quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Rei na terra, santo no céu


São Luís, que em vida foi
Luís IX da França,
ganha biografia de luxo
Roberto Pompeu de Toledo

Ele era rei, mas que é da majestade? Usava roupas simples, de tom azul ou preto. Dispensava o ouro e a prata nas selas e bridões dos cavalos. Era piedoso como monge. Aos sábados, costumava lavar, de joelhos, os pés de três pobres idosos. Lavava-os e depois os beijava. Também costumava servir os pobres à mesa. Pobres e leprosos. Em seguida comia com eles, na mesma tigela. Estamos sendo apresentados a um dos mais dignos representantes do período da História humana, ou pelo menos da História ocidental cristã, chamado Idade Média: o rei Luís IX da França, que viveu entre 1214 e 1270, reinou entre 1226 e a morte e foi canonizado em 1297, sendo universalmente conhecido, a partir daí, como São Luís.


São Luís, coroa e auréola sobrepondo-se na cabeça,
lava o pé
de um pobre
São Luís organizou e comandou duas cruzadas. Ampliou o incipiente reino da França a ponto de fazê-lo atingir, pela primeira vez, o Mediterrâneo. Trata-se de personagem tão significativo para a religião como para a formação do Estado e da nacionalidade francesa. Virou um símbolo tão perfeito da fé e da nação que, quando os franceses deram com os costados, nos confins do mundo, com uma terra de índios incréus, entre mares e selvas ignotas, deram o nome do santo rei à cidade que ali fundaram a hoje capital do Estado brasileiro do Maranhão.

