie Française. Peter Burke destaca um volume editado nessa iniciativa pelo antigo professor de Febvre, Antoine Meillet, dedicado ao conceito de “instrumental intelectual” (outillage mental), que teria lançado as bases para o nascimento da história das mentalidades, através da análise de elementos da linguagem (Burke, 1991, p.37).
Na obra Combats pour l'histoire, em um capítulo dedicado à história e psicologia, Febvre distingue os sistemas de ideias e doutrinas que interessam a um grupo em particular, e aquelas que vão além deste, tendendo a unir pessoas de todos os grupos. Destaca primeiramente as correntes religiosas, quando não estão fechadas em um determinado grupo, e depois correntes e obras do campo político, como revoluções, organizações, conquistas e expansões. É nessa visão que Febvre concebe a civilização. Para ele os feitos de uma civilização são aqueles não se limitaram a uma determinada sociedade, mas que se fizeram suscetíveis de migração e de implantação em domínios muitas vezes tão distantes e tão diferentes do seu domínio de origem (Febvre, 1992, p.247-248).
Em A Europa: Gênese de uma Civilização – curso proferido no Collège de France no período de 1944-1945, final da Segunda Guerra, cujos manuscritos levaram a posterior publicação do livro – Febvre demonstra sua crença numa civilização europeia que é ameaçada pela ascensão das nações. Para ele, a Europa é uma inimiga e adversária das nações (Febvre, 2004, p.271).
Retomando uma asserção de Marc Bloch, Febvre defende que a Europa surge quando o Império Romano desmorona. No entanto, as transformações advindas desse evento e, portanto, a gênese da Europa, devem ser pensadas em um amplo espaço de tempo. Com a queda do Império, permitiu-se a separação do Oriente e do Ocidente, com a integração do elemento germano no ultimo, e a ruptura com as regiões do norte da África, que se intensificou após a expansão islâmica (Febvre, 2004, p.95).
Para o historiador, a Europa se desenvolveu na história pelos impulsos de organização e de cultura. Na Idade Média, prevaleceu o segundo elemento já que a feudalidade levava ao retalhamento político (Febvre, 1999, p.93). Dessa forma a Europa que nasceu nesse período é uma unidade primordialmente cultural que recebeu o nome de Cristandade (Febvre, 1999, p.125).
Percebe-se que a santidade é o fenômeno essencial do nascimento da Europa. Febvre destaca que a cristandade justapõe às instituições próprias dos Estados as suas próprias instituições que, espalhadas pelos reinos e principados, fazem um mundo ordenado, coerente e que se sente como tal. Dentre essas instituições, Febvre cita a rede de bispados e arcebispados, os estabelecimentos monásticos e as ordens religiosas, e principalmente o papado. O historiador ressalta o papel da ordem de Cluny, cujos abades abarcam o papel de homens de Estado. Em íntima relação com a Itália, a ordem atua atua como instrumento de coesão. Da mesma forma, as outras ordens religiosas têm a capacidade de produzir uma solidariedade espiritual e material entre os várias localidades, espalhando notícias e proporcionando contatos entre as pessoas. Já o Papa, dispondo da força material que proporcionam a organização das dioceses e do poder de excomungar, desempenha, acima dos Estados, um papel essencial na unificação religiosa, moral e política da cristandade (Febvre, 1999, p.126).
Percebe-se que Febvre recorreu à união da psicologia com a história ao estudar os eventos a partir das estruturas mentais da sociedade, realizando, assim, uma história dos sentimentos. Júlia Silveira Matos, citando François Dosse, afirma que Lucien Febvre defendeu que essa história deveria ser integrada ao estudo global de uma civilização e não ser isolada como um campo independente de estudo (Matos, 2006, p.167) . Assim, para o autor, a psicologia é um material indispensável para a constatação de uma civilização cristã no Ocidente medieval.
Ademais, George Barraclough sublinha que Marc Bloch e Lucien Febvre insistiam no laço que une a geografia e a história (Barraclough, 1980, p.89). Em 1922 Febvre publicou La Terre et l'evolution humaine, adotando a perspectiva de Vidal de la Blanche, que atribuía maior influência do homem sobre o seu meio físico. Para Barraclough, a obra de Fernand Braudel sobre o Mediterrâneo traz de uma forma tangível uma ideia que Febvre já defendia: a de que existe uma unidade cultural e histórica em uma determinada região geográfica (Barraclough, 1980, p.90). Em A Europa: Gênese de uma Civilização, essa unidade se define pelos limites da Igreja Romana.