O rei parte para a cruzada (miniaturas do século XIV ilustram esta reportagem)
A pessoa que foi São Luís tem tratamento de luxo numa biografia escrita por um dos mais reputados historiadores franceses da atualidade, o medievalista Jacques Le Goff, expoente da "Nova História", a escola que tem feito a originalidade da pesquisa historiográfica francesa nas últimas décadas. São Luís, lançado na França em 1996, agora publicado no Brasil (tradução de Marcos de Castro; editora Record), é um livro fora do comum a vários títulos. Primeiro pelo tamanho quase 900 páginas, incluindo os úteis índices e mapas que fecham a edição. Em seguida pela ambição Le Goff, desculpando-se pela imodéstia, afirma que pretendeu realizar uma "biografia total". Dividido em três partes, na primeira é uma biografia convencional, cronológica, na segunda se demora no exame das fontes e na terceira elabora uma abordagem temática em que examina as relações do biografado com a família, a religião, o espaço em que viveu e até com a comida que ingeriu, entre outros itens. Enfim, o livro é fora do comum pelo material de reflexão que oferece a respeito do desenvolvimento do bicho-homem, sob um tríplice aspecto: a religião, a política e a evolução de sua mentalidade.
Catedrais São Luís é neto de um grande rei, Filipe Augusto, e avô de outro, Filipe, o Belo. O pai, Luís VIII, foi rei de reinado curto. A mãe, a espanhola Branca de Castela, muito mais influente em sua vida, dizia que preferia vê-lo morto a cometer adultério. Para se ter idéia do tempo em que viveu, São Luís é contemporâneo do apogeu da arquitetura gótica, a fase em que ainda se construíam, ou tinham sido recentemente construídas, as grandes catedrais francesas Notre-Dame de Paris, Chartres, Reims, Saint-Denis. Na política européia, contracenavam com ele o rei da Inglaterra, o imperador do Sacro Império Romano-Germânico, nome pomposo para domínios que só iam um pouco além da Alemanha, e o papa. Mundo afora, a cristandade era confrontada por um lado pelo avanço mongol e por outro pelo islamismo, dono do Oriente Médio, inclusive a Terra Santa, do norte da África e boa parte da Espanha.
Calcula-se que a França contava 10 milhões de habitantes. Era o mais populoso país de uma Europa de 60 milhões. Paris, com população de 200.000, era a metrópole da época. São Luís foi contemporâneo de outros gigantes da cristandade. São Francisco de Assis morreu em 1226, mesmo ano em que ascendeu ao trono. São Domingos, em 1221. Ambos introduziram na Igreja as ordens mendicantes, que, nascidas para ser pobres e próximas do povo, são expressões daquele tipo de movimento, tão encontradiço na História, que surge contestatário e acaba servindo de reforço à ordem vigente. A ideologia mendicante exerceu enorme influência sobre Luís. Santo Tomás de Aquino, nascido em 1226 e autor, ali mesmo, na Universidade de Paris, de uma formulação teológica que atravessaria os séculos, exerceu menos.
O rei aprende a ler, sob supervisão da mãe, Branca de Castela
Le Goff revela, com esse mundo, intimidade de entomologista com suas borboletas. Penetra-lhe as entranhas para informar, por exemplo, quando fala dos arranjos para o casamento de São Luís (com Margarida da Provença), que o casamento de amor não tinha sentido na Idade Média. O amor, na época, refugiava-se "no rapto, no concubinato, no adultério e na literatura". O amor nasceu, e durante muito tempo viveu, acrescenta, brilhantemente, do "sentimento amoroso contrariado". De par com o casamento por amor, igualmente inexistia, esclarece Le Goff, ao abordar outros aspectos do reinado de São Luís, a economia: "Não existem, no século XIII, nem as estruturas materiais nem as estruturas mentais correspondentes a isso que chamamos de economia". O autor está tão à vontade, nos anos 1200, que ousa entrar nas intrigas da época. Ao comentar os boatos de que a poderosa Branca de Castela, parceira do filho no comando do reino, teria amantes, escreve: "Nenhum documento introduz o historiador no leito de Branca de Castela, mas se ele se fia, como às vezes é preciso, em sua intuição, apoiado em uma familiaridade científica com o período e as personagens, dirá, como acredito, que tudo isso é pura calúnia".
São Luís era chefe de algo um reino que, como o casamento por amor e a economia, ainda não se consolidara nas estruturas mentais da época. Compreendia-se o que era o Sacro Império, o herdeiro, ainda que pálido, do Império Romano, o que era feudo e o que era a Igreja, mas reino, isso que desembocaria nos Estados nacionais que temos hoje, era uma categoria mental ou, pelo menos, jurídica contestável. "Alguns julgam que a França goza de isenção em relação ao Sacro Império; isso é impossível em direito", sentenciava o jurista Jacques de Révigny.
Relíquias Na obra de edificação do Estado nacional em que, menos consciente do que inconscientemente, São Luís se empenhava, foi crucial, segundo Le Goff, a iniciativa de erguer na Catedral de Saint-Denis, nos arredores de Paris, um conjunto de dezesseis grandiosas estátuas para enfeitar os túmulos dos antigos reis e rainhas, seus ascendentes, ali enterrados. As estátuas representavam os antigos monarcas em solenes e tocantes posições jacentes. "Os reis mortos vão de agora em diante mostrar a perenidade do ofício monárquico", escreve Le Goff. "São convocados para a eternidade na propaganda da monarquia e da nação, uma nação que por enquanto só sabe se afirmar através do regnum, o reino." Até o fim da monarquia, no século passado, os reis e rainhas da França continuarão sendo enterrados em Saint-Denis, sob estátuas que ora os apresentam jacentes, como nas primeiras versões, ora em outras posições. O conjunto oferece ainda hoje, na catedral que é ao mesmo tempo a necrópole dos reis da França, bem perto do moderno estádio onde o Brasil perdeu a última Copa do Mundo, um espetáculo impressionante de monumentalidade e convite à reverência.
Algo curioso ocorre quando se observa São Luís de nossa perspectiva de pessoas do século XX: é mais fácil aceitá-lo como político, ou seja, como elo importante na construção da nação francesa, do que como santo. Claro, ele entregou-se à devoção com afinco de campeão da fé. Jejuava, autoflagelava-se. Praticou o sexo para assegurar, como exigia sua condição, uma sólida descendência teve onze filhos , mas lutava contra o desejo como eremita no deserto. Abstinha-se de olhar para a mulher para não cair em tentação. Quando a ardência, na presença dela, apertava, ficava a andar pelo quarto até esfriar. Também se abstinha desse inimigo da penitência que é o riso. Não ria às sextas-feiras. Mas a contrapartida da devoção, em São Luís, é o fanatismo. Tinha horror à blasfêmia, o "pecado da língua". Uma vez, mandou marcar com ferro os lábios de um blasfemador. Mandava executar os hereges condenados pela Inquisição. Perseguiu sistematicamente os judeus, aos quais, numa pré-estréia da política nazista, ordenou que usassem uma rodela escarlate no peito e nas costas. Não são procedimentos que hoje imaginamos num santo.
O rei morre, no acampamento em Túnis, durante sua segunda cruzada
Em 1244, recuperado de grave doença, São Luís fez voto de cruzado. Seguem-se quatro anos de preparativos para viabilizar o monumental empreendimento. Estima-se que 25.000 homens tenham sido mobilizados, 7.000 ou 8.000 cavalos, 38 navios grandes e centenas de embarcações menores. O rei e seu Exército ficarão seis anos, nada menos do que isso (1248-1254), no Egito e na Palestina e sofrerão derrota humilhante. Luís chegou a ser capturado pelos muçulmanos e ficou um mês preso, até ser solto mediante pagamento de resgate. Não se emendou. Em 1270, partiu em cruzada novamente apenas para morrer ingloriamente, em Túnis, primeira escala do outro lado do Mediterrâneo, da disenteria que, como peste, lhe assaltara os exércitos. As duas derrotas poderiam tê-lo marcado como um fracassado. Ao contrário, e Le Goff insiste nesse ponto, conferiram-lhe a aura de novo Cristo.