Jacques Le Goff (1924-2009)
Dentro dos paradigma historiográficos da escola dos Annales, as obras de Jacques Le Goff seguem a tendência da história das mentalidades. Verifica-se aí a aproximação com a psicologia, como explicita o autor:
O historiador de mentalidades encontra-se muito particularmente com o psicólogo social. As noções de comportamento ou de atitude são para este e para aquele essenciais. Na medida aliás em que psicólogos sociais, como C. Kluckhohn, insistem no papel do controle cultural nos comportamentos biológicos, a psicologia social inclina-se para a etnologia e, desta, para a história (Le Goff, 1976, p.70).
Le Goff reitera a critica aos procedimentos da “velha história”, com sua ênfase na narrativa dos acontecimentos e nas grandes personalidades, e elogia a história econômica e social, mesmo quando inspiradas pelo marxismo. No entanto, o historiador afirma que esta corrente, ao se fixar no mecanismo dos modos de produção e da luta de classes, não teve êxito em passar das infra-estruturas para as superestruturas. A história das mentalidades, ao contrário, seria capaz de analisar os esquemas abstratos que a perpassam a coletividade, dos quais a economia é um reflexo (Le Goff, 1976, p.71).
Com a assinatura do Tratado da União Europeia (1992-1993), uma nova realidade se afirmou, trazendo a necessidade da difusão de estudos que favorecessem a visão de uma identidade comum entre os signatários. No entanto, obras acadêmicas ainda eram publicadas para públicos restritos, não atingindo pessoas não especializadas. Com o objetivo de chegar até esse público foi lançada a coleção Faire l’Europe, surgida da iniciativa de cinco editoras de línguas e nacionalidades diferentes – Beck em Munique, Basil Blackwell em Oxford, Crítica em Barcelona, Laterza em Roma e Le Seuil em Paris. No âmbito dessa iniciativa, o livro As Raízes Medievais da Europa, do historiador francês Jacques Le Goff, foi lançado em 2003.
Dentre suas principais ideias sobre nascimento da Europa, o autor pontuou a miscigenação cultural entre bárbaros e romanos, trazendo a dialética entre a unidade e a diversidade, que, segundo Le Goff, é até hoje uma das características principais da Europa (Le Goff, 2007, p.36). Afirmando que a Europa nasce na Idade Média, Le Goff destaca que o essencial de um espaço europeu está completo no século XV (Le Goff, 2007, p.278).
Jacques Le Goff, defende, que apesar de estarem ligadas às dinâmicas das lutas sociais, as mentalidades de classes coexistem com mentalidades comuns (Le Goff, 1976, p.78). A identificação do que há de comum, além das distinções em função das categorias sociais, permite a constatação de uma civilização europeia que se origina no medievo.
A história, na perspectiva de Le Goff, busca alcançar o nível mais estável e imóvel das sociedades, mas também é uma história das transformações que se operam nas mentalidades (Le Goff, 1976, p.78). Dessa forma, o Ocidente medieval passou por transformações comuns que ajudaram a definir a identidade europeia. Le Goff ressalta, por exemplo, o papel da cristianização através das obras dos padres da Igreja, como Boécio e Cassiodoro que buscaram unir a cultura clássica com a cultura bárbara. Esses homens são considerados pais culturais da Europa (Le Goff, 2007, p.32-33).
A cristandade também passou a ter uma nova relação com o tempo, graças ao ritmo semanal e ao descanso dominical, à fixação das festas litúrgicas, e à regularidade da vida de oração monástica (Le Goff, 2007, p.42-44). Ademais, a civilização cristã, ao romper com a concepção cíclica de história, lança as raízes da ideia de progresso que impulsionaram a expansão e afirmação da Europa perante outros povos (Le Goff, 2007, p.281-282).
Le Goff sublinha algumas transformações ocorridas entre os séculos XI e XIII, que ele classifica como essenciais. Uma delas é a incrementação do culto a Virgem Maria. A oração da Ave-Maria se torna mais frequente, sendo imposta assiduamente como penitência nas confissões. Cresceu também, nesse período, a literatura hagiográfica relacionada à Virgem. Esse culto permitiu a valorização do feminino, já que Maria é a imagem da mulher reabilitada e salvadora (Le Goff, 2007, p.112-115). Outra transformação foi a nova concepção de natureza, concebida no século XII como um mundo físico e cosmológico, distinto do sobrenatural. Essa visão sofreu influência das concepções árabes e judaicas, principalmente pela sua introdução no Ocidente de obras de Aristóteles. O século XII, foi uma época marcada por um novo olhar humano, perceptível nos novos movimentos de piedade, como o das ordens mendicantes, que valorizava a pobreza e a caridade (Le Goff, 2007, p.115-117). A partir do século XII, a escolástica iria instalar na tradição intelectual europeia a ideia de saber como libertação, pois seu método ia além da ostentação do discurso das autoridades, mas salientava a dúvida e a demonstração racional dos argumentos (Le Goff, 2007, p.189).
Essas e outras transformações foram vivenciadas em toda a cristandade ocidental. As mentalidades, pontua Le Goff, encontram sua gênese a partir de centros de elaboração de meios criadores e vulgarizadores, como o mosteiro, o castelo, as escolas etc (Le Goff, 1976, p.77). Assim, definiu-se a civilização do Ocidente, no recorte espacial delimitado pelo alcance da Igreja Romana. Este Ocidente designa um território que é essencialmente o da Europa (Le Goff, 2007, p.15).
Considerações finais
Observamos como a historiografia do século XX sofreu transformações advindas da crítica aos métodos positivistas e idealistas que valorizavam a narrativa dos fatos e o discurso moral, sem se apoiarem nas bases científicas das outras ciências sociais, como a antropologia e a sociologia. A busca de uma história que fosse capaz de analisar estruturais sociais, valorizando a cultura na organização da sociedade, permitiu que Christopher Dawson, Lucien Febvre e Jacques Le Goff, concebessem a visão de uma civilização no espaço compreendido pela cristandade ocidental. Essa civilização cristã, com seus sentimentos, mentalidades e cultura material, foi a primeira forma de estruturação da Europa e se deu essencialmente no espaço de influência da Igreja Romana.
Uma vez que destacamos o papel do cristianismo para o nascimento da Europa, que se observa, dentre outros fatores, no papel das casas monásticas, ordens religiosas, produção intelectual, obras de arte, movimentos de piedade e organização política no Ocidente medieval, pode-se questionar qual a relevância do fenômeno religioso para identidade europeia na atualidade. Em 2007, durante a presidência alemã da União Europeia, a chanceler Angela Merkel defendeu à menção às raízes cristãs na constituição europeia. Numa entrevista concedida ao semanário Focus, Merkel afirmou que “tivemos tanto medo de excluir adeptos de outras religiões que renunciamos à defesa de nossas convicções”. Segundo a chanceler, poder exprimir, com alegria, a própria fé é a premissa para ser tolerante (reportagem disponível em: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,2323161,00.html). Em 2005, em uma conferência proferida em Subiaco, no mosteiro de Santa Escolástica, o cardeal Joseph Ratzinger expôs a questão apontando para o fato de que a explicitação das raízes religiosas não ofendem nem os mulçumanos – cuja insatisfação se dirige muito mais à uma cultura secularizada que nega seus fundamentos – nem os judeus – pois o cristianismo também se constrói sobre sua herança. As motivações de tal omissão na Carta Magna se explicam pela sobrevalorização dos ideais do iluminismo, que sustentam a secularização da cultura política, em detrimento de todo o processo histórico de formação da Europa (Ratzinger, 2005, disponível em: http://www.zenit.org/article-15746?l=spanish).
Hoje assistimos à constante radicalização do processo de secularização da sociedade europeia, verificada em atos como a proibição do véu, ou dos crucifixos nas repartições públicas. Será que um governo continua representando seu povo negando-lhe a liberdade de portar seus símbolos religiosos? Ou será que estamos apenas substituindo uma religião por outra, isto é, o laicismo? De qualquer forma, não se pode retirar a herança cristã das leis, costumes, valores e instituições europeias; ela permanecem lá como um marco histórico, assim como as cruzes nas bandeiras dos países europeus.
Bibliografia
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