Tempos incertos

"Na época de Luís, a medida do tempo continuava vaga porque a duração vivida era múltipla, fragmentada. Foi só no fim do século XIII que apareceram os primeiros relógios mecânicos. Em muitos casos, ignoram-se as datas de nascimento mesmo de grandes personagens, e portanto suas idades exatas. A numeração dos reis, dos príncipes, dos membros das grandes linhagens ainda é pouco usada e as incertezas são numerosas. São Luís, enquanto viveu, não foi chamado de Luís IX. (...) Os dias continuam mais bem designados pelo santos que se festejam do que pela seqüência do mês. São Luís vivia numa multiplicidade de tempos incertos."
Jacques Le Goff
São Luís é livro de leitura difícil. É erudito demais, "técnico" demais, e literário de menos, para ser lido, como diz o chavão, "como um romance". Acresce que a concepção do livro, primeiro cronológica, depois temática, tomando os mesmos fatos como referência, conduz a muitas repetições. O leitor cansa de deparar com as mesmas citações, os mesmos comentários. Se o autor tivesse tido o cuidado de evitar as repetições, a obra perderia em tamanho e ganharia em legibilidade. Do jeito que está, São Luís, sem deixar de ser um livro-monumento, transborda pelo excesso e redundância.
Que resta de São Luís, hoje? Muito. Quem já esteve na Sainte-Chapelle, em Paris, dificilmente escapou incólume ao delírio de seus vitrais, ou ao milagre de suas formas. É uma das maiores emoções que se pode ter, ao entrar num prédio, na vida. Pois a Sainte-Chapelle é São Luís. É a santa capela que mandou erguer para abrigar a mais preciosa das relíquias que ele, um obcecado pelas relíquias, conseguiu obter a peça tida como a coroa de espinhos de Jesus, comprada ao governo de Bizâncio. A Sainte-Chapelle é também, no plano simbólico, um resumo do que São Luís significou: a política como religião, a religião como política, e as duas a serviço da busca da eternidade.
O santo rei, tão atraído pelas relíquias em vida, atomizou-se ele próprio em relíquias depois da morte. O corpo foi fervido, em Túnis, para que se separassem as entranhas e os ossos. As entranhas foram para a Sicília, onde reinava o irmão e companheiro de cruzada Carlos de Anjou. Os ossos foram para a França, onde começou a grande distribuição o crânio para a Sainte-Chapelle, os maxilares para Saint-Denis, outro osso para Notre-Dame, outro ainda para Reims. No decorrer dos séculos, pedaços do rei continuaram a ser presenteados. Ainda em 1926 ontem, em termos históricos , o arcebispo de Paris ofereceu uma costela à igreja Saint-Louis-de-France de Montreal. Quanto à coroa de espinhos comprada pelo bom rei, hoje guardada em Notre-Dame, encabeçou uma procissão, da qual o governo participou em peso, em maio de 1940, para proteger a França do avanço alemão. São Luís ainda diz muito desse país que, por sua vez, diz muito para o mundo, que é a França.

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